Migalhas de Peso

A redução do referencial para pagamento de obrigações de pequeno valor mediante lei irretroativa

A retroação da lei, solapando posições jurídicas consolidadas, é excrescência teratológica que a razão humana e a Constituição condenam.

29/1/2019

1. O poder público e a regência constitucional de satisfação

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB, de 5 de outubro de 1988) assegura a propriedade privada. A ideia ontológica de propriedade privada pertence ao ponto culminante na orografia do sistema constitucional de liberdades, inscrita em topografia de indiscutível valor, a dos direitos fundamentais. Está escrito na cabeça do art. 5º da Lei Fundamental que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à propriedade.

Como em destacado preceito: é garantido o direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII). Não afastemos da noção ligada à estrutura do direito de propriedade, marcada pela conduta social do proprietário. É de dignidade constitucional a função social da propriedade, conforme a regra modal limitadora constante do inciso XXIII do preceito constitucional relacionado. A função social, também, vem elencada como um princípio da ordem econômica, conforme previsão do art. 170, III1, CRFB/88.

No caso particular deste escrito, parece-nos inexistir impedimento de ordem científica no relacionamento, em um nível implicacional, do preceito do art. 5º da Constituição da República (propriedade privada) com a noção jurídica de patrimônio jurídico, subjacente a uma universalidade de direitos e obrigações. É nessa especial perspectiva que se situa o direito fundamental de satisfação de crédito, em tempo cujo delongamento não agrida a regra da moralidade, já que protegido pelo direito a um processo sem dilações indevidas (de idêntica fundamentalidade – art. 5º, LXXVIII, da CRFB/88), direito cuja estrutura adere ao conceito secular de decência, marcada pela obediência a um mínimo ético.

É verdade que, no Brasil, o Poder Público é dos maiores clientes do Poder Judiciário. Talvez compartilhe o louro destronado com o Setor Bancário. O Estado é litigante contumaz. Tal estigma pode ser explicado por variados ângulos; evidentes poderiam ser o gigantismo do Estado Brasileiro e a teimosia pelo intervencionismo econômico. Há útil teorização de Hans-Hermann Hoppe. O filósofo sustenta que o Estado tem predileção pelos conflitos, afeto e paixão extremosa, possuindo então o monopólio do poder jurisdicional. Daí a literal ausência do querer reduzir os conflitos. Ao contrário, nutriria a vontade de criá-los, sobremodo porque possui a expectativa de que venham a ser resolvidos a seu favor. O Estado é organização que detém o monopólio da jurisdição de um território, além do poder supremo da taxação2.

Essas seriam algumas das muitas variáveis cuja substancialidade estariam a determinar que o tempo da litispendência na República do Brasil reside no campo da cabal indecência. É absolutamente desproporcional para solucionar qualquer conflito social nesse país, aqui incluídos os super-réus, como o Estado e o Setor Bancário, notadamente sob o ângulo da satisfação do direito.

É uma verdade ocorrente em alguns países ocidentais, o Estado, em processo judicial, goza de certas prerrogativas. Assume-se a Fazenda Pública, entendida como a designação da atuação do Poder Público em juízo, por meio de entidades da administração direta e indireta com personalidade de direito público. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho:

Em algumas espécies de demanda, as pessoas de direito público têm sido nominadas de Fazenda Pública, e daí expressões decorrentes, como Fazenda Federal, Fazenda Estadual e Fazenda Municipal. Trata-se de mera praxe forense, usualmente explicada pelo fato de que o dispêndio com a demanda é debitado ao Erário da respectiva pessoa. Entretanto, Fazenda Pública igualmente não é pessoa jurídica, de modo que, encontrando-se tal referência no processo, deverá ela ser interpretada como indicativa de que a parte é a União, o Estado, o Município e, enfim, a pessoa jurídica a que se referir a Fazenda.3

Embora destinatário de certas (discutíveis) prerrogativas processuais, sendo parte, está sujeito, naturalmente, a sentença condenatória definitiva. Novamente o legislador constitucional, fiel exercente da legítima vontade do povo, cônsono da necessidade de adoção de um modelo dito supostamente equilibrado, optou pela adoção de um sistema de pagamento sincronizado, fundado em lógica discutível: o Regime dos Precatórios – entendido como requisições de pagamento expedidas pelo Poder Judiciário para cobrar de municípios, estados ou da União, como de autarquias e fundações, o pagamento de valores devidos após condenação judicial transitada em julgado.

O Estado é derrotado em processo, é condenado a pagar quantia certa, a sentença passa em julgado, formando-se então título executivo judicial, que é submetido a pagamento sincronizado, observada uma ordem cronológica de apresentação dos Precatórios. Em palavras outras: em homenagem a uma segurança orçamentária de um Estado perdulário, o cidadão vencedor de uma demanda deverá aguardar um prazo para satisfazer o seu direito de crédito. Nos termos da Constituição da República, é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente (CRFB, art. 100, §5º). Infelizmente, estima-se que a dívida relativa ao pagamento de Precatórios dos entes federativos chegue, ou supere, ao patamar de cem (100) bilhões de reais.4

Agora, respeitante às Obrigações de Pequeno Valor5, por ordem de magistrado, dirigida à autoridade na pessoa de quem o ente público foi citado para o processo, o pagamento será realizado no prazo de 2 (dois) meses contado da entrega da requisição, mediante depósito na agência de banco oficial mais próxima da residência do exequente. Essa é a redação do art. 535, §3º, II, da Lei Federal 13.105, de 16-6-2015 – Código de Processo Civil.

A fixação de um prazo rígido para pagamento, por uma lei ordinária federal, não fere o texto constitucional, sob o ângulo competencial da autonomia dos entes. O conceito de Obrigação de Pequeno Valor é estranho ao de pagamento. O primeiro é de direito material; o segundo, de direito processual (vide ADI 5534, Rel. Min. Dias Toffoli, ainda não julgada).

Definitivamente, o juízo político sobre a delimitação do prazo para o regular adimplemento das Obrigações de Pequeno Valor não se insere no plexo de competência dos entes federativos menores. Esse juízo pertence exclusivamente ao ente federado União, nos termos do art. 22, I, da Constituição da República, na medida em que constitui-se em uma genuína norma processual.

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1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 270/284.

2 Segundo Hans-Hermann Hoppe, em entrevista concedida à revista alemã WirtschaftsWoche (em português: Como funciona uma sociedade sem estado – Instituto Rothbard, 2016): “[o] estado não nos defende; ao contrário, o estado nos agride, confisca nossa propriedade e a utiliza para se defender a si próprio. A definição padrão do estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por duas feições exclusivas e logicamente conectadas entre si. Primeiro, o estado é uma agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu território; o estado é o tomador supremo de decisões. Ou seja, o estado é o árbitro e juiz supremo de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários. Não há qualquer possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado. Segundo, o estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tributação. Ou seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo.”

3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 1044.

4 Os dados constam do Relatório Preliminar nos autos do Acompanhamento de decisão 0005633-70.2010.2.00.0000, do Conselho Nacional de Justiça, ano de 2014. Então, querido leitor, pela estimativa pertencer ao campo investigativo de 2014, talvez hoje tenhamos uma dívida maior.

5 As obrigações de pequeno valor foram criadas pela Emenda 62, de 9-12-2009 que, ao introduzir o §3º ao art. 100 da Constituição, estabeleceu as Obrigações de Pequeno Valor como modalidade de pagamento de débitos judiciais oriundos de decisões transitadas em julgado da Fazenda Pública definidas em lei como de pequeno valor.

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*Texto atualizado em 11/2/19.

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*Fernando Cesar Faria possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso e especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

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