De geração em geração
Todos no bairro já conhecem essa lição...
O cano do fuzil
Refletiu o lado ruim do Brasil
Nos olhos de quem quer
E quem me viu, único civil
Rodeado de soldados
Como seu eu fosse o culpado
(...)
Era só mais uma dura
Resquício de ditadura
Mostrando a mentalidade
De quem se sente autoridade
Nesse tribunal de rua! É!
Nesse tribunal! Nesse tribunal de rua!
(O Rappa).
O ministro Sérgio Moro apresentou projeto de lei “Anticrime” que em breve deverá ser pautado no Congresso Nacional. Entre outras propostas, pretende-se modificar o dispositivo do Código Penal que regula a legítima defesa (art. 25). Neste artigo, analisar-se-á, então, a proposta de alteração da clássica legítima defesa, contidas no item IV do projeto.
I - A proposta de alteração
Na apresentação do projeto, e também massivamente repetido nas entrevistas do ministro, deixa-se claro que há novos inimigos nacionais, quais sejam, os membros - ou supostos membros - de organizações criminosas. Estes são os indesejáveis da vez utilizados como pretexto para endurecer penas e propor mais leis penais.
Baseado nessa premissa, deseja-se alargar os atuais contornos da legítima defesa e, com isso, excluir a ilicitude na seguinte hipótese:
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa:
I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem.
Como destacado, insere-se o verbo prevenir – ou seja, permissão dada para o agente antecipar a algo que porventura acontecerá.
Seria a legítima defesa presumida.
Para o prof. Luís Greco, a modificação é supérflua e amadoristicamente redigida, pois:
Toda legítima defesa serve para “prevenir”, no sentido de que a legítima defesa não é uma reação post facto. Ela só pode ocorrer em momento imediatamente anterior (agressão iminente) ou concomitante (agressão atual) à agressão, nunca depois; não existe legítima defesa punitiva. Nesse sentido, ela tem uma orientação preventiva, não repressiva1.
Entretanto, essa alteração não fora inserida de modo despropositado, uma vez que se permite entender que o agente de segurança tem licença para matar, preventivamente, quem porte arma (qualquer calibre), em puro juízo de futurologia.
Não obstante, a alteração proposta fere o racional de normas nacionais e internacionais orientadas por premissas opostas: os agentes de segurança, que são treinados e capacitados no uso e manuseio de armas de fogo e em situações de confronto, se submetem a regras de legítima defesa mais restritiva - ou seja, por em tese serem mais preparados, os agentes devem usar arma de fogo somente diante de situação extrema, quando não haja outros meios suficientes para dominar e deter2, sempre pautados pelo princípio da proporcionalidade.
O grande problema que se coloca nesse caso é entender a lógica punitiva de o Estado deixar à mão de seu braço armado a decisão de quem merece viver ou morrer, em uma “zona de absoluta indeterminação entre a anomia e o direito, em que a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em uma mesma catástrofe”3.
Em suma, com o projeto, sob pretenso ato de defesa, estar-se-á legitimando a pena de morte.
II - Tribunal de rua
O que mais chama a atenção no projeto do ministro da Justiça, além da flagrante inconstitucionalidade da proposta, é a total ausência de percepção à realidade.
Não sem razão, temos a polícia que mais mata e mais morre no mundo.
Para se ter uma ideia, em recente reportagem do dia 7/7/18, o jornal O Popular trouxe dados alarmantes. Goiás registrou, nos primeiros 6 meses de 2018, 233 mortes durante ações policiais4.
O número de pessoas mortas em confrontos com a polícia, em Goiás, no ano de 2017, foi de 270 mortes, quase o triplo de 2014, em que houve 96 mortes, e mais de cinco vezes que 2011, que registrou 52 mortes.
Para legitimar essas condutas, a justificativa mais comum é justamente de estar-se diante à legítima defesa, própria ou de outrem. Todavia, algumas questões nos confronto vêm chamando a atenção. Uma delas é o fato de ser praticamente nulo o índice de agentes públicos vitimados nas intervenções.
Não à toa, as polícias brasileiras são consideradas uma das mais violentas do mundo. Em dados gerais, entre 2009 e 2016, quase 22 mil pessoas foram mortas por algum agente dessas forças de segurança5. A polícia matou, em 2016, uma pessoa a cada 2 horas – totalizando 4.224 pessoas6. Por sua vez, em 2017, conforme vem tornando-se tradição, houve aumento de 20% desse número, o que perfaz 5.144 mortes7. As vítimas, sem qualquer surpresa, são as preferenciáveis da criminalização secundária: homens, jovens e negros.
