Recentemente, o Estado do Rio Grande do Sul, por meio do decreto Estadual 54.308/18, de 7/11/18, instituiu nova obrigação tributária relativa ao ICMS cobrado por substituição tributária. Ela determina que os contribuintes substituídos deverão, a partir de janeiro de 2019, apurar os débitos e créditos fiscais decorrentes das operações já submetidas ao regime de substituição tributária de ICMS, apropriando os créditos pela base de cálculo ICMS-ST e os débitos das notas fiscais de saída das mercadorias já tributadas anteriormente pelo ICMS-ST.
Os contribuintes gaúchos então terão que, mensalmente, proceder ao ajuste entre o débito efetivo da venda realizada, deduzindo o crédito presumido calculado utilizando as notas fiscais de entrada/aquisição. E, se for o caso, complementar o valor do ICMS-ST, na hipótese de o valor da operação praticada ser superior à base de cálculo presumida para cálculo do débito de responsabilidade do substituto tributário.
O malfadado decreto nasceu sob o pretexto de regulamentar a forma de restituição do ICMS-ST, quando este for recolhido sobre montante presumido diverso e superior à base de cálculo efetiva da operação realizada, nos termos da decisão do STF, proferida nos autos do RE 593.849, em 19/10/16.
Cabe lembrar que a decisão do STF firmou a tese de que “é devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior a presumida”.
Todavia, a interpretação de vários Estados, dente eles o Rio Grande do Sul, foi no sentido de que a decisão teria um efeito duplo, permitindo tanto a restituição quanto a complementação do imposto, até porque o STF adotou entendimento extensivo nesse sentido, de maneira rasa, sem analisar todos aspectos que envolvem a matéria.
Portanto, o decreto nasceu para regulamentar a forma de restituição do ICMS-ST pago a maior, mormente para os casos dos contribuintes que postularam tal direito em juízo. Todavia, tal regulamentação trouxe uma série de problemas, gerando maior insegurança jurídica e questionamentos.
O primeiro deles é que a nova obrigação tributária não é facultativa, ou seja, atinge a todos os contribuintes, varejistas ou não, inclusive os que jamais pleitearam a restituição de ICMS- ST pago a maior. E, para muitos, esse regime de ajuste do ICMS-ST vai representar significativo aumento de carga tributária.
Mas, se o texto constitucional (art. 150, §7º, da CF) não fez menção expressa à necessidade de complementação do imposto no caso da realização do fato gerador maior do que aquele presumido, e não estabelece qualquer exceção nesse sentido, deve-se concluir que a complementação ora exigida carece de autorização constitucional. Até porque a matéria está inserida no capítulo das “limitações ao poder de tributar”, do que decorre que as normas ali contidas devem ser interpretadas em favor dos contribuintes, uma vez que são limitadoras ao poder-dever do Estado de exigir tributo, no caso o ICMS-ST.
Outro fundamento que sustenta a tese de ilegalidade da cobrança da complementação do ICMS-ST é a inexistência não apenas de norma constitucional autorizativa, mas também de norma infraconstitucional. Suponhamos que o STF coadune com o entendimento do Fisco de exigir a malfadada complementação. Ainda assim, é imperioso que a legislação de regência autorize. Entretanto, a Lei Kandir (LC 87/86) nada prevê acerca da complementação, referindo tão somente a possibilidade de restituição do ICMS-ST quando da não realização do fato gerador presumido. Ademais, considerando que, para muitos contribuintes, a complementação do ICMS-ST implicará em aumento da carga tributária, não resta dúvida que a exigência em questão viola o princípio constitucional da legalidade, já que instituída por decreto estadual.
A nova obrigação tributária afronta a própria essência da substituição tributária progressiva, cuja técnica serve para facilitar a arrecadação e combater a sonegação fiscal, ao concentrar o recolhimento do imposto em um número menor de contribuintes, reduzindo a necessidade de fiscalização. É um instituto imposto pelo Estado para atender unicamente seus interesses e não uma opção aos contribuintes, o que reforça o caráter de definitividade para o fisco dos valores relativos às margens presumidas.
Também em relação às microempresas e empresas de pequeno porte o referido decreto mostra-se ilegal e inconstitucional. Justamente por ser de interesse e vantajoso para o Fisco, não deveria onerar ainda mais esses contribuintes. Ao exigir um controle apurado das operações de saída, de entradas e do estoque, elas terão que implementar ferramentas de controle de estoque para viabilizar a complementação, gerando maior burocracia e investimentos com pessoal e ferramentas de análise.
Em razão disso, o decreto 54.308/18 viola o princípio do tratamento favorecido às pequenas empresa (arts. 146, III, d, e 170, IX, CF/88) e também o art. 26, §4º, da LC 123/06, que veda a “a exigência de obrigações tributárias acessórias relativas aos tributos apurados na forma do Simples Nacional além daquelas estipuladas pelo CGSN e atendidas por meio do portal do Simples Nacional, bem como, o estabelecimento de exigências adicionais e unilaterais pelos entes federativos”.
Outra exigência ilegal e inconstitucional, por irrazoável, é o exíguo prazo concedido às empresas para elaboração do estoque e inventário das mercadorias já submetidas ao regime de substituição tributária do ICMS, que é de apenas 53 dias entre a publicação do decreto e a vigência da obrigação.
E, por fim, não resta dúvida que o decreto descumpre não apenas a própria decisão do STF (RE 593.849/MG), como também o princípio constitucional da não-cumulatividade (Art. 155, II, da CF), ao suprimir o direito à restituição do valor pago indevidamente ou a maior, uma vez que revogou o art. 22 a 24, A, do RICMS/RS, que estabelecia o direito à restituição do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar.
Significa dizer que, a partir de janeiro de 2019, o contribuinte que praticar venda a consumidor final com preço inferior ao presumido não terá a imediata e preferencial restituição que a Constituição Federal lhe assegura. Ele, infelizmente, terá que se conformar com um mero crédito escritural que, se não tiver débitos próprios de ICMS ou saldo devedor de ICMS-ST, de nada lhe servirá, importando aumento de carga tributária.
Diante da inconstitucionalidade, ilegalidade e arbitrariedade das disposições contidas no decreto Estadual 54.308/18, de 7/11/18, os contribuintes gaúchos, mais uma vez, restam prejudicados, seja pelo exíguo prazo concedido para implementação de ferramentas de controle de estoque, pelos impactos financeiros que sofrerão, dado o aumento da carga tributária decorrente da necessidade de complementação, ou ainda pela impossibilidade de restituição do ICMS-ST quanto aos excessos cobrados por antecipação.
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*Jussandra Hickmann Andraschko é advogada especialista em Direito Tributário pelo IBET, especializanda em LLM em Tributação dos Negócios e das Empresas na Unisinos, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB Novo Hamburgo/RS.