Introdução
A Lesão Iatrogênica é uma lesão involuntária no tratamento médico, ela viola o princípio mais antigo da medicina "primum no nocere – primeiro não fazer mal".
Mais especificamente, uma lesão iatrogênica injusta e indesculpável, viola um dos quatro pilares do dever médico, de não fazer mal, (junto com benevolência, justiça e autonomia), na estrutura internacional moderna da ética médica.
No direito médico internacional, (common law e civil law), não importa se a lesão é iatrogênica, os advogados que atuam nessa área, se importam apenas se o ato médico foi um ato "negligente1 - divergência deliberada do padrão".
Os médicos, são legalmente responsáveis por lesões causadas por negligência, eles não podem falhar no uso de cuidados razoáveis, significa, que o cuidado médico realizado por ele, não pode cair do padrão aceito por sua especialidade e comunidade médica.
Desde que um médico trate um paciente com um cuidado razoável, no caso, não cair o padrão esperado da especialidade e comunidade médica, ele não irá cometer um evento adverso evitável, mesmo, se o médico infligir uma lesão iatrogênica.
Entretanto, a lesão iatrogênica, é vista de forma diferente para a ética médica e o direito.
A Origem da Iatrogenia
O próprio termo, lesão iatrogênica, é normalmente desconhecido pelos advogados, e por qualquer pessoa fora do ramo da medicina. Mesmos, aqueles no círculo médico, costumam usar o termo de forma errônea.
O próprio termo, Iatrogenia, vem do grego antigo, derivado da combinação das palavras Iatros e Egenomen. Iatros vem de “curar, tratar”, ela foi usada pela primeira vez no conto de Homero (Ilíada), quando o líder Idomeneus, pede ao herói Nestor, que resgate dos Troianos, Machaon (Filho de Asclepiu), considerado o melhor medico da Grécia, dizendo: “O curandeiro (iatros) é um homem que vale muitos homens, por causa do seu conhecimento de tirar as flechas e tratar as feridas".
Egenómen é a pronuncia no passado do verbo gignomai, que significa: “vir a ser”2. “Iatrogenesis” é algo cujo gênesis (origem) foi um iatros, ou seja, "algo que veio por causa da cura". Costumamos usar a expressão lesão iatrogênica, como uma lesão causada de forma não intencional por um tratamento médico.
O dano causado por uma doença ou trauma, não é uma lesão iatrogênica, mesmo que a doença ou o trauma poderia ter sido aliviado por tratamento médico.
Um cirurgião, que cortou um nervo e deixou o paciente com uma deficiência neurológica, infligiu um dano iatrogênico, enquanto um dermatologista que deixou de diagnosticar um melanoma, que eventualmente se espalhou e levou a morte do paciente, não.
Nesses exemplos, nós não sabemos, nem se o cirurgião ou o dermatologista foram negligentes1.
A negligência médica no direito médico internacional, pode estar no agir ou na falha de agir, ela pode estar em fazer algo ou deixar de fazer. Dizemos, que o evento adverso evitável /erro médico, não depende se a lesão for iatrogênica ou não.
A lesão iatrogênica, não derivada da negligência, está sendo cada vez mais comum nas ações de erro médico em países como EUA, Inglaterra, França, Alemanha e Itália, normalmente, os médicos deveriam vencer, e normalmente vencem, e isso vem se tornando o padrão, como o famoso caso dos EUA de 1872, Jacobs vs Cross.
Paciente Henry Jacobs
Na data de 17 de julho de 1871, por volta das 18h00, Henry Jacobs, um menino de 15 anos que vivia em um pequeno Rancho no interior de Minnessota, tentou, junto com um amigo, subir em um poste de dois metros perto de sua casa, ele acabou caindo e torcendo o pulso.
Um cirurgião, chamado de Edwin Cross, foi chamado para dar uma olhada na mão de Henry. O Dr. Cross, chegou ao local pelas 21h00, examinou o Henry, e disse aos seus pais, que os ossos dos dois braços haviam fraturado.