Para se ter ideia da gravidade dessas ações, em pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP, apontou-se a existência de crimes capitais contra crianças de 10 e 11 anos8. São crianças, segundo os policiais, insurgindo contra patrulha treinada e armada.
No contexto histórico, essas ações ganharam força na década de 60, pois foi o tempo que houve uma reconfiguração da moral. O que era visto como abjeto e cometido por pessoas desequilibradas passa a ser considerado instrumento de controle, um meio de se estabelecer a ordem. Naquela década, então, surgiu o Esquadrão da Morte (organização paramilitar), e a atividade ostensiva da ROTA (tropa especial do Comando Geral da Polícia Militar) foi intensificada9. Os homicidas, assim, passaram a ideia de que só matavam “quem merecia morrer”, por isso essa metodologia passou a ser disseminada como forma de proteção à sociedade, espalhando-se rapidamente.
Apesar dessa ações, toda conduta policial deve passar pelo escrutínio do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Ciente disso, a Anistia Internacional checou 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial no ano de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, e descobriu que, até abril de 2015, portanto mais de três anos depois, 183 investigações seguiam em aberto10, embora existam estudos sobre o uso da força letal que concluíram, de forma unânime, que houve uso excessivo da força letal/execuções sumárias11 nos casos analisados.
Nesses estudos, por meio das evidências médico-legais, conclui-se que 46% dos corpos tinham pelo menos quatro tiros; 61% dos corpos tinham recebido pelo menos um tiro na cabeça; 65% das vítimas apresentaram pelo menos um tiro nas costas; além de haver ainda casos de tiro à queima-roupa (de curto alcance), um sinal mais claro de execução.
Na justiça, de 301 processos penais encontrados, 295 foram arquivados. Em 6 casos, o Ministério Público ofereceu denúncia contra os policiais, que resultou, posteriormente, em absolvição, mesmo em casos com disparos à queima-roupa e histórias inconsistentes12.
Poder-se-ia indagar, então, quais são os motivos da existência de tamanha dificuldade na solução/punição desses casos?
Ao abordar o tema, o desembargador Sérgio Verane, em Assassinatos em nome da lei, asseverou que:
O aparelho repressivo-penal e o aparelho ideológico-jurídico integram harmoniosamente. A ação violenta e criminosa do policial encontra legitimação por meio do discurso do Delegado, por meio do discurso do Promotor, por meio do discurso do Juiz. Se as tarefas não estivesses divididas e delimitadas pela atividade funcional, não se saberia qual é a fala de um e qual é a fala de outro – porque todos têm a mesma fala, contínua e permanente13 (grifamos).
Afinal, a polícia mata, mas não mata sozinha.
Por tudo isso, a nossos ver, neste ponto, o projeto não pode prosperar, pois ampliar a legítima defesa significa ver o agente isento de pena mesmo à falta dos requisitos objetivos. É, deveras, chancelar a agentes um poder à margem da lei. O anteprojeto, como visto nos dados acima, caminha na contramão de um problema nacional crônico – que demanda remédio, e não estímulo14.
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1 GRECO, Luís. Análise sobre propostas relativas à legítima defesa no “Projeto de Lei Anticrime”.
2 Nota técnica do Instituto Carioca de Criminologia.
3 AGAMBEN apud D`ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Revan, 2015, p. 26.
4 Disponível em: Clique aqui.
5 Editorial. IBCCRIM, Boletim n. ° 309. Agosto, 2018.
6 Ibid.
7 Anuário brasileiro da segurança pública. Disponível em: Clique aqui.
8 Disponível em: Clique aqui.
9 Disponível em: Clique aqui.
10 Anistia Internacional. Você matou meu filho! homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015, p.06
11 CANO, Ignácio. Uso e Abuso das forças letais pelas polícias brasileiras. UNIFESP, 2017, p. 8.
12 Ibid., pp. 13/14.
13 VERANE, Sérgio Apud D`ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de janeiro: Revan, 2015, p. 21.
14 Nota técnica do Instituto Carioca de Criminologia.
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*Alan Kardec Cabral Jr é mestrando em Direito pela UFG, especialista em processo penal, direito penal e criminologia pelo ICPC, advogado no escritório Rogério Leal Advogados.