A jurisprudência do dano moral coletivo navega hoje em sereno mar de calmaria, sem ondulações, nem vicissitudes. Faz tempo, de fato, que o instituto foi encampado ao nosso sistema e tornou-se um lugar comum – o que significa dizer: ganhou o terreno das coisas infensas à reflexão; alcançou, enfim, o estágio canônico de desertos sem flores (non plus ultra). As variantes teóricas que ainda persistem, se é que ainda persistem, não são de qualidade, mas de intensidade: se há, efetivamente, em determinado caso, notadamente quanto ao aspecto probatório, abalo a valores comunitários que justifiquem essa indenização difusa (e confusa, como se verá, nos próprios termos). Mas a “coisa em si”, a aceitação em si do instituto, isto são favas contadas.
No começo, no entanto, era a luz – e a luz veio do ministro Teori Zavascki. Em voto pioneiro, proferido em 2006, ao julgar o REsp 598.281/MG, em controvérsia sobre dano ambiental (o direito difuso par excellence), objeto de uma ação civil pública, o saudoso magistrado, num instinto valorativo certeiro e preciso, assentou que “a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa. Não parece ser compatível com o dano moral a ideia da ‘transindividualidade’ (= da indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão. É que o dano moral envolve, necessariamente, dor, sentimento, lesão psíquica (...)”.
Esse voto, por curto período, fez escola e história. Em 2008, o ministro Luiz Fux o reproduziu, ao julgar o REsp 821.891/RS. No ano seguinte, outro julgado de relatoria do ministro Teori (REsp 971.844/RS) figurou no Informativo nº 418 do STJ. Por fim, em 2010, há um acórdão do ministro Hamilton Carvalhido (REsp 1.109.905/PR). Todos esses julgados, proferidos pela primeira turma do STJ, entenderam que o instituto do dano moral coletivo não teria previsão nem no art. 6º, VI e VII, da lei 8.078/90 (CDC) e nem no art. 1º da lei 7347/85 (Lei da ACP).
Paralelamente, no entanto, a seção de Direito Privado entendia diferente. Em 2007, após o julgamento do REsp 866.636/SP, por sua terceira turma, relatora a ministra Nancy Andrighi, admitiu-se (milionária) condenação de pagar indenização por danos morais coletivos, no famoso caso das “pílulas de farinha” (ação civil pública sobre dano consumerista). Nessa mesma linha, em 2009, ao julgar o REsp 1.057.274/RS, em ação civil pública sobre direito de idoso, decidiu a segunda turma do STJ, sob a relatoria da ministra Eliana Calmon. Em 2011, essa ratio decidendi foi encampada no julgamento do REsp 1.145.083/MG, lavrado pela segunda turma, sob a relatoria do ministro Herman Benjamin, em ação civil pública sobre dano ambiental. Em 2012, outro acórdão constou do Informativo 490 do STJ (REsp 1.221.756/RJ, Rel. ministro Massami Uyeda, terceira turma, j. 2/2/2012, DJe 10/02/2012). O fundamento desses julgados? Mera releitura das normas acima já mencionadas, para entender-se, basicamente, que a condenação de pagar indenização por dano moral coletivo seria uma evolução da reparação civil, na medida em que a coletividade (ou um grupo de pessoas) seria uma singularidade de valores individuais que também reclama proteção.
A partir daí, em alciônica unanimidade, salvo pontuais reminiscências, entendeu-se que o sistema jurídico brasileiro comporta(ria) tal indenização para todas as hipóteses passíveis de postulação em ação civil pública. Consagrou-se, enfim, o entendimento pelo “cabimento, em tese, da condenação à indenização de danos morais coletivos em ação civil pública.” (STJ, REsp 1.367.923/RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, j. 15/02/2017, DJe 15/03/2017). E assentou-se, como premissa decisória, que o dano moral coletivo possui natureza indenizatória. É nisso, precisamente, que consiste o erro; cumpre, então, desembrulhá-lo.