O braço do Henry, não estava inchado, e o Dr. Cross, tentou realinhar o osso, (redução fechada), quando a manobra falhou, Dr. Cross, disse para a família, que não conseguiria colocar o braço no lugar naquela noite, “os ossos foram atraídos em si”, ele tinha que esperar os músculos relaxarem.
O Dr. Cross, colocou atadura e uma tala em Henry, e instruiu aos seus pais, para manter o braço com água quente por uns dias, o que eles fizeram.
Dr. Cross, retornou na manhã do dia seguinte, de acordo com a família do paciente, a mão de Henry não estava inchada, e a cor era igual a outra mão. Dr. Cross, percebeu, no entanto, que o pulso do Henry, caiu... ou seja, que o pulso das artérias não tinha restaurado e que a mão dele estava fria, flácida e úmida.
Em todo o momento, Dr. Cross, disse a família, que o braço do Henry, estava bem e que ele iria repetir a redução fechada. Com o Henry, deitado no sofá, Dr. Cross, sentou na cadeira ao seu lado, pegou o dedo médio do Henry com uma mão, e segurou o pulso dele com a outra mão, ao mesmo tempo, pressionou com a bota em cima do braço do Henry, puxando com bastante força, até o osso voltar para o lugar.
Depois que o Dr. Cross, concluiu que o osso estava no lugar certo, ele pediu para o pai do paciente segurar a tala, enquanto ele enfaixava o paciente. Nesse ponto, o pai do paciente, lembrou que a mão do filho estava com uma cor natural e parecia natural, com uma temperatura normal.
Mas, naquele momento, Henry disse que começou a doer quando estava sendo enfaixado, ele perguntou ao Dr. Cross, se não estava muito apertado. Seu pai também testemunhou essa pergunta, Dr. Cross, disse que estava apertado, mas estava correto. O médico, ficou na fazenda por alguns minutos, após realizar o procedimento, no intuito de acompanhar como o garoto reagiria.
De acordo com o Henry, sua mão começou a doer muito, principalmente na palma da mão. Dr. Cross, perguntou ao Henry, se ele conseguia aguentar, Henry respondeu: “eu consigo se for para o meu próprio bem”. Dr. Cross, saiu satisfeito.
Meia hora depois que o Dr. Cross, saiu, Henry, continuou sentido dor, mas “depois de um tempo a dor parou”. Em torno, das duas da tarde do mesmo dia, Henry, voltou a sentir dor. E a noite, seu polegar começou a mudar de cor, se tornando um roxo claro, ficando cada vez mais escuro, no dia seguinte, o polegar continuava a ficar escuro cada vez mais, "quase igual o preto da bota".
Dr. Cross, retornou para ver Henry, na sexta de manhã. Ele olhou o polegar e começou a tirar toda a bandagem o mais rápido que podia. A mão dele não estava inchada, mas de acordo com sua mãe, “parecia que tinha morrido”. Três dedos estavam pretos, e o dedão além de preto, também estava inchado, enquanto sua mão estava fria.
Com a tala e as bandagens retiradas, o braço do Henry, estava com o dobro do tamanho, e tinha bolhas formadas no braço, pulso e na mão.
Quando o Dr. Cross, retornou no sábado, o pai de Henry, perguntou a ele, se ele não deveria trazer outros médicos para consultar o menino, para ver se não tinha um jeito de salvar a mão dele. E o Dr. Cross, respondeu: “você pode trazer quantos médicos que quiser, até uma dúzia se quiser, mas todos irão dizer a mesma coisa que eu irei lhe dizer”.
Na segunda feira, a mão de Henry, começou a emitir um odor muito forte, Dr. Cross, entregou ácido carbólico para a família usar.
A mãe de Henry, lembrou que o Dr. Cross, disse: “Que ele conseguiu aquilo em St. Paul, em Chicago, e sem o ácido carbólico, não iriamos conseguir ficar lá por causa do cheiro, era como se um carneiro tivesse sido abatido no chão”.
A mão direita do Henry, foi amputada pelo Dr. Cross, na quarta-feira, 22 dias depois que ele caiu do poste.
