O “spread” bancário e a lei de recuperação de empresas
A Lei 11.101/05, que trata da recuperação e falência de empresas e empresários, e que está em vigor há praticamente um ano e um mês, chegou sob os auspícios de que haveria, dentre outras utopias, a real possibilidade de soerguimento das entidades em crise (em uma ou mais de suas modalidades) e a alteração da hierarquia de credores em sede de falência se fazia necessária, para que houvesse a redução do custo do crédito. A tentativa de soerguimento de entes em crise, pelo menos até o momento, não tem surtido os efeitos almejados. Nota-se, e não só aqui, mas também em países desenvolvidos, como os Estados Unidos da América, que o processo de recuperação, além de delicado, nem sempre enseja o retorno efetivo da empresa ao mercado competidor. Além disso, e a crise pode ser considerada mundial, os trabalhadores das entidades (em processo de recuperação, ou não), são os mais afetados em seus direitos básicos.
6/9/2006
O “spread” bancário e a lei de recuperação de empresas
Carlos Roberto Claro*
A Lei 11.101/05 (clique aqui), que trata da recuperação e falência de empresas e empresários, e que está em vigor há praticamente um ano e um mês, chegou sob os auspícios de que haveria, dentre outras utopias, a real possibilidade de soerguimento das entidades em crise (em uma ou mais de suas modalidades) e a alteração da hierarquia de credores em sede de falência se fazia necessária, para que houvesse a redução do custo do crédito. A tentativa de soerguimento de entes em crise, pelo menos até o momento, não tem surtido os efeitos almejados. Nota-se, e não só aqui, mas também em países desenvolvidos, como os Estados Unidos da América, que o processo de recuperação, além de delicado, nem sempre enseja o retorno efetivo da empresa ao mercado competidor. Além disso, e a crise pode ser considerada mundial, os trabalhadores das entidades (em processo de recuperação, ou não), são os mais afetados em seus direitos básicos. Aliás, nessa esteira, muitas vezes o hermeneuta se olvida da leitura circunstanciada do artigo 54, parágrafo único, da lei ora em vigor no país. Ainda, os processos de recuperação em vigor (ou já findados) são desgastantes e, insiste-se nesse aspecto, os trabalhadores da entidade da recuperanda, de fato, nem sempre têm seus direitos, inclusive constitucionais, devidamente assegurados por esta.
No tocante a redução do custo do crédito neste país, ressalte-se que, ainda quando tramitava o projeto da nova lei falimentar no Congresso Nacional, alardeou-se aos quatro cantos outra notícia alvissareira. Restou entendido pelo legitimado que “é necessário conferir segurança jurídica aos detentores de capital, com a preservação das garantias e normas precisas sobre a ordem de classificação de crédito na falência, a fim de que se incentive a aplicação de recursos financeiros a custo menor nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico”1. Nem é preciso dizer que a idéia é facciosa, e pode confundir o exegeta num primeiro momento. Nem é preciso dizer que há elevadíssimo custo de crédito no país. Primeiramente, o novo texto normativo apresentou situação há muito não vista no país, invertendo a hierarquia estabelecida pelo art. 102 do Dec.-Lei 7.661/45 (clique aqui), passando o credor com garantia real à frente do fisco, agora com o novo texto previsto no artigo 83 da Lei 11.101/05. Sem adentrar em outros temas não menos relevantes, mas deveras espinhosos, tais como a participação de credores em assembléia e comitê -, detém-se o presente a examinar a questão relativa ao “spread” bancário. A almejada (e utópica, certamente) de ampliação ao crédito e a efetiva redução do custo, pelo menos no Brasil não têm ocorrido. O “spread”2 bancário aqui é elevadíssimo (ainda e sempre), sendo que o país é considerado como o campeão mundial do “spread” bancário, e o paradoxo reside no fato de que as instituições financeiras, aqui instaladas, têm lucro líquido anual recorde. Não é por acaso que o Banco de Compensações Internacionais (BIS), “compara o desempenho dos bancos em diferentes países emergentes e afirma que o Brasil ‘talvez seja o caso mais extremo de spreads altos’. É uma forma elegante de dizer que aqui a diferença entre os custos de captação e as taxas cobradas dos clientes dos bancos é a maior do mundo. É enorme a distância entre o que se cobra no Brasil e nos outros países”3.
