No início dos anos 2000 as discussões em torno da igualdade de gênero são inseridas na pauta mundial e deixam evidente, entre outras graves questões, o quadro de violências ainda experimentado pelas mulheres.
Quando se fala dessa violência de gênero não se tem um problema localizado em uma determinada parte do planeta ou relacionada a determinadas condicionantes econômico-sociais, pois o que se verifica é que em diferentes países, mesmo nos mais ricos, nas diversas camadas da população, há presença da linguagem de reafirmação de poderio masculino, baseado na objetivização da mulher e na sua submissão ao controle pleno pelo parceiro.
Justamente esse cenário dá espaço à previsão como tipo penal da figura do feminicídio, ou seja, de hipótese de homicídio com pena maior, em razão da ação de ofensa ao bem jurídico vida da mulher, exatamente por ser o agente alguém que a vê inferior pela condição de gênero ou a considera por esta condição objeto ou posse sua.
Nesse sentido, é muito importante que não se confunda o feminicídio com o femicídio. O último consiste em matar mulher e tem sua constitucionalidade, como hipótese de aumento de pena, discutível sobre a ótica do princípio da isonomia. Já o feminicídio é diferente, ele parte da verificação de que há uma realidade de opressão de gênero e atua diretamente canalizado para ela, por isso agravando a resposta penal quando o agente delitivo atua inserido no pensamento opressor.
No caso brasileiro, o feminicídio foi inserido como qualificadora em relação ao delito de homicídio não se criando, portanto, um tipo autônomo de feminicídio, de sorte que o homicídio pode ser qualificado quando motivado por paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; por motivo fútil; executado com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; contra a mulher por razões da condição de sexo feminino; contra autoridade ou agente descrito nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
A problemática é a possibilidade de conciliação da qualificadora do feminicídio com as demais hipóteses que qualificam o delito de homicídio, sendo decorrência lógica inexorável do que é a figura em comento, em sua estrutura ôntica, sua incompatibilidade com as qualificadoras de natureza subjetiva.
Há que se ter clara a diferença anteriormente já destacada, ou seja, que se trata de feminicídio e não de femicídio e, portanto, o que orienta a conduta do agente, sob o ponto de vista da sua motivação, é a condição de gênero, sendo que o sujeito ativo do delito atua por se ver como superior em relação à vítima ou por ter nela uma posse ou objeto seu, por ostentar o gênero masculino enquanto ela integra o feminino.
Assim sendo, o feminicídio, em sua essência, é uma qualificadora pela motivação do agente, de sorte que ao considerá-lo já se afirmam os motivos determinantes da ação delitiva e, com isso, esvazia-se qualquer possibilidade de submeter à hipótese a outra qualificadora de natureza subjetiva.
Isso é tão evidente que, mesmo antes da expressa previsão do feminicídio em lei, a situação nele tratada poderia ser submetida à qualificação pelo motivo fútil e na maior parte das vezes realmente o era.
É fundamental entender que o feminicídio não representa uma cessão à lógica punitivista, com o simples gerar de uma nova qualificadora a se somar as anteriores e permitir um elevado agravamento da pena em algumas hipóteses, mas o deslocamento de situação de motivo fútil para sua previsão expressa, como mecanismo de reafirmação normativa da existência de um modal específico de ação e das preocupações da sociedade com a importância do desenvolvimento de contracultura em relação a ele.
Nessa toada, a afirmação de feminicídio já é uma afirmação dos elementos subjetivos presentes na ação delitiva, de sorte que a imposição de outras qualificadoras depende de que elas sejam de caráter objetivo, podendo estar presentes inclusive mais de uma qualificadora de caráter objetivo, pois a ocorrência de uma não exclui a outra.
A título de reforço na compreensão, vale observar que nada obsta, por exemplo, um homicídio se valha da emboscada e seja executado com o emprego de asfixia, porém é impossível o agente praticar o crime porque se julga dono da vítima e ao mesmo tempo porque quer ocultar cadáver ou porque deseja receber a herança, decorrente de sua morte.
A verdade é que as qualificadoras subjetivas se auto excluem, pois o que orienta o agir da pessoa é inserido em um único campo motivacional, sendo que o campo mais amplo vai sempre englobar o mais estrito, por exemplo, alguém que deseja matar a companheira para receber a herança, dentro da atual lógica do sistema, deve ser visto com a presença da qualificadora do feminicídio, pois o que em nível amplo está manifesto é a visualização pelo agente de que a vítima lhe é um objeto, pois até a decisão de sua morte é servil a seus próprios interesses.
Com isso não está errado pensar que nas ações homicidas praticadas por homens contra mulheres há, sob o ponto de vista subjetivo, uma tendente prevalência da qualificadora do feminicídio, ficando as demais hipóteses para incidência quando de forma evidente se exclui a relação de domínio da ocorrência.
Ressalte-se, isso não interfere em nada nas qualificadoras de natureza objetiva que podem estar presentes no feminicídio, inclusive mais de uma delas.
Sintetizando, não pode haver feminicídio por motivo fútil ou por motivo torpe, mas nada impede, por exemplo, o feminicídio pelo emprego do meio cruel ou pela utilização de recurso que gerou dificuldade ou impossibilidade na defesa do ofendido.
Em quadro comparativo o que se tem em relação as qualificadoras é o seguinte:
Não podem coexistir as qualificadoras da coluna 1, mas nada impede que coexistam as da coluna 1 com as da coluna 2, inclusive com a presença, na mesma hipótese, de mais de uma das delineadas na coluna 2.
Não se imagine que com isso qualquer objetivo de enfrentamento do problema da violência de gênero se veja enfraquecido, pois o poder punitivo sempre chega depois, quando a ofensa ao bem jurídico já ocorreu, o que implica afirmar para que se tenha mínima lógica, que a punição não apresenta solução para o problema decorrente da conduta em virtude da qual é imposta.
Por outro lado, é certo que ao destacar no plano normativo a ideia do feminicídio, há o chamar a atenção da sociedade para a sua ocorrência e o início da tomada de consciência em relação a um problema frequente, mas tratado como se não existisse no país.
A partir disso sim, ações efetivas no enfrentamento do feminicídio podem ser adotadas, mas seguramente são não penais, decorrendo de políticas públicas concretas no sentido da promoção da igualdade de gênero e do respeitos às diferenças e da geração do entendimento da não possibilidade de submissão de pessoas à objetivação por outras, desde uma reforma em importantes vetores sociais, para que seja sempre promovida a cultura da paz e do convívio.
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*Adel El Tasse é advogado em Curitiba/PR. Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador Geral do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.