O caso de Jacobs vs Cross
A família Jacobs, processou o Dr. Cross, em março de 1872, em Minnesota. Na ação, eles alegaram que o Dr. Cross, foi negligente, imprudente e agiu com imperícia, e por causa dessa grosseira falta de cuidado, ausência de tratamento com os remédios adequados, e da ausência da aplicação da tala e da bandagem de forma adequada, a mão do Henry, ficou sem vida, sem circulação sanguínea ao ponto de precisar ser amputada.
A família alegou, por causa da dor que foi causada ao Henry, e a angustia deixada, deveriam ser indenizados em U$10 mil dólares, o que na época, poderia ser considerado uma grande soma (U$ 206 mil dólares atualmente).
Dr. Cross, negou as alegações da família sobre negligência, ele afirmou que: “a mão direita ficou naquele estado sem vida, e perdeu a circulação sanguínea e precisou ser amputada, por outros motivos, que não seriam ações ou omissões em seu tratamento".
O julgamento iniciou em outubro de 1872, a família e amigos testemunharam, Dr. Cross, juntou nove médicos de Minnesota para testemunharem a seu favor. E todos afirmaram, que fariam a mesma coisa que o Dr. Cross, fez, e que a conduta do Dr. Cross, não causou danos ao menino.
O testemunho de um dos médicos, Dr. Mayo, chegou a afirmar: "não vi nada que faria mudar o tratamento".
Sobre a causa da mão, ele disse ainda: “Minha opinião é que a mão foi perdida por uma lesão nas artérias, a razão dessa opinião, é que no momento da fratura, as artérias estão ligadas diretamente aos ossos e a carne que a envolve, que é cerca de dezesseis polegadas de espessura, analisando a fixação dos músculos, e pela natureza da fratura nos ossos, deve ter rompido essas artérias. Eu ouso dizer que nenhuma habilidade humana poderia ter salvo a mão dele"
No final do julgamento, o juiz Waterman, instruiu o júri sobre a lei que deveriam aplicar, e às provas que ouviriam, o júri retirou-se para decidir. Em 18 de outubro de 1872, o júri proferiu seu veredito a favor do Dr. Cross. A família Jacobs recorreu. Entretanto, a suprema corte de Minnesota, confirmou a sentença, e o caso foi arquivado.
As consequências para o direito médico do caso Jacobs vs Cross
O juiz Waterman, instruiu o júri sobre a lei de negligência do estado de Minnesota.
Minnesota tem como sistema jurídico, o common law, as leis baseadas na idade média da Inglaterra, oposta do civil law, as leis construídas no império Romano. Com exceção do estado de Lousiana, os Estados Unidos, Inglaterra, Canada, Austrália, Índia, e os países que fizeram parte do império britânico possui esse sistema.
A lei medieval inglesa, se desenvolveu lentamente, da mesma forma que desenvolveu a medicina. A mágica, superstição e astrologia demoraram para ceder a ciência.
No caso de Forest vs Rolf, Dalton and Harwe (London,1424), por exemplo, a corte absolveu médicos de mala praxis, sob a justificativa que a lesão foi causada por outras coisas, no caso “a constelação malévola de Aquários”.
Foi no Iluminismo, no entanto, que a doutrina se tornou uma fonte reconhecível da moderna concepção do common law, sobre a responsabilidade civil, é nesse período, que surge, a criação da expressão erro médico "medical malpractice".
William Blackstone, em seus comentários sobre as Leis da Inglaterra (1768), escreveu sobre “Lesões afetando a saúde de um homem”.
O autor afirma: “mala práxis é um grande delito e ofensa na common law, seja por curiosidade e experimento, ou por negligência, porque quebra a confiança que a parte tinha colocado em seu médico, e tende para a destruição do paciente".
Uma das grandes consequências desse caso, é que desde o início dos Estados Unidos, a lei aplicável a uma alegação de negligência médica (erro médico / evento adverso evitável) tem sido a lei do estado de Minnesota, no caso de Jacobs vs Cross, não uma lei federal.
