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Limites do negociado sobre o legislado – Flexibilização da cota legal de PNEs

Obviamente, não será uma tarefa fácil: a matéria envolve temas sensíveis para a sociedade, como função social, limites do negociado sobre o legislado, inclusão de PNEs no mercado de trabalho, proteção aos empregados, entre outros. Mas uma coisa é certa: a decisão que será tomada pelo TST, possivelmente, balizará todas as negociações coletivas realizadas nos próximos anos.

16/1/2019

A lei 13.467/17, também conhecida como reforma trabalhista, completou seu primeiro ano de vigência neste mês e, como era de se esperar de uma mudança legislativa tão relevante, ainda há diversas matérias que estão sendo questionadas junto aos nossos Tribunais Superiores.

Dentre tantas alterações trazidas pela referida lei, o presente texto se propõe a analisar especificamente a questão dos limites do negociado sobre o legislado e, mais especificamente, da possibilidade, ou não, de flexibilização da cota legal de Portadores de Necessidades Especiais (“PNEs”) prevista no artigo 93 da lei 8.213/91, uma das maiores dificuldades do empresariado brasileiro.

Isso por que, apesar da louvável intenção do legislador de criar um sistema de cotas para pessoas portadoras de deficiência, jamais houve qualquer programa governamental que pudesse cuidar/auxiliar da educação ou formação de tais pessoas, imputando a sua inclusão tão somente à iniciativa privada e criando uma obrigação praticamente impossível de ser cumprida.

Assim, considerando as alterações da lei 13.467/17, se mostra necessária uma análise dos limites colocados por esta lei e se referidos limites podem ser utilizados para beneficiar empregados PNEs e empresas contratantes.

 

I. Negociado sobre o legislado

Desde a sua origem, no projeto de lei 6.787/16, a vigente lei 13.467/17 jamais escondeu que um dos seus maiores objetivos era “aprimorar as relações do trabalho no Brasil, por meio da valorização da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores (...)1

O uso do vocábulo “aprimorar”, nesta justificativa, se mostra bastante adequado, pois a própria Constituição Federal, em seu artigo 7º, inciso XXVI, já previa como um direito do trabalhador o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.

Assim, a Constituição Federal, no referido artigo, prestigia a autonomia coletiva da vontade e a auto composição dos conflitos trabalhistas, acompanhando uma tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, conforme retratado nas convenções 98/49 e 154/81 da OIT, ambas ratificadas e, portanto, válidas, como leis no direito do trabalho brasileiro. Nesse sentido, chame-se atenção aos termos da convenção 154/81, que trata sobre o fomento à negociação coletiva:

“CONVENÇÃO 154

Fomento à negociação coletiva (...)

“A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho: convocada em Genebra pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, e reunida naquela cidade em 3 de junho de 1981, em sua sexagésima sétima reunião; reafirmando a passagem da Declaração da Filadélfia onde reconhece-se ‘a obrigação solene de a Organização Internacional do Trabalho de estimular, entre todas as nações do mundo, programas que permitam (...) alcançar o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva’, e levando em consideração que tal princípio é ‘plenamente aplicável a todos os povos’;

Tendo em conta a importância capital das normas internacionais contidas na convenção sobre a liberdade sindical e a proteção do direito de sindicalização, de 1948; na convenção sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva, de 1949; na recomendação sobre os tratados coletivos, de 1951; na recomendação sobre conciliação e arbitragem voluntárias, de 1951; na convenção e na recomendação sobre as relações de trabalho na administração pública, de 1978; e na convenção e na recomendação sobre a administração do trabalho, de 1978;

Considerando que deveriam produzir-se maiores esforços para realizar os objetivos de tais normas e especialmente os princípios gerais enunciados no art. 4º da convenção sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva, de 1949, e no § 1º da recomendação sobre os contratos coletivos, de 1951;

Considerando, por conseguinte, que essas normas deveriam ser complementadas por medidas apropriadas baseadas nas ditas normas e destinadas a estimular a negociação coletiva livre e voluntária;

Após ter decidido adotar diversas proposições relativas ao incentivo à negociação coletiva, questão esta que constitui o quarto ponto da ordem do dia da reunião; e

Depois de ter decidido que tais proposições devem se revestir da forma de uma convenção internacional adota com a data de 19 de junho de mil novecentos e oitenta e um, a presente convenção, que poderá ser citada como a ‘Convenção sobre a Negociação Coletiva, de 1981’: (...)

