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A recente atividade legiferante do Ceará: um alerta aos setores de telefonia móvel e varejo

A atividade legiferante requer incessante atenção, revelando cada vez mais a importância dos processos objetivos de controle de constitucionalidade.

18/1/2019

É manifesta a dificuldade enfrentada pelo setor privado para adaptação às inúmeras leis que são promulgadas em âmbito federal, estadual e municipal e impactam na relação entre consumidores e fornecedores. Falamos disso em breve texto sobre o excesso de normas de proteção do consumidor e seu controle de constitucionalidade (“Uma lei para cada problema: o excesso de normas de proteção do consumidor e seu controle de constitucionalidade”).

Em síntese, argumentamos como a competência legislativa pulverizada (somada ao apelo popular por leis de proteção do consumidor e a uma incipiente legística) tem contribuído para que o processo legislativo seja concluído sem análise prévia dos impactos regulatórios, econômicos, jurídicos e sociais das leis produzidas, que geralmente criam embaraços no mercado preconizando teratologia ou o óbvio (muitas vezes já previsto em outras normas legais e infralegais e em outras fontes de direito).

Pois bem. Recentemente, o legislador cearense, a pretexto de legislar concorrentemente sobre consumo, editou uma série de leis de constitucionalidade duvidosa. Como exemplos (há outras), citamos a lei 16.734/18, a lei 16.685/18 e a lei 16.784/18.

A lei 16.734/18, publicada no Diário Oficial em 28/12/18, “regulamenta as relações de consumo entre as operadoras de telefonia móvel e seus respectivos usuários-consumidores, imputando obrigações às operadoras de não bloquearem o acesso à internet após o consumidor esgotar a franquia de dados estipulados contratualmente, de acordo com o Marco Civil da Internet”.

Em primeiro lugar, nada foi dito sobre a responsabilidade da União pela prestação dos serviços de telecomunicações e, por conseguinte, sobre a sua competência para legislar sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias do referido serviço, os direitos do usuário, a política tarifária e a obrigação de manter o serviço adequado (cf. STF, ADIn 3847/SC, rel. min. Gilmar Mendes, j. 1/9/11).

E logo no artigo 1º da lei estadual, o legislador deixa claro sua ampla intenção intervencionista, preconizando que toda e qualquer relação ente operadoras de telefonia móvel e consumidores será disciplinada e afetada pela lei, “independentemente do objeto contratual a ela subjacente”.

O legislador vai além e, nos dois artigos seguintes da lei, “proíbe as operadoras de telefonia móvel de bloquearem o acesso à internet após o esgotamento da franquia de dados acordados contratualmente por seus usuários-consumidores, de acordo com o art. 7º, inciso IV, do Marco Civil da Internet”, dizendo que a velocidade apenas poderá ser reduzida. Parece haver um malabarismo exegético na invocação do art. 7º, IV, do Marco Civil da Internet.

Nos dois últimos artigos da lacônica lei, o legislador cearense estipula uma multa pesada para cada hipótese isolada de descumprimento da lei, bem como, singelamente, a eficácia imediata da lei. Aliás, não é por acaso que existe o artigo 8º Lei Complementar 95/98: a vigência da lei deve contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para leis de pequena repercussão.

Isso reforça o argumento de que atua com incipiente legística, sem qualquer embasamento empírico, sem considerar toda a análise da matéria que já vem sendo exaustivamente realizada e sem ao menos se atentar para os impactos da lei produzida.

A manutenção obrigatória da obsoleta prática promocional de redução de velocidade na navegação tornou-se incompatível com o conteúdo acessado e transferido na rede, seja em decorrência da (r)evolução tecnológica transformadora desse conteúdo e dos aparelhos utilizados para navegação, seja da mudança comportamental dos próprios consumidores.

A rede móvel transmudou-se para o maior meio de entretenimento que existe – e tudo isso predominantemente via dispositivos móveis. O conteúdo acessado mudou e significativa parte deste conteúdo é impossível de ser acessada com a, hoje, arcaica velocidade reduzida. Aliás, alguns aplicativos de hoje sequer funcionam (leia-se: sequer se conectam) em velocidade reduzida. E as sucessivas tentativas de conexão em velocidade lenta ocupam e degradam constantemente a rede.

É fundamental que as novas tecnologias e os novos fluxos, usos e perfis de usuários, tanto o que já se desenhou quanto o que se projeta, sejam cuidadosamente considerados na gestão da rede móvel, uma vez que, por suas características técnicas intrínsecas, essa rede é limitada.

