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Judicialização da homofobia: autoridade da alteridade

A autoridade à ação jurisdicional advém in casu da alteridade que está no âmago dos direitos humanos que qualificam nossa democracia constitucional.

28/2/2019

O julgamento recentemente iniciado e ainda em curso sobre a criminalização da homofobia suscita diversas reflexões importantes. Neste ensaio permite-se, na esteira das discussões que vertem das tensões entre constitucionalismo e democracia, destacar o papel do Poder Judiciário neste tipo de demanda que reclama o próprio sentido de proteção dos direitos humanos que está em jogo para nossa democracia.

A tipificação penal do crime de homofobia está em pauta na ADO 26 e no MI 4.733, de autoria respectiva do PPS e Associação Brasileiras de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). O julgamento que já se estendeu por quatro sessões teve voto favorável de quatro ministros – aí incluídos os relatores ministros Celso de Melo e Edson Fachin, para além dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes que os acompanharam – reconhecendo a homofobia, na forma contemporânea do crime de racismo, ante a mora legislativa. O julgamento foi suspenso pelo plenário e aguarda-se sua reinclusão em pauta pela presidência.

A despeito da importante discussão, sobretudo da seara da criminologia, sobre os reflexos do aumento da repressão criminal e seus sujeitos estigmatizados, é importante destacar a miragem simbólica deste reconhecimento. Isto é ainda mais ressaltado no contexto que fez com que o Brasil ganhasse o título de país que mais mata LGBTIs no mundo; só em 2018, 420 vítimas – considerada a subnotificação porque, ausente a tipificação penal, é ainda mais dificultoso este levantamento no sistema de justiça.

Destarte, diante da omissão legislativa, questiona-se qual o papel do Poder Judiciário e quais os fundamentos que angariaram à proteção dos direitos humanos da população LGBTI quatro votos já proferidos, bem como seu impacto na afirmação e consolidação da democracia brasileira contemporânea?

Muito se critica – e com razão – atuação mais proeminente em matéria judicial que, sob as vestes de ativismo judicial desenfreado viola a própria Constituição. Uma objeção ao enfoque judicial é que tratar-se-ia de uma decisão elitista já que é fato que os juízes – em especial aqueles das Cortes Superiores – tendem a ser selecionados entre os setores mais privilegiados da sociedade, enquanto muitos dos indivíduos envolvidos em litígios, em especial penais, provêm de setores sociais mais baixos.

Ainda, dar prevalência ao Judiciário reforça a ideia de última palavra e muitas vezes interrompe – ou mesmo retrocede – em importantes debates sociais. São os retrocessos que se formam a partir da irrupção de uma decisão dentro de um espaço politicamente controverso ou não maduro, como se aponta o tema da homofobia.

As críticas acima são subscritas e necessárias para nos mantermos vigilantes à Constituição e ao tenso equilíbrio entre constitucionalismo e democracia. Todavia, é importante divisar e diferenciar o chamado ativismo judicial do julgamento em curso das ações ADO 26 e MI 4.733.

Em ambos os processos não se descurou do espaço Legislativo, nem lhe subverteu a decisão. No presente caso, passados mais de 30 anos da promulgação constitucional, o que há é vácuo. Vazio de lei que desborda em inconstitucionalidade por omissão, sobretudo, na vida das vítimas de homofobia no Brasil; uma a cada 19 horas, vale destacar.

O acompanhamento legislativo demonstra que as iniciativas legislatórias propostas para garantir direitos LGBTIs tem sua tramitação bastante dificultada. Este silêncio fala muito sobre a homofobia brasileira. Recentemente, parlamentar abertamente vinculado à pauta foi ameaçado de morte e obrigado a deixar o mandato e o país. Eis aí dado exemplificativo deste cenário legislativo abstruso.

Diante disto, ação do Poder Judiciário não viola a regra geral da deferência ao legislativo, espelhada na sua autocontenção, em respeito à democracia. Quando estão em jogo direitos humanos, sobretudo vinculados à setores vulnerabilizados da sociedade, há – com o silêncio eloquente do legislador – o dever jurisdicional de agir.

É nesse influxo que os direitos humanos avultam como um contrapoder, na expressão de Ferrajoli, que marca o processo constante de lutas contra a lei do mais forte. Esta perspectiva combina com a tônica dos direitos humanos que visam equilibrar as relações assimétricas de poder como insurreições contra os despotismos.

A categorização das pessoas com base em diferenças reforça as dissimetrias de poder na sociedade, negando-se ao outro a condição plena de sujeito de direitos. No presente caso, assumir o critério promotor da diferença rompe com o silêncio pronunciando o idioma da alteridade, conforme entoa Nancy Fraser.

No mesmo diapasão aponta Dworkin que são esses direitos são poderosos trunfoscontramajoritários na luta pela construção de uma sociedade mais inclusiva. Complementa o autor que a luta por direitos e pelos direitos – para que sejam levados a sério – é marca das democracias contemporâneas e constitui exigência inarredável da agenda constitucional e externa do direito internacional dos direitos humanos.

Isto porque não se deslembre a inconvencionalidade da omissão legislativa, já que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992, traz no artigo 2.1 o dever de se adotar disposições de direito interno que garantam os direitos e liberdades previstos aos seus cidadãos, combinado com o artigo 1.1. que versa sobre a obrigação estatal de se respeitar direitos. No influxo do que se alega, eis trecho do voto do ministro Decano na ADO 26:

Muito mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas quão atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de suas convicções, orientação sexual e percepção em torno de sua identidade de gênero, é a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a supremacia da Constituição e das leis da República.

No caso das ações ADO 26 e MI 4.733, agir é, portanto, dar cumprimento da Constituição e do direito internacional dos direitos humanos. A autoridade à ação jurisdicional advém in casu da alteridade que está no âmago dos direitos humanos que qualificam nossa democracia constitucional.

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*Melina Girardi Fachin é professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, sócia fundadora do escritório Fachin Advogados Associados.

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