Na melhor das hipóteses, dano moral coletivo, senão uma construção acadêmica de laboratório - a respirar ar rarefeito -, é uma contradictio in terminis. Afinal:
(a) conforme assentado, dano moral coletivo é uma espécie do gênero indenização;
(b) e toda indenização, por definição, visa ressarcir/compensar o lesado, na medida, tanto quanto isso seja materialmente possível, da extensão da lesão (CC/02, art. 944);
(c) ocorre que o fruto da condenação por dano moral coletivo não reverte a ninguém especificamente; antes, reverte a todos, indistintamente; ou seja, não indeniza, nem compensa a vítima; pior: não reverte nem sequer para a melhoria do serviço ou do produto específico, questionado na ação coletiva – santo desvirtuamento de função!;
(d) e reverter a todos indistintamente, e a ninguém especificamente, significa: o fruto da condenação vai para a sociedade, ou para determinada comunidade, abstratamente considerada (não como um centro de imputação específico);
(e) de modo que, se a condenação em dano moral coletivo reverte-se para a sociedade (não há distribuição/repartição de dinheiro entre as vítimas, nenhuma delas entra na fila para receber sua “fração de dano”), ela não tem, nem pode ter, natureza de indenização, mas, sim, de multa/punição/castigo;
(f) sendo, então, na verdade, uma genuína multa/punição/castigo, teria de haver lei prévia estabelecendo tipo, hipótese de incidência, fato gerador e critério razoável para definição de valor; incide, aqui, o princípio da reserva estrita de lei – uma garantia constitucional (CF, art. 5º, caput, II, XXXIX, e XLVI, ‘c’) vinculante de toda e qualquer emanação do ius puniendi;
(g) não há lei, no entanto – simplesmente não há nenhuma lei –, no nosso ordenamento, prevendo a hipótese dessa extravagante multa por dano moral coletivo, que, aliás, muitas vezes, ao sabor do aplicador, vira uma supermulta (e uma arma apontada contra as empresas); e
(h) e se houvesse essa lei, que não há, o risco de que viesse a ensejar genuínas situações de bis in idem seria enormíssimo: haveria, afinal, a condenação pela conduta vedada em si, devidamente tipificada, e mais o acréscimo, em duplicidade, da condenação pelo dano moral coletivo.
(i) conclusão 1: dano moral coletivo tem se prestado a servir de instrumento de punição; prova disso, dentre vários exemplos que poderiam ser coligidos, é o seguinte trecho de um recente acórdão do STJ, por meio do qual se entendeu que o dano moral coletivo possui a “função de: a) proporcionar uma reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial da coletividade; b) sancionar o ofensor; e c) inibir condutas ofensivas a esses direitos transindividuais.” (STJ, REsp 1.643.365/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 5/6/2018, DJe 7/6/2018).
(j) conclusão 2: dano moral coletivo, tal como está e foi forjado, é um instituto conceitualmente errado, e não só errado, mas desviante de função, ensejando, como há muito tem ensejado, desvirtuamento de finalidade e condenações arbitrárias (não justificadas à sociedade);
(k) conclusão 3: fecha-se, com isso, o círculo hermenêutico, o argumento se completa, e retornamos, para arrematá-la, à precisa premissa do saudoso jurista: dano moral coletivo é incompatível com a ideia de transindividulidade porque a noção de indenização/compensação é eminentemente pessoal, e não social. Se fosse transindividual, já não seria, como não é, mais indenização, mas, sim, multa (e aqui começamos tudo de novo... numa folie circulaire); e
(l) conclusão 4: justapor, de modo desencontrado, noções antagônicas e excludentes num amálgama tropicalista é fazer gambiarra jurídica, criando mulas sem cabeça do nonsense.