A lei nos 50 estados americanos, varia ligeiramente, e evoluiu um pouco desde 1872, mas é principalmente consistente em todos os estados e continua a mesma. Tanto agora, como em 1872, a lei exige que uma ação de Erro Médico / Evento Adverso Evitável, o Requerente, precisa provar todos os 3 elementos do pedido: responsabilidade, nexo de causalidade e a lesão / danos.
Quanto à responsabilidade por negligência, em 1872, o Juiz Waterman, instruiu o júri, em parte, que “[um] médico ou cirurgião está sob obrigação, e é seu dever no tratamento de um caso, empregar habilidade e diligência razoável como é normalmente exercido em sua profissão, e no julgamento deste grau de habilidade, deve-se ter em conta o estado avançado da profissão da época”.
Hoje, em Minnesota, juízes instruem júris de forma semelhante: “Negligência é o fracasso em usar cuidados razoáveis sob as circunstâncias. Cuidados razoáveis, por parte de um médico, são cuidados que atendam a um padrão de cuidado aceito, de um médico que esteja em uma especialidade semelhante, de uma comunidade semelhante, usaria ou seguiria em circunstâncias semelhantes".
Quanto à causalidade, em 1872, o juiz Waterman, instruiu o júri de que “a menos que o júri achar que a perda da mão do Autor foi causada por tal negligência, imprudência/falta de cuidado, ou imperícia/inabilidade, um veredito deveria ser procedente para o Réu".
Essa é a precisa declaração da atual lei de Minnesota, mas agora os juízes adicionam uma definição: "Uma causa direta" é uma causa que teve uma parte substancial na causa sobre a lesão.
Quanto a lesão/dano, em 1872, o juiz Waterman, instruiu o júri de que o "Demandante reclama indenização unicamente por conta da perda de sua mão, a perda da mão é o objeto da ação”, e foi pedido ao júri que determinasse “Quanto deve o Réu pagar ao Demandante a título de indenização pela lesão sofrida".
Hoje, os juízes de Minnesota instruem os júris que eles devem determinar a “Soma de dinheiro que irá de forma justa e adequadamente compensar uma pessoa” por lesões causadas por negligência, que pode incluir “dor, incapacidade e desfiguração”.
A lei, quanto, a cada um desses 3 elementos, permaneceu estável durante séculos, mas não foi completamente estática. Quanto à responsabilidade, um dos 3 elementos exigidos, vem ocorrendo inúmeras ações em vários países ocidentais sobre, “falha no consentimento informado” que são caracterizados em Minnesota, e vários outros estados dos EUA, como um tipo de negligência, essas ações tornaram-se mais robustas no direito médico moderno.
Quanto ao nexo de causalidade, muitos tribunais estaduais relaxaram o ônus da prova, no quanto a conduta negligente de um médico contribuiu para uma lesão de múltiplas causas. E, quanto a lesões / danos, os tribunais criaram um tipo inteiramente novo de lesão compensável, chamada de “perda de uma chance”.
Em 1872, uma lesão tinha que ser real ou provável antes que fosse compensável. Agora, em inúmeros países do mundo, e obviamente em Minnesota e 21 outros estados dos EUA, junto com o Distrito de Columbia, a teoria da perda de uma chance de sobrevivência ou recuperação é compensável.
Isto é, se a negligência de um médico fez com que a probabilidade de cura de um paciente diminua em 20%, o paciente pode processar o médico baseado na teoria Perda de uma Chance (Relaxamento da Prova de Causalidade), por causa dessa Redução de 20%, mesmo que não tenha ocorrido lesão ou não seja provável que ocorra.
Mesmo, numa era moderna de teorias da perda de uma chance, contudo, os pacientes ainda devem provar que a negligência (divergência deliberada do padrão) de um médico causou a perda dessa chance.
Como a lei tem sustentado por séculos, a negligência1 importa, não a Iatrogenia.
Entendendo a Lesão Iatrogênica
Os jurados, no caso de Jacobs vs Cross, foram instruídos a aplicar a lei comum de negligência médica de Minnesota, nas provas que haviam ouvido, incluindo o testemunho do Dr. Cross, do Dr. Mayo e dos outros sete médicos que testemunharam como especialistas durante o julgamento.