Art. 5 — 1. Deverão ser adotadas medidas adequadas às condições nacionais no estímulo à negociação coletiva.

2. As medidas a que se refere o parágrafo 1 deste artigo devem prover que:

a) a negociação coletiva seja possibilitada a todos os empregadores e a todas as categorias de trabalhadores dos ramos de atividade a que aplique a presente convenção”

Isso se deve ao fato de que as convenções e acordos coletivos se mostram como instrumentos absolutamente adequados para tutelar os direitos dos trabalhadores da categoria representadas, pois podem promover condições mais favoráveis adequadas aos anseios de cada categoria de maneira individualizada – já que, por óbvio, seria impossível que uma regra tão geral como a CLT pudesse prever situações igualmente benéficas para todas as profissões – naquilo que chamamos de princípios da criatividade jurídica da negociação coletiva e da adequação setorial negociada. Neste sentido, as palavras de Maurício Godinho Delgado2

“O princípio da criatividade da negociação coletiva traduz a noção de que os processos negociais e seus instrumentos (contrato coletivo, acordo coletivo e convenção coletiva do trabalho) têm real poder criar norma jurídica (com qualidades, prerrogativas e efeitos próprios a estas), em harmonia com a normatividade heterônoma estatal.

Tal princípio, na verdade, consubstancia a própria justificativa de existência do Direito Coletivo do Trabalho. A criação de normas jurídicas pelos atores coletivos componentes de uma data comunidade econômico-profissional realiza o princípio democrático de descentralização política e de avanço da autogestão social pelas comunicas localizadas. A antítese ao Direito Coletivo é a inibição absoluta ao processo negocial coletivo e à autonormatização social, conforme foi tão característico ao modelo de normatização subordinada estatal que prevaleceu nas experiências corporativistas e fascistas europeias da primeira metade do século XX. No Brasil, a tradição justrabalhista sempre tendeu a mitigar o papel do Direito Coletivo do Trabalho, denegando, inclusive, as prerrogativas mínimas de liberdade associativa e sindical e de autonomia sindical aos trabalhadores e suas organizações. Com a cara de 1988 é que esse processo começou a se inverter, conforme se observam de distintos dispositivos da Constituição (ilustrativamente, art. 7º, VI e XIII; art. 8º, I, III, VI; art. 9º).”

Mais do que isso, as normas coletivas possuem uma maleabilidade muito maior do que os penosos processos legislativos que antecedem a aprovação de uma lei.

Assim, referidos instrumentos se mostram como ferramentas que, utilizadas corretamente, podem ser de grande valia para garantir um direito do trabalho atualizado e adequado aos anseios da população trabalhadora do país. Justamente por isso a valorização do negociado sobre o legislado, trazida pela lei 13.467/17, deve ser bastante festejada.

Com efeito, apesar dessa valorização, evidentemente devemos nos ater aos limites que devem ser observados quando analisamos a questão do negociado com prevalência ao legislado.

Neste sentido, a lei 13.467/17 delimitou, nos artigos 611-A e 611-B as matérias que podem, ou não, ser objeto de negociação coletiva, indicando que, os temas mencionados no artigo 611-A podem ser objeto de negociação, sendo que as regras eventualmente dispostas em instrumentos coletivos terão prevalência sobre a lei; enquanto que os temas mencionados no artigo 611-B constituem objeto ilícito de convenção coletiva. No entanto, enquanto o rol previsto no artigo 611-A seja meramente exemplificativo; o rol previsto no artigo 611-B se mostra como taxativo.

