O TJ/SP, através do enunciado I/19, decidiu que o " prazo de um ano para o pagamento de credores trabalhistas e de acidentes de trabalho, de que trata o artigo 54, caput, da lei 11.101/05, conta-se da homologação do plano de recuperação judicial ou do término do prazo de suspensão de que trata o artigo 6º, parágrafo 4º, da lei 11.101/05, independentemente de prorrogação, o que ocorrer primeiro".
Isto porque, em que pese o citado artigo 54 da Lei de Recuperação e Falência estabelecer que a empresa em recuperação judicial teria um ano para pagar seus credores trabalhistas e equiparados, o dispositivo não estabelece qual seria o termo inicial deste prazo, o que levou o Tribunal de São Paulo a firmar posições divergentes sobre o tema.
Enquanto parte dos desembargadores e juízes entendia que o marco inicial do prazo para pagamento dos credores trabalhistas deveria ser a data do pedido de recuperação judicial, levando em conta a necessidade de se privilegiar os trabalhadores, outra sustentava que deveria ser considerada a data da concessão da recuperação, de forma a preservar a empresa em crise e garantir o mesma o fôlego necessário para superá-la.
Assim é que, de forma a harmonizar os posicionamentos conflitantes, o Tribunal acabou adotando uma posição intermediária e estabelecendo que a empresa em recuperação, ainda que não tenha tido seu plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, terá até 180 (cento e oitenta) dias para iniciar o pagamento dos credores trabalhista, contados da data do deferimento do processamento da recuperação judicial.
O Tribunal entendeu que esta seria a melhor forma de garantir à recuperanda o prazo legal para viabilizar a aprovação do seu plano de recuperação judicial (cento e oitenta dias), sem desconsiderar a regra especial de 1 (um) ano para pagamento dos créditos trabalhistas.
Entretanto, em que pese o nobre intuito de harmonização e a consequente decisão salomônica tomada pelo Tribunal de São Paulo através das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, ao desconsiderar possíveis prorrogações do prazo de 180 dias de suspensão de que trata o art. 6º da Lei de Recuperação e Falência, o enunciado publicado acaba por forçar as empresas em recuperação judicial a iniciar o pagamento de um plano que sequer sabem se será aprovado pela assembleia de credores.
No mesmo sentido, vale destacar que como já pacificado pela jurisprudência do próprio Tribunal de São Paulo, o plano de recuperação judicial pode ser, a qualquer tempo antes da aprovação, alterado pela recuperanda, razão pela qual nem sempre aquele inicialmente apresentado será o plano efetivamente levado à votação.
Mais. Caso algum credor trabalhista receba seu crédito antes mesmo da assembleia geral de credores, o mesmo não poderá deliberar acerca do plano de recuperação (pois a rigor não seria mais credor da empresa em recuperação), o que poderá prejudicar demasiadamente a recuperanda no que tange aos votos necessários à aprovação do plano.
E, por fim, caso a recuperanda venha a pagar algum valor aos credores trabalhistas e, posteriormente, altere o plano de recuperação ou tenha sua falência decretada, os pagamentos não poderão ser reavidos, uma vez o crédito trabalhista é irrepetível, notadamente porque considerado como verba com caráter alimentar.
Portanto, o que se percebe é que com o entendimento firmado, além de a empresa em recuperação (i) ficar exposta ao pagamento de valores que não poderá reaver em eventualmente caso de falência ou alteração do plano; e (ii) não poder contar com os votos daqueles que já receberam seus créditos, os credores trabalhistas acabarão sendo excessivamente beneficiados com o “pagamento antecipado”, o que contraia, inclusive, o princípio maior do instituto recuperacional, que o é o do pars conditio creditorum (tratamento igualitário do crédito).
Diante das considerações acima apresentadas e sempre com o máximo respeito ao entendimento consignado através do enunciado I/19, aprovado pelo TJ/SP, que teve por escopo beneficiar os credores trabalhistas e "acelerar" o processo de recuperação judicial, retornando à primordial intenção do legislador ("procedimento célere"), ousamos manifestar nosso receio quanto às possíveis graves inconsistências que poderão haver no procedimento recuperacional, as quais poderão, em última análise, ensejar nefastos prejuízos à sociedade em recuperação.
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*Priscila Butler é pós-graduada em Direito Privado Patrimonial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio. Graduada pelo Instituto Brasileiro de Mercados e Capitais – IBMEC. Sócia do escritório Prima & Butler Advogados.