Mas, como indicam os trechos do registro do julgamento, todos os médicos provavelmente estavam incorretos sobre o que fez com que Henry, perdesse a mão. Muito provavelmente, Henry, perdeu a mão porque a redução fechada do Dr. Cross, e os curativos apertados, realizados em 19 de julho de 1871, causaram perda de suprimento de sangue para a mão, necrose e, finalmente, a necessidade de amputação. Ou seja, a mão de Henry, foi perdida devido a lesão iatrogênica.
Embora, eles possam ter sido incorretos quanto ao motivo pelo qual a mão de Henry, foi perdida, não há razão para suspeitar que o Dr. Cross, o Dr. Mayo, e os demais médicos, que testemunharam durante o julgamento de Jacobs vs Cross, mentiram.
Síndromes de compartimentos, podem ter sido mal compreendidas nos Estados Unidos da época. Os artigos médicos, que explicavam os detalhes do por que a mão desenvolve contraturas isquêmicas após o inchaço excessivo e curativos, foram somente publicados recentemente na época, e ainda em alemão.3.
Nos países com medicamentos menos avançados, a Contratura de Volkmann (teoria alemã), lesão isquêmica e a perda de membros, ainda estavam sendo causada involuntariamente por curativos excessivamente aplicados, por curandeiros locais e fixadores de ossos, conforme observamos em Eshete.4
Inclusive, nos Estados Unidos, embora a síndrome compartimental, seja um risco conhecido de tratamento de fraturas, os cirurgiões ortopédicos ainda hoje, temem o paciente estoico que não procura cuidados de emergência para síndromes de compartimento, ou não informam sobre um curativo muito apertado, até que seja tarde demais.
Além disso, o erro do Dr. Mayo, e dos demais médicos, quanto ao motivo pelo qual Henry, perdeu a mão, não deve ter efeito sobre o resultado do caso. Um autor de uma ação de negligência médica, tem que provar todos os 3 elementos da reclamação: responsabilidade, nexo de causalidade e lesão / danos.
Quanto à responsabilidade, todos os médicos declararam que teriam feito o que o Dr. Cross, fez, assumindo que isso é verdade, e não há razão para duvidar, o Dr. Cross, cumpriu com os padrões de atendimento aceitos na época e, portanto, não foi negligente1.
Assim, mesmo que os médicos soubessem e testemunhassem que Henry, perdeu a mão por causa dos curativos muito apertados do Dr. Cross, não porque Henry, "rompeu as artérias no momento em que a fratura foi feita", essa correção só estabeleceria um dos requisitos da ação de erro médico proposta por Henry, o elemento de causalidade.
Mas, a alegação de Henry, já havia falhada no primeiro passo: a evidência, estabeleceu que o Dr. Cross, não era negligente, uma vez estabelecido isso, não importa se a lesão de Henry, foi iatrogênica. O Dr. Cross, ganhou o caso.
Consequências Éticas da Iatrogenia
O Dr. Mayo, e os outros médicos que testemunharam no caso de Jacobs vs Cross, foram, na nomenclatura moderna, “testemunhas especialistas” - pessoas qualificadas para testemunhar, por possuírem conhecimento especializado, podendo ajudar ao júri, a responder às principais perguntas apresentadas: protocolo padrão de atendimento? O Dr. Cross, cumpriu isso? Por que Henry, perdeu sua mão?
Esses médicos, tinham uma tarefa relativamente fácil, pois eles tratavam os pacientes exatamente como o Dr. Cross, fazia; eles não perceberam que a lesão de Henry, era iatrogênica; e não há indicação de que o Dr. Cross, fosse outra coisa senão um médico habilidoso, experiente e competente.
E, se a tarefa deles tivesse sido mais difícil? E, se eles tivessem percebido que o Dr. Cross, havia infligido uma lesão iatrogênica em Henry? E, se o Dr. Cross, fosse incompetente, infligindo lesões iatrogênicas em pacientes regularmente? Sob essas circunstâncias, seus deveres éticos em 1872 eram bem diferentes de seus deveres éticos nos dias atuais.
