Migalhas de Peso

As inconstitucionalidades do IRDR (incidente de resolução de demandas repetitivas)

Com ou sem a instalação do IRDR, é preciso ter em conta que somente se chega à tutela jurisdicional mediante o exercício do direito processual de ação, ou seja, o direito ao julgamento do pedido formulado, pois nada é pior que um bom princípio mal aplicado, talvez como se revela na boa intenção ao se criar o IRDR.

26/2/2019

1. Recentemente se noticiou o fato de que o STJ está a discutir cabimento do IRDR – incidente de resolução de demandas repetitivas no âmbito daquele tribunal. A ministra Laurita Vaz, monocraticamente, não conheceu de um incidente ali suscitado entendendo que, de acordo com os arts. 976 a 987 do CPC/15 o IRDR é instrumento processual com o inequívoco objetivo de imprimir celeridade e uniformização na solução de demandas de massa, e por isso somente seria "cabível no âmbito dos TJ's e TRF's, quando houver repetição de processos sobre a mesma questão de direito ou nas situações de risco à isonomia ou à segurança jurídica".

 

Assim, a ministra negou provimento ao agravo interno interposto, mas o voto antecipado e divergente do ministro Napoleão Nunes Maia Filho foi no sentido de dar provimento ao agravo, entendendo cabível o IRDR no caso concreto. Já o ministro João Otávio de Noronha compreendeu que é cabível o IRDR no âmbito do STJ, já que não há proibição nos dispositivos legais destinados a regular o instrumento (Migalhas nº 4.547).

 

Mas antes de tudo, seria preciso se debater acerva da própria constitucionalidade do próprio IRDR e seu alcance,1 temas já abordados pela doutrina e até pela jurisprudência, mas sempre a merecer outros olhares pela sua própria novidade.

 

Porque em qualquer prisma que se vislumbre o instituto do IRDR como está previsto no CPC/15, seguramente se pode afirmar que, mesmo ampliando o revogado procedimento da uniformização de jurisprudência, ele é, à toda evidência, uma norma inconstitucional.

 

Vem trazido na essência desse instituo uma nítida concorrência legiferante e uma inconstitucional descentralização da função normativa do Poder Judiciário,2 que só ser cometida ao STF por regra expressa da Carta Magna, e a não admitir interpretação extensiva neste caso. Assim como, igualmente, se viola o direito de ação, a independência funcional dos magistrados, o princípio do juiz natural e da separação dos poderes.3

 

O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) toma como referência o direito dos Estados Unidos da América, quando ali se invoca o já lembrado stare decisis, que se justifica através do seguinte quadrinômio: igualdade, segurança, economia e respeitabilidade. Porém, não passa de mais uma tentativa de solução para o inegável, aflitivo e velho problema da sobrecarga de atribuições do Judiciário como um todo.

 

Utiliza como modelo o Group Litigation Order britânico e ainda o procedimento do Musterverfahren do direito alemão, mas de todos eles o IRDR se afasta, principalmente deste último, que é uma espécie de incidente coletivo dentro de um processo individual, a preservar a multiplicidade genérica, a identidade e a especificidade do processo particular.4 

 

Nos julgamentos do IRDR, a coisa julgada material se formará em cada processo em que a tese jurídica fixada no incidente for acolhida pelo juiz natural e sua eficácia subjetiva observará se a demanda pendente era individual ou coletiva.

 

A tese jurídica será aplicada a cada processo pendente, individual ou coletivo. Ao contrário do modelo alemão do Musterverfahren, aqui não se permite que os litigantes individuais exerçam o direito de opt out para não serem atingidos pela decisão, previsão esta que, no modelo alemão, foi incluída em 1º de outubro de 2012, com a nova redação da lei para a KapMuG Musterverfahren no mercado imobiliário, com a previsão de acordo e de Austritt (opt out ou exclusão). No sistema brasileiro, também não adota o sistema de opt in. A decisão afeta pro et contra todos os processos repetitivos em tramitação, sem uma "válvula de escape" ao litigante em relação ao julgamento padrão.5

 

A exemplo do revogado procedimento denominado uniformização de jurisprudência (arts. 476/479 do CPC/73), não se trata de recurso, pois guarda em si uma função preventiva, na qual se fixa uma tese jurídica de molde a evitar a divergência jurisprudencial,6 principalmente no âmbito do próprio tribunal. Daí porque, se ausente quaisquer destes elementos do art. 976, descabida é a invocação e a aplicação do incidente.