II. Possibilidade de flexibilização da cota de PNE – Situações anteriores à lei 13.467/17

Aprofundando-se no tema proposto, propomos analisar se a questão da possibilidade de flexibilização das cotas previstas na lei 8.213/91 está, ou não, no rol taxativo de objetos ilícitos de convenção ou acordo coletivo de trabalho.

Referida matéria se mostra absolutamente relevante atualmente, pois, mesmo antes da reforma trabalhista, muitas empresas já haviam tentado negociar cláusulas nesse sentido, além de se socorrerem do Poder Judiciário, para invalidar autuações por descumprimento da referida lei.

Analisando o rol taxativo, a única previsão que encontramos está no inciso XXII que prevê a “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência”.

Nos resta, então – tentar – entender se referida previsão também abarca uma proibição de flexibilização da cota prevista na lei 8.213/91 e, pelo menos a princípio, nos parece que não, pois mesmo antes da entrada em vigor da lei 13.467/17, os Tribunais Trabalhistas brasileiros já mostravam tendências de situações que poderiam ensejar a flexibilização deste número.

Abaixo, destacaremos 2 (dois) fundamentos utilizados antes da lei 13.467/17 que lograram algum êxito, ainda que parcial, para flexibilizar a exigência legal. Posteriormente, analisaremos decisão no âmbito do TST sobre a previsão de cláusula convencional que altera a base de cálculo das vagas para PNEs.

 

a) Incompatibilidade do trabalho desenvolvido com a condição física do PNE

O mais importante fundamento que ganhou respaldo jurídico foi o de que certas atividades seriam simplesmente incompatíveis com a condição física do PNE e que eventual trabalho poderia, inclusive, colocar em risco a vida do empregado PNE e das demais pessoas.

Nesse sentido, decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª região (São Paulo) e da 5ª região (Bahia) preveem que empregados deficientes não estão aptos a desenvolver determinadas atividades “que possam requerer capacitação ou agilidade incompatíveis com as suas limitações ou que possam colocar em risco a vida da população em geral”. Por oportuno, passamos a transcrever trechos dos referidos julgados:

“(...) 3. Apuração da base de cálculo para a contratação de trabalhadores portadores de necessidades especiais (artigo 93 da lei 8.213/91)

Sustenta a recorrente que presta serviços auxiliares de transporte aéreo, sendo que para o desempenho de suas atividades possui um quadro de trabalhadores das mais diversas qualificações que, na grande maioria, exercem suas funções diretamente no pátio de manobras dos aeroportos, e não em escritórios desenvolvendo atividades administrativas. Daí a impossibilidade na contratação desses trabalhadores especiais para o desempenho de atividades inerentes aos serviços operacionais, em razão da qualificação exigida para estes funcionários. (...).

Destarte, diante do quanto exposto acima, e para preservar o bem maior, a vida, declaro que a base de cálculo para a apuração da quantidade de trabalhadores portadores de necessidades especiais a serem admitidos pela ré deve incidir apenas e tão-somente sobre o número de empregados que ficam lotados dentro dos escritórios exercendo funções administrativas, excluindo, por conseguinte, aqueles que necessitam laborar diretamente nos serviços operacionais dentro dos pátios de aeroportos. (...)”

(PROCESSO TRT/SP 0001564-80.2011.5.02.0023 – Ac. pub.: 13/8/13)

“(...). A interpretação da norma do art.93 da lei 8.213/91, há de ser realizada levando-se em conta o contexto de cada empresa.

No caso, há que atender à situação especialíssima da reclamada que tem o seu quadro de empregados composto, majoritariamente, por aeronautas, como se vê do documento de fls. 55 a 67, peça que não foi impugnada pelo Ministério Público do Trabalho.

Como se depreende da documentação acostada, a reclamada mantém em seus quadros 308 empregados, dentre os quais 302 aeronautas e 06 aeroviárias.

Ora, o aeronauta, segundo a lei 7.183/84, exerce atividade a bordo de aeronave civil nacional, sendo profissional habilitado pelo Ministério da Aeronáutica.