No contexto histórico, em 1872, havia mais um dever ético em proteger a profissão, particularmente de processos judiciais de negligência médica do que fazer a coisa certa, hoje, a mais um dever ético de proteger os pacientes e o público.
Apesar, de 1872, não haver obrigação profissional de enfestar no testemunho para proteger um colega. Sabemos que o Dr. Mayo, não o fez, pois sabemos que o Dr. Mayo, e o Dr. Cross, não eram amigos.
O Dr. Cross, considerava o Dr. Mayo, um: “idealista impraticável, a quem se podia ignorar confortavelmente, exceto quando ele fazia um incômodo confuso com suas ideias radicais”, e o Dr. Mayo, considerava o Dr. Cross: “mais preocupado com a criação de dinheiro do que qualquer homem, muito menos qualquer médico, tinha o direito de fazer"5.
Quando perguntado, por que ele havia testemunhado com tanta força e eficácia em nome de um homem que ele não gostava, o Dr. Mayo, respondeu: “Eu fiz isso pela profissão, não por ele, maldito seja ele”.6
No mesmo ano, em 1872, o Dr. Mayo, deixou claro o que achava que deveria "fazer pela profissão". Em seu discurso inaugural como presidente da Sociedade Médica do Estado de Minnesota, o Dr. Mayo, denunciou um surto de processos de erro médico.7
O Dr. Mayo, expressou sua preocupação, da seguinte maneira:
“Sempre que a deformidade é uma consequência de uma lesão, a falta de confidencialidade de uma classe e a avareza de outra, tentam fazer da deformidade uma desculpa para obter uma quantidade de dinheiro do cirurgião, que nunca acumulariam em uma profissão honesta, e a lei tem sido [sic] frequentemente culpada de transferir o patrimônio acumulado de um homem para a falta de aspiração de outro".
O Dr. Mayo, esclareceu que: "não desejo que nos escondêssemos atrás de qualquer lei para qualquer caso real de má prática".
Mas ele insistiu em uma busca por: "qualquer possibilidade de a profissão ser protegida de qualquer uma dessas ações desnecessárias, caras e vexatórias [sic]".
O qual ele caracterizou como "um sistema de chantagem".
Na época, do discurso inaugural do Dr. W. Mayo, e do julgamento de Jacobs vs Cross, os médicos americanos sentiam-se sitiados.
Em 1872, os médicos achavam que os Estados Unidos estavam tão afligidos por “processos legais para a chamada prática maléfica” e tão infestados por “charlatães” inexperientes, que precisavam se unir de uma forma ou de outra, para se protegerem.
Suas preocupações, não eram completamente injustificadas. O litígio de negligência médica aumentou 20 vezes, entre 1830 e 1900,8 e os “charlatães” vendendo remédios patenteados, como: óleo de cobra, poções mágicas e talismãs, estavam por toda parte - ferindo pacientes e, a propósito, privando médicos de pacientes.
Ainda, no período, um sistema definido de ética médica estava em nascimento nos Estados Unidos. A American Medical Association (AMA), adotou seu primeiro "Código de Ética Médica" em 1847 apenas 25 anos antes do caso de Henry vs Jacobs
O Brasil, adotou o mesmo código em 1867, pela tradução da Gazeta Médica da Bahia, não mencionando os motivos da criação do documento nos EUA.
O Código da AMA, de 1847, reflete a mentalidade de cerco dos médicos americanos da época, horrorizados com os inúmeros processos. Importante mencionar ainda, que naquele período, estabeleceram sociedades médicas estatais e municipais, e pelo menos, uma declarou ser antiético para os médicos testemunharem contra outros médicos.9
Nenhuma cortesia profissional foi estendida a “charlatões”. De fato, o Código de 1847, exorta os médicos a “prestar um testemunho enfático contra o charlatanismo em todos os casos”.
