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O CNJ e o federalismo judicial na proteção do orçamento dos municípios contra bloqueios pelos Tribunais de Justiça

O Federalismo republicano brasileiro sofre críticas por ser tardio e corresponder a um modelo inverso ao norte-americano.

5/4/2019

Introdução

O CNJ se tem mostrado atuante no exame de questões que afetam a municípios, Estados e Distrito Federal, quando estes entes federativos se veem premidos pelo avanço da atuação dos Tribunais de Justiça no ‘exercício da fiscalização’ do cumprimento de normas relacionadas aos pagamentos de precatórios judiciais.1

A abertura à participação democrática direta pelos entes federativos dada pelos instrumentos previstos no art. 43 do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (RICNJ), dentre os quais o Pedido de Providências (PP), assegura a  formulação de pedidos que servem à proteção dos interesses sociais dos munícipes, interesses públicos gerais, sem afetar a higidez do orçamento público municipal e as competências federativas concorrentes.2

República Federativa e Federalismo Judicial

O Federalismo republicano brasileiro sofre críticas por ser tardio e corresponder a um modelo inverso ao norte-americano, porque decorrente da divisão de um Estado Monárquico unitário. A Constituição de 1988 trouxe, contudo, inovações que chancelam a noção estrutural do que se considera um estado federal.  Entre critérios distintivos dos estados federativos vê-se o mínimo de dois níveis de governo, um órgão legislativo de representação dos estados, uma constituição escrita, uma divisão de competências, a solução de conflitos dados a um órgão jurisdicional único, além de outras;3 tais elementos estão presentes no federalismo brasileiro.

A EC 45/04 trouxe a inovação do federalismo judicial, com o CNJ em posição proeminente, restando identificar uma situação espacial com as competências específicas deste Conselho. Mais que criação, mas a atuação do CNJ consagra essa estrutura federativa judicial, situando este órgão como aquele que é necessário no plano da administração judiciária para confirmar a existência da República Federativa, e não o contrário. O tema já foi objeto de debates acalorados e de incompreensões desde então superadas.4

A legitimidade do CNJ e sua atuação uniformizadora numa República Federativa composta pela União, 26 Estados, o Distrito Federal e 5570 Municípios

Atuar como órgão de cúpula do federalismo judicial confere ao CNJ responsabilidades complexas e dificuldades muito grandes, em razão da quantidade de entes federativos e da multiplicidade de Justiças no Brasil: Justiça Comum dos Estados, Justiça Comum da União, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral, Justiça Militar da União e Justiça Militar dos Estados.5

A matéria em exame não refoge dessa complexidade, pois relacionada a atuação dos Tribunais de Justiça no cumprimento dos parcelamentos do pagamento dos precatórios judiciais concedidos pelas Emendas Constitucionais EC 99/17, que sucedeu as normas expressas na EC 62/09 e posteriormente na EC 94/16.

Tem o CNJ cuidado para evitar que sua legítima atuação se ponha em paralelo àquelas que são mais amplas e também legítimas do STF e do STJ de modo a contornar os riscos de um improdutivo ‘confronto’ de decisões contraditórias, a multiplicação de providências simultâneas judiciais e administrativas, motivadas pela incessante busca de correção de bloqueios de valores, por exemplo.

O caso concreto recente envolvendo o Município de Uruguaiana6

No caso em análise o município pedia que fosse “determinado que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul desbloqueie e devolva os valores constritos das contas do Município de Uruguaiana [no montante de R$ 9.334.413,12], relativas ao exercício de 2018; no mérito, seja preservado o regime especial de pagamento de precatórios nos termos da opção formulada pelo requerente; determinado que o TJ/RS se abstenha de realizar novos bloqueios; e que o Plano de Pagamento de 2019 observe a parcela da EC 62/09 para fins de cálculo do mínimo e do suficiente, desde que cumpridas as condições estabelecidas no Plano de Pagamento.”

Antes que a decisão descrevesse as ‘Determinações” foi também clara em confirmar a validade do plano de pagamentos do ano de 2018, homologado pelo TJ/RS, o adimplemento das parcelas; os limites das hipóteses de sequestro reguladas pela resolução CNJ 115/10, inclusive quanto aos seus procedimentos; o saldo devedor e a forma do cálculo das parcelas futuras.