E a lei que regula as atividades de tais profissionais lhe impõe, como obrigação, manter em dia seus certificados de habilitação técnica e de capacidade física, consoante art. 19 da lei 7.183/84 (alegação da defesa).

Percebe-se, destarte, que o exercício profissional de tal atividade pressupõe a existência de higidez física e mental da categoria profissional.

Logo, até mesmo pela necessidade de segurança de vôo e preservação da vida dos passageiros transportados, é inviável a colocação de portadores de deficiência física ou mental no quadro de aeronautas da empresa. (...).

No caso concreto a base de cálculo para aferir-se o número de vagas a serem preenchidas por deficientes não deve tomar por base o quadro de aeronautas, que é inacessível aos empregados portadores de condições especiais de trabalho, mas, sim, em relação ao quadro de aeroviários, no qual só labutam na recorrente seis empregados. (...).

(PROCESSO TRT/BA 0124400-06.2003.5.05.0006 – Ac. pub.: 19/12/06)

O TST ao julgar o Recurso interposto pelo Ministério Público do Trabalho nos autos do processo TRT da Bahia 0124400-06.2003.5.05.0006 manteve a decisão do regional da Bahia, com a consequente exclusão dos aeronautas da base de cálculos da cota de PNEs. Confira-se:

“(...) Na hipótese dos autos, trata-se de empresa cujo quadro de empregados é composto por 308 trabalhadores, dentre os quais 302 são aeronautas e somente 6 são aeroviários.

Como consta da decisão recorrida, há legislação específica para os aeronautas, exigindo-se dos profissionais, além de habilitação técnica, capacidade física, nos termos do art. 19 da lei 7.183/94, com credenciamento junto ao Ministério da Aeronáutica.

Em face de disposição legal, resta clara a impossibilidade de contratação de pessoas portadoras de deficiência para desempenhar todas as atividades de aeronauta. A reserva de mercado aos trabalhadores alcançados pelo já citado art. 93, está limitada àquelas tarefas compatíveis com as restrições da lei 7.183/94.

A hipótese, portanto, não é de flexibilização do percentual fixado no art. 93 da lei 8.213/91, mas da adequação em decorrência das atividades da empresa.

Não se evidencia que a ré tenha recusado a contratação de trabalhadores que, atendendo às condições das leis 7.183/99 e 8.213/91, pudessem desenvolver atividades compatíveis com suas condições pessoais.

O número de vagas disponibilizadas aos aeroviários (seis) não alcança o limite legal. Intacta, assim, a literalidade do art. 93 da lei 8.213/91. (...).

(PROCESSO TST-AIRR-124440-85.2003.5.05.0006 – Ac. pub.: 3/9/10)

Além das atividades mencionadas acima, outro ramo de atividade que os Tribunais entenderam que seria incompatível com o trabalho dos PNEs seria o de “segurança privada”. Nesse sentido é a decisão do eminente desembargador ANDRÉ R.P.V. DAMASCENO, do TRT de Brasília, o processo 0437-2007-018.10.00.1, que assim decidiu:

“Empresas de vigilância privada. Vagas destinadas a deficientes físicos. Artigo 93, da lei 8.213/91. Cálculo do percentual. Incidência sobre o efetivo das empresas, excluídos os empregos de vigilância. A empresa que conta com 100 ou mais trabalhadores deverá obedecer a um percentual de empregados portadores de necessidades especiais, segundo estabelece o caput do art. 93 da lei 8.213/91. Contudo, tal dispositivo de lei deve ser interpretado levando-se em consideração as peculiaridades materializadas no caso concreto. As empresas de vigilância privada são regidas pela lei 7.102/83 que traz normas específicas para o exercício da profissão de vigilante, sendo obrigatória a aprovação em curso de formação de vigilante, envolvendo matérias relativas à defesa pessoal, armamento e tiro, entre outras, além de aprovação de exames de saúde física, mental e psicotécnico. É de se notar que as habilidades exigidas no curso de qualificação para vigilantes revelam-se incompatíveis com as restrições de uma pessoa portadora de necessidades especiais, defendo o cálculo de percentual a que alude o referido dispositivo de lei incidir sobre o efetivo das empresas de vigilância excluídos os empregos de vigilante”.