 

Em suma, se trata da transcendência local, que é a repetição de processo com o mesmo objeto de controvérsia em questão material ou processual.7 

 

Além disso, também é indispensável que a matéria tenha sido debatida em mais de um processo – senão não haveria a repetição – e com posições antagônicas no mesmo tribunal acerca de um ou mais pontos, tanto de direito material como de direito processual.

 

E se algum processo estiver em tramitação, mesmo na primeira instância, verificada sua similitude com algum incidente instaurado de demandas repetitivas, deve se dar a suspensão de sua tramitação (inciso IV do art. 313 do CPC), independente de requerimento de qualquer das partes.

 

Ademais, esta é outra inconstitucionalidade, pois encontrando o feito na instância de origem, haveria supressão de instância e se romperia com a liberdade de consciência e de julgamento do juiz,8 diante da avocação daquele processo pelo tribunal para instauração do IRDR. Uma vez que não há como suspender processos pendentes, em que jurisdicionados estão exercendo seu o seu direito fundamental de ação, para vinculá-los a uma decisão proferida em incidente que não lhes confere o direito de falar e de influenciar a Corte.9 

 

2. Realmente é sabido que o sistema jurídico hoje é composto tanto por lei, como por princípios, sejam estes expressos ou implícitos. A ordem jurídica, portanto, não se esgota apenas naquilo que a lei traduz, mas segue adiante. Integram a ordem jurídica, além da lei, o costume, a jurisprudência e os princípios gerais de direito,10 que são fontes subsidiárias para aplicação do direito (art. 4º da LINDB – lei de introdução às normas de direito brasileiro, decreto-lei 4.657/42).

 

Habitualmente, aqueles que defendem a aplicação do IRDR argumentam com a necessidade de observância aos precedentes como forma de prestigiar, dentre outros, o princípio da igualdade na aplicação da lei, que seria uma garantia constitucional.

 

Entretanto, a exegese e a aplicação de uma garantia constitucional não se fazem de maneira isolada, porque de nada vale esta ou qualquer outra garantia, quando, igualmente, não se lhe asseguram a observância ao devido processo legal, a separação dos poderes, a competência do juiz natural e sua independência funcional.

 

Dever-se-ia, na verdade, estabelecer como requisito para a instauração de tal incidente a existência de prévia controvérsia sobre o assunto,11 mas não é o que está na lei, ainda mais a configurar a descabida e inconstitucional função legislativa dos tribunais.

 

Seria mais adequado prever o incidente quando já houvesse algumas sentenças antagônicas a respeito do assunto. Ou seja, para que fosse cabível o incidente, seria mais adequado haver, de um lado, sentenças admitindo determinada solução, e por outro lado, sentenças rejeitando a mesma solução. Enfim, haveria uma controvérsia já disseminada para que, então, fosse cabível o referido incidente.

 

Com ou sem a instalação do IRDR, é preciso ter em conta que somente se chega à tutela jurisdicional mediante o exercício do direito processual de ação, ou seja, o direito ao julgamento do pedido formulado, pois nada é pior que um bom princípio mal aplicado,12 talvez como se revela na boa intenção ao se criar o IRDR.

        

É da essência do ser humano a busca incessante pela Justiça, daí a tentativa de produzir estereótipos fixos, do qual o IRDR vem a ser mais um infeliz e triste exemplo. Pois lutar pela Justiça é mais que aplicar uma série de critérios que não estão apenas na forma de interpretação da norma, mas nos valores e no compromisso do direito com a civilidade.13

        

Sem olvidar, ainda, de que isto poderá causar uma perniciosa e inconstitucional discricionariedade dos tribunais superiores em escolher quando determinadas temáticas deverão ser dirimidas e quando deverão ser mantidas em suspensão de sua tramitação em claro prejuízo ao jurisdicionado e manutenção do estoque passivo de processos pendentes de julgamento. Todavia o que se obteve com a IRDR é a gênese e a formação despótica do direito,14 podendo a norma jurídica ser criada por aqueles que, na verdade de um Estado democrático, não guardam atribuições para esta função que é própria do Legislativo.

 

3. Em vista do que foi exposto, toda e qualquer decisão tomada nestes incidentes é originariamente nula, podendo ser reconhecida a qualquer tempo e instância, até mesmo de ofício, diante da notória inconstitucionalidade e contra qual decisão se deve resistir, tanto pelo uso regular dos recursos ou do mandado de segurança, como pela justificável desobediência.