Nas ‘Determinações’ ao TJ/RS, quanto ao desbloqueio de valores, foi extremamente minucioso: 

“Ante o exposto, concedo parcialmente a liminar pedida para determinar ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que adote as seguintes providências em relação ao Município de Uruguaiana:

1. Diante da existência de Plano de Pagamento homologado pelo TJ/RS para o ano de 2018, exija somente os valores nele consignados para o referido exercício.

2. Consolide a dívida de precatórios do Município de Uruguaiana considerando todo o passivo existente em 31/12/2018, incluindo os valores não repassados durante a vigência das ECs 62 e 94.

3. Refaça os cálculos do percentual mínimo de comprometimento da Receita Corrente Líquida considerando a data de promulgação da EC n. 94/2016, em 15 de dezembro de 2016, como data de entrada em vigor do regime especial estabelecido pelo art. 101 do ADCT.

4. Refaça os cálculos do percentual suficiente de comprometimento da Receita Corrente Líquida para o ano de 2019, considerando a dívida consolidada em 31/12/2018 (item 2) e o número de parcelas faltantes para o término do regime especial (dezembro de 2024), obtendo-se o valor do repasse mensal para o ano de 2019.

5. Utilize, para definição da parcela mensal de repasse, o percentual de comprometimento da RCL que for maior entre o percentual mínimo e o percentual suficiente.

6. Aplique o percentual de comprometimento da RCL apurado (item 5) para obtenção do valor da parcela mensal de repasse para o ano de 2019.

7. Obtido o valor da parcela mensal de repasse para o ano de 2019, deve ser intimado o município para, querendo, apresentar um novo Plano de Pagamento para o ano de 2019, que poderá contemplar a seu critério, além dos recursos orçamentários, os seguintes meios adicionais de pagamento de precatórios no regime especial: a) Acordo Direto (ADCT, art. 102, § 1º) mediante destinação específica de até 50% dos recursos orçamentários a serem repassados diretamente para a respectiva conta especial do TJ/RS, cujas audiências, se houver, podem ser realizadas pelo CEJUSC; b) Compensações Tributárias realizadas junto à Fazenda Pública devedora (ADCT, art. 105); c) depósitos judiciais e depósitos administrativos (ADCT, art. 101, § 2º, incisos I e II); d) empréstimos financeiros (ADCT, art. 101, § 2º, inciso III); e) depósitos de precatórios não sacados (ADCT, art. 101, § 2º, inciso IV); f) Linha Especial de Crédito que vier a ser disponibilizada pela União (ADCT, art. 101, § 4º); g) recursos orçamentários extras.

8. Os recursos adicionais efetivamente repassados/utilizados devem abatidos dos valores mensais devidos a título de repasse no de 2019.

9. As meras tratativas para obtenção de recursos adicionais não suspendem a exigibilidade do repasse mensal vinculado à RCL;

10. Os valores bloqueados em excesso pelo TJ/RS, considerando o que efetivamente era devido em 2018 (item 1), devem ser devolvidos ao Município de Uruguaiana, após o abatimento do que se tornou devido pelo ente federado a título de repasse mensal a partir de janeiro de 2019 (item 6);

11. Não havendo saldo suficiente para a devolução dos valores bloqueados em excesso, em decorrência dos pagamentos de precatórios já efetuados desde o bloqueio, estes devem ser creditados como adiantamento dos repasses devidos no ano de 2019.

12. Cumpridas as determinações acima, o TJ/RS deve informar nestes autos o valor consolidado da dívida de precatórios do município, a RCL considerada, o percentual mínimo, o percentual suficiente e o valor do repasse mensal apurados, bem como o Plano Anual de Pagamento para 2019 e os valores devolvidos ao Município de Uruguaiana.

13. Prazo para cumprimento, pelo TJ/RS, das determinações contidas nesta decisão: 30 (trinta) dias.”

O critério analítico e pedagógico da decisão expresso pelas determinações nomofiláticas

O critério analítico na explicitação das questões postas e o resultado pedagógico estabelece uma espécie de cartilha normativa (nomofilática, até) para guiar o cumprimento da decisão, a devolução de valores e, indiretamente, a orientação para outros Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal, explicitando a necessidade de norma geral de orientação a esses órgãos locais. Esse cuidado tem a direção mais ampla, aos demais Tribunais de Justiça no seu fazer e aos demais entes federativos no seu não-fazer, como uma clara direção e redução de contenciosidade numa matéria sensível às administrações, ao mesmo tempo que àqueles encarregados da ‘vigilância’.