O Código de 1847, não encorajou a iluminação do público; em vez disso, os médicos deveriam se proteger. Por exemplo, o Código de 1847, instou que um “médico que é chamado para opinar sobre um caso de um colega, deve observar a consideração mais honrosa e escrupulosa do caráter e da posição do praticante no atendimento: a prática deste último, se necessário, deve ser respaldada como tanto quanto possível, consistentemente com uma consciência, considerando a verdade, e nenhuma sugestão ou insinuação deve ser descartada, o que poderia prejudicar a confiança depositada nele, ou afetar sua reputação".
E os médicos que estão tratando, são exortados: “... nenhuma insinuação injusta e iliberal deve ser descartada em relação à conduta ou prática anteriormente realizada, que deve ser justificada na medida em que a sinceridade e a consideração pela verdade e probidade permitirão; pois muitas vezes acontece que os pacientes ficam insatisfeitos quando não sentem alívio imediato e, como muitas doenças são naturalmente demoradas, a falta de sucesso, no primeiro estágio do tratamento, não oferece evidência de falta de conhecimento e habilidade profissional."10.
Contar a verdade nunca foi proibido pelo Código de 1847, quanto às divergências entre os médicos ou críticas de outros médicos, no entanto, dizer a verdade é o que se faz apenas quando é preciso.
Este tema “não fale mal da competência de um colega médico” persistiu em grande parte intacto, através dos “Princípios de Ética Médica” da AMA promulgados em 1903.
Todas as exortações do Código de 1847, foram mantidas na revisão de 1903. Na verdade, a principal mudança adotada em 1903, não teve nada a ver com as obrigações éticas dos médicos; em vez disso, a principal mudança foi a eliminação de toda uma seção do Código de 1847, que proclamava como os pacientes subservientes deveriam ser para seus médicos.
A disposição do Código de 1847, que exige que um paciente “nunca preocupe o seu médico com um detalhe tedioso de eventos ou questões que não sejam relativas à sua doença” foi excluída; assim, ficou à disposição exigindo que “a obediência de um paciente às prescrições de seu médico deveria ser imediata e implícita. Ele jamais deve permitir que suas simples opiniões sobre sua aptidão física, influenciem sua atenção para essas prescrições”.
Na época da próxima revisão dos “Princípios da Ética Médica”, em 1957, a AMA, estava pronta para retornar às obrigações éticas dos próprios médicos e, até então, “não falar mal da competência de um colega médico”. estava se desgastando.
Em 1957, “Princípios de Ética Médica”, a profissão médica foi exortada a “salvaguardar o público e a si mesma contra médicos deficientes em caráter moral ou conduta profissional… [e] para expor, sem hesitação, conduta ilegal ou antiética de outros membros da profissão”.
Mesmo em 1957, no entanto, a obrigação ética de expor os colegas médicos limitava-se a “conduta ilegal e antiética”, não a incompetência. Esse código é importante para o Brasil, já que inspirou a criação do Código Brasileiro de Deontologia Médica de 1965.
Em 1980, o tema “não fale mal da competência de um colega médico” havia se invertido. Os Princípios de Ética Médica da AMA de 1980, afirmaram que o “comportamento honroso para o médico”, incluía: “esforçar-se para expor os médicos deficientes em caráter ou competência, ou que se envolvem em fraude e ludibriação”.
E, quando revisada em 2001, a exigência de “expor” médicos incompetentes escalou a exigência de “relatar”. Especificamente, a revisão de 2001, que é a atual “Princípios de Ética Médica” da AMA, esclarece: “Um médico deve ... informar médicos com deficiência de caráter ou competência ... às entidades apropriadas”.
Nenhuma das iterações dos “Princípios de Ética Médica” da AMA, foi explícita sobre o que significa “deficiência de caráter ou competência”, ou sobre quais são os critérios de deficiência, ou sobre qual limiar de deficiência deve ser cruzado para ativar o requisito de denunciar um colega incompetente.
No entanto, os médicos que infligem ou que provavelmente causam lesões iatrogênicas em pacientes são a preocupação clara. De fato, o Conselho de Assuntos Éticos e Judiciais da AMA, opinou que o próprio dever de relatar “decorre da obrigação dos médicos de proteger pacientes contra danos” e a “incompetência que representa uma ameaça imediata à saúde e segurança dos pacientes deve ser relatado diretamente ao conselho de licenciamento estadual".