 

Porque a tirania travestida de ilegalidade perpetrada por qualquer dos poderes constituídos, em vez de ser ato de autoridade, é abuso ou ato de força, traduzindo-se, por isso, em violação ao direito e à Justiça. Desse modo, a resistência que se faça a esta tirania, não o é à autoridade, mas, simplesmente, à própria injustiça, ao abuso e à ilegalidade, razão pela qual é plenamente lícita, correta e legítima.15

_________

1 NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil, novo CPC – lei 13.105/15, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1.966. SCHELEDER, Adriana Fasolo Pilati. A inconstitucionalidade da aplicação do incidente de resolução de demandas repetitivas, tese de doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2015. PERIM, Paula Abi-Chahine Yunes. IRDR deve vincular também decisões dos juizados especiais, na Revista Consultor Jurídico, 24 de junho de 2016.

2 VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Direito e processo do trabalho, Belo Horizonte: Del Rey; 1994, p. 299.
TALAMINI, Eduardo. Objetivação do controle incidental de constitucionalidade e força vinculante (ou "devagar com o andor porque o santo é de barro"), em aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins (volume 12), coordenação: Nelson Nery Jr e Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 162.

3 ABBOUD, Georges. CAVALCANTI, Marcos de Araújo. Inconstitucionalidades no IRDR e os riscos ao sistema decisório, na Revista de Processo 240, fevereiro de 2015, p. 230/237. MACHADO, Daniel Carneiro. A (in)compatibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas com o modelo constitucional de processo: a participação democrática do juiz e das partes na construção do provimento jurisdicional, tese de doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 2015, p. 258/257. SIMÃO, Lucas Pinto. Disponível em:  O incidente de resolução de demandas repetitivas ("IRDR"), sem data, p. 39/43. 

4 CABRAL, Antônio do Passo. O novo procedimento-modelo (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações coletivas, na Revista de Processo 147, maio de 2007, p. 125. SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a proteção da coletividade consumerista: uma análise crítica do novel instituto, na Revista de Direito do Consumidor 109, janeiro/fevereiro de 2017, p. 276.

5 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Ações coletivas e incidente de resolução de demandas repetitivas: algumas considerações sobre a solução coletiva de conflitos, na Revista Jurídica Direito & Paz, nº 35, 2º Semestre de 2016 p. 277.

6 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 331/332.

7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Súmulas vinculantes, na Revista Forense nº 347, julho/setembro 1999, p. 55. ARAÚJO, José Henrique Mouta. Incidente de causas repetitivas no projeto do NCPC – aspectos importantes, Revista Síntese – Direito Civil e Processual Civil, nº 85, setembro/outubro 2013, p. 71/72

8 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos, no Temas de direito processual: 9ª (nona) série, São Paulo: Saraiva, 2007. p. 311. YOSHIKAWA. Eduardo Henrique de Oliveira. O incidente de resolução de demandas repetitivas no novo Código de Processo Civil. Comentários aos arts. 930 a 941 do PL 8.046/10, na Revista de Processo 206, abril de 2012, p. 245. GONÇALVES, Marcelo Barbi. O incidente de resolução de demandas repetitivas e a magistratura deitada, na Revista de Processo 222, agosto de 2013, p. 227.

9 MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, volume XVI, 2018, p. 44.

10 PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao Projeto de lei 8.046/10 – proposta de um novo Código de Processo Civil, org.: Elaine Harzheim Macedo, Porto Alegre: EdiPUCRS, 2012, p. 534.

11 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Anotações sobre o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas previsto no projeto do novo Código de Processo Civil, na Revista de Processo 193, março de 2011, p. 258.

12 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo – Influência do direito material sobre o processo, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 50. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Miradas sobre o processo civil contemporâneo, em Temas de Direito Processual, 6ª série, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 57. VIEIRA, José Marcos Rodrigues. Da ação cível, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 71/72.

13 NERY, Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade da doutrina e o fenômeno da criação do direito pelos juízes, em Processo e Constituição, em Processo e Constituição – estudos em homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, coordenação: Luiz Fux, Nelson Nery Júnior, Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 428/429.

14 SILVA, José de Anchieta. A súmula de efeito vinculante amplo no direito brasileiro, Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 126. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A súmula da jurisprudência predominante do STF, em teses, estudos e pareceres de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. vol. 2, p. 220.  MACHADO, Daniel Carneiro. A (in)compatibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas... op. cit., p. 51.

15 PAUPÉRIO, Arthur Machado. O direito político de resistência, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 18 e 261.

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*Adriano Perácio de Paula é advogado, doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG e professor de Direito Processual Civil.

 

 

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