Esta matéria é complexa, pelo que merece ser tratada com seriedade. A esse propósito, sua análise vem sendo realizada pela ANATEL, pelo Poder Judiciário1, pela SENACON, pelo Ministério Público, pelos PROCONS municipais e estaduais de todo o país, por diversas associações civis etc., pelo que é imprescindível uma análise profunda e sistemática dessa matéria, com o merecido tratamento uniforme e isonômico em âmbito nacional.

A lei 16.685/18, publicada no Diário Oficial em 10/12/18, trata da devolução integral do troco aos consumidores cearenses em moeda corrente, isto é, supostamente tenciona regular o varejo.

Em seu artigo 1º, a lei preconiza que os estabelecimentos comerciais situados no Estado do Ceará que forneçam produtos ou serviços são obrigados a devolver de forma integral o troco/saldo, em moeda corrente, ao consumidor. Ademais, esclarece que, na falta de cédulas ou moedas para elaboração do troco exato, o fornecedor do produto ou serviço deverá arredondar o valor sempre em benefício do consumidor (art. 2º).

Essa lei prevê, ainda, o dever de afixação de placa informativa, em local visível do caixa ou onde ocorram os recebimentos em dinheiro, a seguinte frase “É direito de o consumidor receber o troco na forma integral” (art. 4º), bem como prevê as seguintes sanções em caso de descumprimento de seus ditames: “I - primeira ocorrência, (notificação); II - em caso de uma segunda ocorrência (reincidência), multa no valor de R$1.000,00 (um mil reais); III - em caso de ainda permanecer a reincidência por uma terceira vez, multa no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais); IV - em caso de insistência em ocorrência após a terceira vez, suspensão do alvará de funcionamento pelo prazo de 15 (quinze) dias” (art. 5º).

A lei 16.685/18, portanto, data venia, preconiza o óbvio. Mas, o legislador vai além: inaugura obrigação específica e impõe aos fornecedores o dever de informar o óbvio – sem indicar qual lacuna normativa supostamente pretendeu preencher –, sob consequência de severas sanções, ao passo que, mais uma vez, não é estabelecido nenhum período de vacância.

Mais grave ainda são essas sanções, sua dosimetria e sua gradação previstas para hipóteses de descumprimento dos ditames da lei estadual. Para além de desnecessárias – uma vez que já existe suficiente (rectius: extravagante) gama de leis para a defesa do consumidor e para a aplicação de sanções aos maus fornecedores –, tais previsões podem culminar em sanções desproporcionais.

Se determinado fornecedor, em qualquer caixa ou ponto de seu estabelecimento onde recebido o pagamento do consumidor (dentre as dezenas que podem haver em apenas um estabelecimento), deixar de afixar a tal placa “informativa” prevista na lei ou oferecer uma “balinha” de troco, poderá até mesmo ficar 15 (quinze) dias sem operar e sem faturar, amargando sérios prejuízos. Isso não parece se amoldar na reserva para eficácia legal imediata contida no artigo 8º da LC 95/98 relativa a “leis de pequena repercussão”.

Já a lei 16.784/18, publicada no Diário Oficial em 2/1/19, trata do fornecimento de informações acerca da carga tributária aproximada incidente sobre os produtos e serviços ofertados ao público.

A princípio, essa lei estadual parece reproduzir os termos de uma lei federal: a lei 12.741/12.

Nota-se, porém, a regulamentação inaugurada pelo legislador cearense. Enquanto a lei federal (lei 12.741/12) dispõe que a carga tributária aproximada deverá ser informada nos documentos fiscais ou equivalentes emitidos por ocasião da venda ao consumidor de mercadorias ou serviços e que a afixação dessas informações tributárias no estabelecimento é faculdade do fornecedor2 (faculdade reiterada no decreto 8.264/14), a lei estadual dispõe que é direito do consumidor saber antes, durante a negociação e depois da compra a carga tributária aproximada (art. 1º), bem como que é dever do fornecedor indicar isso de forma destacada e acessível em relação a toda e qualquer exposição pública para venda, inclusive vitrines e similares (art. 1º, §§ 1º e 2º).

Além disso, está prevista a aplicação de sanções cumuladas: retirada imediata de exposição dos produtos em desacordo com a lei e advertência ou multa de 30 UFIRCEs por produto irregularmente exposto (art. 3º).

Ou seja, o legislador cearense, a pretexto de legislar concorrentemente sobre consumo e supostamente em atenção aos termos do § 5º do artigo 150 da Constituição Federal, inaugurou obrigação na lei 16.784/18 sem indicar qual lacuna legislativa tenciona preencher. E, mais uma vez, o faz estipulando severas sanções sem qualquer embasamento empírico ou estudo prévio dos impactos regulatórios, econômicos, jurídicos e sociais da lei.