A nomofilácia é o zelo com a uniformização na interpretação e na aplicação do direito, em geral associada às funções de Tribunais Superiores e a Cortes de Precedentes, mas não exclusivamente. A nomofilácia pode ser utilizada por todos, como dever de coerência, integridade e estabilidade (art. 926 CPC/15), aplicável a decisões administrativas como aquelas do CNJ, por força do art. 15 do CPC/15.

Com isso ganha a cidadania e se prestigia o princípio da igualdade, cláusula constitucional inafastável.

_______

1 CNJ no PP 8953-84.2017.2.00.0000. Ministro João Otávio Noronha.

2 Ver: HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, Tit. III, cap. 3, p. 309-328 e Tit. II, cap. 7, p. 253-258. Também: ARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986, (cap. IX, p. 269-282).

3 SOLOZÁBAL ECHAVARRÍA, Juan José. EI estado autonómico en perspectiva. Revista de Estudios Políticos (nueva época), n. 124, Madrid: CEPC, abr./jun., 2004, ítem n. II-1, p. 11.

4 ADI 4638 da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) a ponto de ter o Plenário estabelecido uma espécie de regra numerada em artigos que uniformizou as normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados, por conta da Resolução n. 135. Na decisão ficou assentada a competência disciplinar concorrente das Corregedorias dos Tribunais dos Estados e DF, com aquela do próprio CNJ, explicitando a espécie de Federalismo Judicial que permite ao Conselho Nacional de Justiça atuar ‘paralelamente’.

5 As diferenças entre um conselho federal e um conselho nacional ainda merecem reflexão em nosso meio, especialmente sob o aspecto do federalismo cooperativo, razoavelmente debatido no plano fiscal ou tributário, mas ainda carente no plano judicial. Para uma ampliação do tema do Federalismo cooperativo ver: SCHNEIDER, Hans Peter. EI Estado federal cooperativo: problemas actuales dei federalismo en la República Federal de Alemania. Revista de Estudios Políticos (nueva época), n. 12. Madrid: CEPC, nov/dic., 1979. NAGEL, Klaus-Jürgen. EI federalismo alemán: más cooperación o nueva asimetria. Revista de Estúdios Políticos (nueva época), n. 118. Madrid: CEPC, oct/dic., 2002, (p. 65-99). WATTS, Ronald L. Sistemas Federales Comparados. Madrid: Marcial Pons, 2006. ROVIRA, Enoch Alberti. Federalismo y Cooperación en la República Federal Alemana. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986. Para uma ampliação do tema do Federalismo judicial ver: FERNÁNDEZ, María del Pilar. Del federalismo judicial. Reforma Judicial. Revista Mexicana de Justicia, n. 2, Sección de El Poder Judicial su Normatividad y Función. México: UNAM, 2003, (p. 227-248). HERNÁNDEZ, Antonio M. El Federalismo judicial y la protección de los derechos fundamentales en la República Argentina. REAF, núm. 9, oct./2009 (p. 91-128).

6 O caso concreto em exame envolve o Pedido de Providências n. 0001010-45.2019.2.00.0000, tendo como Requerente o Município De Uruguaiana e como Requerido o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – TJ/RS, para desbloqueio do montante de R$ 9.334.413,12. O Município foi representado, pelo Escritório Hauschild e Albuquerque Advogados Associados.

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*Mauro Luciano Hauschild é advogado do Hauschild e Albuquerque Advogados Associados em São Paulo, Porto Alegre e Brasília; Master em Previdência Social (Espanha); Professor de Direitos Sociais e Previdência e Seguros.

*Jefferson Carús Guedes é advogado do Hauschild e Albuquerque Advogados Associados em São Paulo e Brasília; Doutor, Mestre em Direito Processual Civil (PUC/SP); Professor da Graduação, Mestrado e Doutorado do UniCEUB-Brasília.

*Beatriz Cruz da Silvaé advogada do Hauschild e Albuquerque Advogados Associados em Brasília, Mestre pela UNB, Especialista em Direito Público, graduada pela UFPel.

 

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