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O tratamento da Convenção da Cidade do Cabo no âmbito da recuperação judicial da Avianca

Recentemente, com a apresentação do pedido de recuperação judicial pela Oceanair Linhas Aéreas S.A., descrita adiante como Avianca Brasil, a aplicação da Convenção no Brasil vem sendo desafiada pela Justiça brasileira, com evidentes riscos para a credibilidade do país perante a comunidade internacional.

27/2/2019

 

A Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e o Protocolo à Convenção ("Protocolo") ("Convenção") foram firmados e ratificados na Cidade do Cabo, em 2001, com o intuito de criar um arcabouço jurídico independente, uniforme e aplicável aos Estados signatários, tendo em vista o financiamento e o arrendamento de equipamentos aeronáuticos, aeroespaciais e material ferroviário móvel.

A partir de uma norma uniforme e comum aos países signatários da Convenção da Cidade do Cabo, maior segurança jurídica e previsibilidade passam a acompanhar as operações cross-border de financiamento e arrendamento de bens, estimulando o crescimento do mercado desses países, já que há um fortalecimento das relações entre os fabricantes dos bens, seus financiadores e, em última instância, seus usuários.

 

No Brasil, as iniciativas para discussão e aprovação da Convenção, que culminariam na análise pelo Congresso Nacional do texto da Convenção, se tornaram mais acentuadas em 2011, com a participação ativa da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC e de representantes do setor, incluindo linhas aéreas e fabricantes.

 

A Convenção e o Protocolo Aeronáutico foram apreciados e aprovados pelo Congresso Nacional por meio da edição do decreto legislativo 135, de 26 de maio de 2011. Após a etapa de aprovação, o Governo brasileiro depositou junto ao Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado – UNIDROIT, em 30 de novembro de 2011, o instrumento de adesão à Convenção, com suas respectivas declarações.

 

Com vistas à formalização da adesão do Brasil à Convenção, foi publicado o decreto 8.008, de 15 de maio de 2013. Posteriormente, a ANAC regulamentou as disposições aplicáveis à Convenção e ao Registro Internacional de Garantias por meio da resolução 309, de 18 de março de 2014. De acordo com esse normativo, o Registro Aeronáutico Brasileiro – RAB, passou a reconhecer e a executar as Autorizações Irrevogáveis de Cancelamento de Matrícula e Exportação (denominados IDERAs). Tais documentos permitem o cancelamento imediato das matrículas de aeronaves ou equipamentos aeronáuticos, quando solicitado pelo credor após a ocorrência de um inadimplemento contratual.

 

Como vantagens do referido tratado internacional – além da maior segurança e previsibilidade nas transações envolvendo financiadores e companhias brasileiras, destacam-se a maior facilidade em retomar bens perante os tribunais num contexto de inadimplemento contratual ou insolvência e a possibilidade de que arrendatários brasileiros obtenham descontos relevantes (de até 10%) nas taxas de juros de financiamento internacional aeronáutico no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

 

Recentemente, com a apresentação do pedido de recuperação judicial pela Oceanair Linhas Aéreas S.A., descrita adiante como Avianca Brasil, a aplicação da Convenção no Brasil vem sendo desafiada pela Justiça brasileira, com evidentes riscos para a credibilidade do país perante a comunidade internacional.

 

Após o deferimento do pedido de recuperação judicial da Avianca Brasil, em 13 de dezembro de 2018, o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo exarou decisão estabelecendo a suspensão das medidas relativas à reintegração de posse de aeronaves e equipamentos pelo prazo de 30 (trinta) dias corridos, ao final dos quais seria realizada uma audiência de conciliação entre as partes interessadas. Vale notar que a própria lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, a "Lei de Falências", veda, em seu artigo 199, §1°, o estabelecimento de período de suspensão no âmbito de arrendamento de aeronaves ou de suas partes a companhias aéreas brasileiras. Nesse sentido, o estabelecimento desse período de espera já contrariava a Lei de Falências.