O Código de Ética Médica Brasileiro de 2009, possui muitos pontos semelhantes com o Princípios de Ética Médica de 2001, do AMA.
Primeiramente pelos princípios fundamentais, “buscar sempre o bem-estar do paciente, sem eximir de denunciar os atos dos colegas que contrariem os postulados éticos”.
Em muitos estados dos EUA, o conselho estadual de licenciamento é designado por estatuto para receber esses relatórios. Em Minnesota, por exemplo, os profissionais de saúde licenciados, devem apresentar um relatório ao Conselho de Medicina se tiverem “conhecimento pessoal de qualquer conduta que a pessoa razoavelmente acredite” indicar que outro profissional é “clinicamente incompetente… ou pode ser medicamente ou fisicamente incapaz de se envolver com segurança na prática da medicina”.
Prática, também inserida pelo Código de Ética Médica do Brasil de 2009: “Vetado: acobertar erro de médicos e deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos do conselho”.
Mas, os médicos estão seguindo essas novas regras? Em uma pesquisa com mais de 3 mil médicos publicada no Journal of American Medical Association em 2010, centenas de médicos - 17% dos que responderam - que conheciam um colega incompetente ou incapaz de exercer a medicina.
No entanto, 33% desses médicos não relataram esse colega. De fato, entre todos os médicos que responderam, 36% disseram que não deveria haver nenhum compromisso profissional para denunciar um colega incompetente.
Os autores da pesquisa, consideraram esses resultados “perturbadores”.11.
No mínimo, esses resultados indicam que um forte desejo de proteger outros médicos persiste, embora as regras éticas exijam que os médicos protejam os pacientes, não um ao outro.
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1 Negligência, no presente artigo não se refere a uma das modalidades da culpa (negligência, imprudência e imperícia), mas, a terminologia do direito médico internacional: “Uma divergência deliberada do padrão, ou seja, um cuidado médico que caiu abaixo do padrão esperado pelos médicos de sua comunidade e especialidade”
2 Personal communication, classics professor Scott Bradbury, Oxford 28, 2014.
3 Volkmann, R. Krankheiten der Bewegungsorgane. Handbuch der allgemeinen und speciellen Chirurgie. Vol 2. Pitha-Billroth, Erlangen, Germany; 1869: 845–920 e Volkmann R. Ischämische Muskellähmungen und -kontrakturen [Ischemic muscle paralysis and contractures]. Zentralbl Chir. 1881; 8: 801–803
4 Eshete, M. The prevention of traditional bone setter's gangrene. J Bone Joint Surg Br. 2005; 87: 102–103
5 Clapesattle, H. The Doctors Mayo. The University of Minnesota Press, Minneapolis; 1941
6 Clapesattle, H. The Doctors Mayo. The University of Minnesota Press, Minneapolis; 1941
7 Mayo, W.W. Inaugural address of the Minnesota State Medical Society. in: W. W. Mayo Papers. Mayo Clinic Historical Unit, Rochester, MN; 1872
8 Sharpe, V.A. and Faden, A.I. Medical Harm: Historical, Conceptual, and Ethical Dimensions of Iatrogenic Illness. Cambridge University Press, New York, NY; 1998
9 Konold, D.E. A History of American Medical Ethics, 1847-1912. State Historical Society of Wisconsin, for the Dept of History, University of Wisconsin, Madison; 1962
10 American Medical Association. Code of Medical Ethics of the American Medical Association. American Medical Association, Chicago, IL; 1847
11 DesRoches, C.M., Rao, S.R., Fromson, J.A. et al. Physicians' perceptions, preparedness for reporting, and experiences related to impaired and incompetent colleagues. JAMA. 2010; 304: 187–193
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*Atualizado em 8/2/19.
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*David Castro Stacciarini é advogado, especialista em Medical Malpractice pela Harvard University e Design of Medical Devices and Implants pelo MIT - Massachusetts Institute of Technology.