Em lúcido e arrojado texto, o eminente constitucionalista Paulo BONAVIDES4 há muito tempo já vinha chamando a atenção de que o “FMI fica acima de todas as leis e de todas as Constituições nos países do Terceiro Mundo e é o FMI que inspira e dita os limites do salário mínimo na economia brasileira”. Com efeito, a globalização capitalista faz com que valores e princípios, inclusive incertos no novo texto legal, sejam totalmente afastados. Mais que isso, verifica-se em alguns casos correntes de reorganização judicial, os direitos mínimos dos trabalhadores (ex-funcionários ou não) são afastados, e a letra da lei é posta de lado. Ainda, fosse aplicado de forma correta e imparcial o preâmbulo da Carta de 1988, certamente haveria maior proporcionalidade, maior prudência no trato das questões envolvendo os direitos sociais. Os direitos constitucionais circunscritos à proteção dos trabalhadores nem sempre são devidamente respeitados, em se considerando que o plano de recuperação judicial deveria observar rigorosamente o contido no art. 54, parágrafo único do novo texto. É fato, por outro lado, que dado o curso espaço de tempo entre a data de início de vigência da Lei 11.101/05 até o presente momento, que prematuro falar em efetiva recuperação das empresas que passaram pelo crivo do diploma legal. Também é de se afastar totalmente a idéia de que a instituição financeira, tendo melhor colocação hierárquica (art. 83), recebendo o que lhe é devido em sede de falência terá melhores condições de emprestar recursos com juros mais baixos. Ora, não se pode afirmar, num primeiro momento, que os bancos sempre recebem seus créditos na falência, pelo contrário; também é ilusória a idéia de que, isso ocorrendo, concederão empréstimos com taxas mais razoáveis, e a hodierna situação financeira nacional vem demonstrando que o país ainda é o campeão mundial (pelo menos em alguma coisa) do “spread” bancário. Nem se olvide que alguns privilegiadíssimos entes (e aqui não se está a falar em credores privilegiados, tal como consta da lei) mesmo em sede de recuperação judicial não se submetem aos ditames do processo. Então, pode-se afirmar, sem medo de erro, que a lei de recuperação de empresas, ao contrário do que se alardeou, não fez com que houvesse, pelo menos até o momento, a redução de juros bancários. A idéia disseminada de que a lei nova traria novos rumos e abriria novas portas para as empresas em crise, até o momento, não passa de mera ficção. O país, terceiro-mundista e ainda presente na periferia mundial, por evidente, acalenta a idéia de diminuir o custo do crédito; se o espírito do legislador (e não da lei) era de alterar a hierarquia dos créditos em falência, abrindo novos horizontes à instituição financeira, a fim de efetuar empréstimos com juros mais baratos, certamente a prática vem demonstrando ao contrário. Com efeito, se a idéia do legislador era imprimir nova mentalidade, afastando-se a idéia liquidatária-solutória, presente na lei de 1945, tem-se que inexistiu, ainda, uma verdadeira ruptura com o passado, pois o novel texto precisa ser devidamente interpretado, e o exegeta menos avisado pode não compreender a dimensão e profundidade daquilo que a lei intitula como “recuperação da empresa e do empresário”. Portanto, uma vez é salientado que o princípio da interpretação da Constituição Federal jamais poderá ser olvidado pelo hermeneuta, sob pena de inversão de valores, quer em sede de falência, quer em sede de reorganização judicial. Pensar a lei com base no passado é estar no passado. Pensar que a entidade em crise poderá navegar na crista da onda da reorganização empresarial, sem o fantasma do juro alto, pelo menos no Brasil, é aceitar a idéia de chispar em direção a uma falência iminente.
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1Cf. parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado da República.
2Vocábulo que em português significa “espalhar”, mas que no âmbito estritamente financeiro comum nada mais é do que a diferença entre as taxas de juros que a instituição financeira paga na captação de recursos no exterior e a que cobra quando empresta numerário ao tomador do empréstimo bancário.
3Cf. matéria publicada no Jornal “O Estado de São Paulo”, do dia 11/9/06. O mesmo vespertino ainda informa que aqui no Brasil o tomador do empréstimo paga, a título de “spread”, 40% do custo final da operação. Segundo a fonte, é o quádruplo do que se paga no país que, num grupo de 22 nações em desenvolvimento, vem em segundo o Peru (sendo que neste o “spread” corresponde a 10% do custo da operação). O Brasil cresce menos porque tem mais despesas públicas, e ainda entende-se que estamos à frente do Chile (cujo “spread” é inferior a 5%). Não se pode continuar pensando que o país da América do Sul está atrás do Brasil, evidentemente.
4Do país constitucional ao país neocolonial. A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, 3ª. ed., p. 9.
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*Professor assistente de Direito Societário e Falimentar das Faculdades Integradas Curitiba; membro do “American Bankruptcy Institute”
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