Esse mar de água parada precisa, como se vê, ser revolvido novamente. A aceitação do instituto varreu para debaixo do tapete inúmeras perplexidades teóricas (e práticas também!) que ficaram sem resposta. Nesse contexto, retornar à luz da aurora inaugurada pelo Ministro Teori não traduz exercício de escolástica, nem de purismo conceitual. O chamado é mais nobre e altaneiro: trata-se de defesa da liberdade – para a qual sempre voltamos as labaredas do nosso mantra infatigável. Se o Estado quer punir, ele deve sujeitar-se à própria garantia que ele próprio erigiu na Constituição da República contra si mesmo (patere legem ipse tuliste!): se ele, enfim, quer impor, na forma de castigo, o retorno à sociedade de algo que lhe foi tolhido por conta da conduta ilícita de alguém, conforme prévia definição legal, caberá apenas e tão somente ao legislador fazê-lo, em todos os seus aspectos: tipo, hipótese, fato gerador e, sobretudo, valor. Essa valoração não pode ficar em aberto, como um cheque em branco, nem pode ser transferida ao escrutínio do magistrado, muito menos do autor coletivo, notadamente do Ministério Público. Essa, aliás, é a própria noção de pena: entende-se que determinada conduta protege valores maiores e imateriais da sociedade, então pune-se o infrator que não vier a observá-la. Ou seja, a própria pena traz e carrega em si, subjacente, a noção de valor; isso não é próprio, nem exclusivo, do dano moral; os valores mais altos não nascem com o dano moral; é que a ideia de valor está entranhada na própria ideia de direito; porque a ideia de direito está entranhada no próprio homem – como o grande valorador, aquele que se projeta, se afirma e cria. E, numa democracia, existe uma liturgia para a elaboração de leis e a criação de penas.
Admite-se, seja como for, em mar tranquilo – quisera fosse revolto –, o instituto do dano moral coletivo. Esse é o quadro consolidado – por isso lançamos ainda uma vez mais nosso olhar livre diante da realidade, com vistas a ensaiar novas fórmulas de compreensão. Admite-se, aliás, sem muito espanto, uma cada vez mais crescente e desenfreada atividade punitiva do Estado, a torto e a direito, sobretudo a torto, com o atropelo de garantias básicas, o que se tem verificado diariamente, nos mais diversos setores, sobretudo nos setores regulados, nos quais as chamadas deslegalizações não têm sido mais do que a transferência de um cheque em branco sancionatório às agências reguladoras. Tudo isso são sintomas e desvios do nosso publicismo congênito e endêmico (não só in politicis, mas, também, e na origem, in moribus et artibus). Um publicismo que postula e esparge – e com isso, implicitamente, se fortalece e reafirma – soluções estatais para toda e qualquer questão do mundo da vida (o Estado se fazendo indispensável por toda a parte). No final do dia, tudo vira receita estatal; e tudo serve para alimentar o gigantismo (do caixa) do Estado – que prometeu muito e que cumpre quase nada. O que não se sabe, no entanto, o que ninguém até hoje soube dizer – e a curiosidade, aqui, ela sim, pode-se dizer que ganha um avassalador coro coletivo –, é para onde vão, derradeiramente, esses bojudos valores (assim como os das astreintes em ações coletivas) de condenações em dano moral coletivo remetidos aos diversos fundos, criados por leis, para esse fim? Para fundos privados, comme est à la mode, administrados por órgãos públicos? Para financiamento de campanhas – internas e externas? Para a saúde? Educação? Viram lautos honorários de êxito? Para onde? E quem fiscaliza isso? Quem presta contas à sociedade? A lei não diz. A lei ... mas o que importa a lei? E a Constituição? O que vale a Constituição hoje? Quem ainda perde tempo com isso? Nosso queremismo – atávico e reacionário – é muito maior. Vivemos, afinal, num país tropical, com fauna e flora raras, e muita provisão de jaboticabas. Ministro Teori, descansa em paz!
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*Bruno Di Marino é sócio do escritório Basilio Advogados.
*Álvaro Ferraz é advogado do escritório Basilio Advogados.