Aliás, ao que tudo indica, essa lei estadual também atinge o varejo eletrônico, notadamente quando o legislador preconiza a hipótese de incidência atrelada a “toda e qualquer exposição pública para a venda”.

Neste ponto, verifica-se ainda potencial e perigosa transcendência espacial ilegítima do impacto da norma, indevidamente produzindo efeitos além do território do Ceará. A internet, que é um poderoso instrumento da globalização econômica, tem essencialmente natureza transfronteiriça e alcance mundial, daí a necessidade de tratamento normativo uniforme e harmônico para, por exemplo, o fomento do e-commerce e a adequação da informação útil e essencial a ser prestada ao consumidor no ambiente de compras virtual.

Nunca é demais lembrar que a essência da atividade legislativa deve observância (compatibilidade), entre outros elementos de legitimação, à necessidade, à adequação e à proporcionalidade stricto sensu de suas consequências na ordem jurídica.

As três leis estaduais mencionadas acima, todavia, criam embaraços no mercado e consubstanciam precipuamente ingerência estatal indevida no domínio econômico. Isso certamente repercutirá, inclusive, no Poder Judiciário. Potencialmente, incontáveis demandas individuais serão propostas por fornecedores e consumidores.

Todavia, como já sustentamos, para além de configurar medida paliativa de eficácia incerta, esta judicialização pulverizada subtrai a capacidade ótima da função prospectiva e transformadora da jurisdição constitucional. Não se deve apenas aguardar a enxurrada de demandas para que, após muito trabalho e considerável (e imprevisível) lapso temporal, seja possível mitigar a insegurança jurídica instaurada subitamente pelo legislador.

A atividade legiferante requer incessante atenção, revelando cada vez mais a importância dos processos objetivos de controle de constitucionalidade. É salutar que os setores se organizem e resistam à frequente criação de normas jurídicas que pretensamente protegem consumidores, mas são desconectadas da realidade e elaboradas sem a devida análise prévia de impactos regulatórios, econômicos, jurídicos e sociais.

Esperamos que os legitimados adotem as providências necessárias ao efetivo e repressivo controle abstrato de constitucionalidade dessas normas.

__________

1 Aliás, diante das dezenas de ações coletivas propostas em diversos juízos por todo o país tratando exatamente do tema, foi instaurado (distribuição na mesma data da lavratura do AI: 18/6/15) um Conflito de Competência no Superior Tribunal de Justiça (CC 141322/RJ), restando definido o juízo da 5ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro/RJ como competente para processar e julgar todas as causas que envolvam o direito das operadoras de reduzirem a velocidade de navegação na internet móvel após o esgotamento da franquia de dados nos sistemas pré e pós-pago (verbis). Exemplo desta judicialização pulverizada: processos n. 0052224-82.2015.8.19.0001 (TJ/RJ), 0011970-19.2015.8.10.0001 (TJ/MA), 0703457-70.2015.8.01.0001 (TJ/AC), 0008096-09.2015.8.25.0001 (TJ/SE), 1016930-92.2015.8.26.0053 (TJ/SP), 0305791-82.2015.8.24.0008 (TJ/SC), 0013080-29.2015.8.15.2001 (TJ/PB), 1045633-86.2015.8.26.0100 (TJ/SP), 0900605-81.2015.8.24.0023 (TJ/SC), 171066-44.2015.8.09.0051 (TJ/GO), 0158016-85.2015.8.06.0001 (TJ/CE), 24374-52.2015.811.0041 (TJ/MT), 0156955-92.2015.8.06.0001 (TJ/CE), 0009910-08.2015.8.16.0001 (TJ/PR), 0812124-60.2015.8.20.5001 (TJ/RN), 0017966-85.2015.8.27.2729 (TJ/TO), 0063161-97.2015.8.21.0001 (TJ/RS), 0011216-26.2015.8.18.0140 (TJ/PI).

2 Com ressalva expressa e específica à hipótese relativa aos serviços de natureza financeira sobre os quais não haja obrigação legal de emissão de documento fiscal, quando então será obrigatória a afixação de tabelas nos respectivos estabelecimentos fornecendo as informações atinentes à carga tributária sobre esses serviços.

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*Vitor Morais de Andrade é advogado e sócio do escritório LTSA Advogados.

*Theotônio Negrão Neto é advogado associado responsável pela área do contencioso estratégico do escritório LTSA Advogados.

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