 

Não obstante, realizou-se audiência de conciliação em 14 de janeiro de 2019, na qual o mesmo Juízo decidiu por nova extensão de prazo para suspensão das medidas relativas à reintegração de posse de aeronaves até 1º de fevereiro de 2019. Nessa data, nova decisão prorrogou novamente o período de suspensão até a primeira quinzena de abril, quando será realizada assembleia de credores para a deliberação do plano de recuperação judicial.

 

Faz-se relevante mencionar que o Brasil, ao se tornar signatário da Convenção, optou pela Alternativa A da Convenção no que tange a direitos existentes em cenários de insolvência, como a recuperação judicial. De acordo com a Alternativa A, em especial conforme o artigo XI (2) do Protocolo, em um cenário de insolvência o administrador da insolvência, ou o devedor, deverá transferir a posse do bem aeronáutico ao credor até o que ocorra primeiro: (a) o término do período de espera (que, no Brasil, equivale a 30 (trinta) dias corridos); e (b) a data na qual o credor teria direito à posse do bem aeronáutico se o artigo do Protocolo de Aviação não fosse aplicável. Em outras palavras, de acordo com a Alternativa A, escolhida pelo Brasil, a devolução do bem aeronáutico deveria ocorrer em, no máximo, 30 (trinta) dias corridos, salvo se houver prazo menor previsto na lei local.

 

Em conformidade com a Lei de Falências, e como já mencionado, arrendadores de aeronaves e equipamentos aeronáuticos não são sujeitos ao período de espera. Assim, ao se considerar o prazo de 30 (trinta) dias de espera concedido no início do processo, as decisões do Juízo competente na recuperação judicial da Avianca Brasil evidenciaram, imediatamente após a recuperação judicial ser deferida, uma clara violação à Convenção. A prorrogação continuada de tal suspensão somente faz agravar a situação.

 

A possibilidade de falência da Avianca Brasil é assunto de extrema gravidade e que não envolve decisões fáceis, uma vez que impacta a vida de consumidores e funcionários. No entanto, a Convenção e a Lei de Falências não podem ser ignoradas, sob o risco de surgirem consequências ainda mais danosas para o setor aéreo brasileiro. Em especial por estabelecer uma situação de risco jurídico que poderá afetar o arrendamento de aeronaves de modo generalizado.

 

A extensão reiterada do período de espera pelo Juízo não encontra respaldo legal, fere o texto da Convenção e repercute internacionalmente, trazendo consequências perniciosas ao Brasil e aos atuantes do setor no país. Entre essas consequências estão o aumento da incerteza jurídica nas operações de financiamento e arrendamento, o que tende a elevar os valores dos contratos; o desaquecimento do setor, visto que arrendadores estrangeiros passam a repelir oportunidades no mercado brasileiro; e a eventual remoção do Brasil da lista de países aprovados pela OCDE para obtenção de descontos no financiamento de aeronaves.

 

A recuperação judicial da Avianca Brasil e as decisões ocorridas em seu processo já reverberam internacionalmente, gerando incômodo e desconfiança por parte de arrendadores e financiadores estrangeiros. Infelizmente, a reputação do país como ambiente jurídico seguro para investidores na área de aviação está em risco, visto que o Brasil, via Poder Judiciário, passa a ser visto como violador de um tratado internacional devidamente incorporado ao sistema legal, desrespeitando, assim, seu próprio ordenamento jurídico.

Em última análise, a incerteza provocada pelas decisões mencionadas e pelo desrespeito à Convenção da Cidade do Cabo, pode resultar em danos que, em última instância, afetarão o consumidor. Haja vista que o aumento do custo dos arrendamentos e dos financiamentos fatalmente será repassado ao valor das passagens.

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*Angela Cignachi Baeta Neves é advogada do escritório Angela Cignachi Advocacia e mestranda em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo – FADISP.

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