Confira-se, ainda, precedente no mesmo sentido para “motoristas”:

“MANDADO DE SEGURANÇA - INCLUSÃO DE MOTORISTAS NA BASE DE CÁLCULO PARA DEFINIÇÃO DO NÚMERO DE EMPREGADOS DEFICIENTES FÍSICOS CONTRATADOS PELA EMPRESA - IMPOSSIBILIDADE - Da simples leitura dos artigos 145 e 147 do Código de Trânsito Brasileiro é possível se concluir que a atividade de motorista de coletivos não pode ser realizada por pessoas desprovidas de aptidão física e mental, já que se trata de profissão peculiar com exigências legais específicas. Assim, merece ser concedida a segurança requerida para que os motoristas sejam excluídos da base de cálculo da cota de empregados deficientes físicos que as empresas representadas pelo impetrante são obrigadas a contratar.”

(TRT-3 - RECURSO ORDINARIO TRABALHISTA, 0001743-15.2010.5.03.0025, data de publicação: 19/3/12)

E, ainda, para petroleiros que exercem funções offshore:

TRABALHO EM PLATAFORMA DE PETRÓLEO. COTAS. ARTIGO 93 DA LEI 8.213/91. AUSÊNCIA DE DANO MORAL COLETIVO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. A lei de cotas, embora não tenha estabelecido exceções, deve ser aplicada com razoabilidade para que empregadores não sejam excessivamente punidos por não conseguirem cumprir o percentual da totalidade de seu quadro efetivo. No caso das empresas ligadas ao setor de petróleo, que executam trabalhos off- shore, o número de empregados embarcados deve ser excluído para o cálculo da cota, já que pessoas com determinados tipos de deficiência, por questões de segurança, não podem trabalhar em plataformas de petróleo. Diante da Teoria do Risco Profissional, ao empregador caberá a avaliação de cada caso separadamente, certamente não fugindo à recomendação de observância do tipo de deficiência acoplada ao trabalho ofertado, com as respectivas capacitações cabíveis. Relator: DESEMBARGADOR MARCELO ANTERO DE CARVALHO Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Recorrida: ENSCO DO BRASIL PETRÓLEO E GÁS LTDA RELATÓRIO (TRT-1-RO: 01484009820095010482 RJ, Relator: Marcelo Antero de Carvalho, data de julgamento: 25/11/15, décima turma, data de publicação: 3/12/15)

Em suma, há precedentes jurisprudenciais, que excluem da base de cálculo do art. 93 da lei 8213/91 os empregados em atividades que possam requerer capacitação ou agilidade incompatível com as suas limitações ou que possam colocar em risco a vida da população em geral. Em geral, os precedentes se aplicam em atividades com legislação específica, tais como: (i) aeronautas; (ii) cobradores e motoristas de ônibus; (iii) segurança privada / transporte de valores; e (iv) empregados em plataformas.

b) Impossibilidade de cumprimento da quota diante do empenho no cumprimento da lei

Além dos precedentes mencionados acima, nossos Tribunais também vem aceitando flexibilizações da cota que teriam como fundamento o princípio da razoabilidade, como bem pontuou o desembargador relator, MARCELO ANTERO DE CARVALHO, no julgamento do recurso ordinário do processo 0148400-98.2009.5.01.0482, citado acima, que considerou que a Lei de Cotas, embora não tenha estabelecido exceções, “deve ser aplicada com razoabilidade para que as empresas não sejam excessivamente punidas”.

Além disso, o desembargador relator considerou que, mesmo pessoas com deficiências físicas mínimas não devem ter tratamento diferenciado, pois, dessa forma, os empregados sem deficiência é que estariam sendo prejudicados nas oportunidades de emprego, bem como também se mostra improvável que trabalhadores com deficiências físicas demonstrem interesse em ofícios, como o do referido caso, que lhe acarretem riscos.

Por fim, o desembargador consignou ser notório “o fato das empresas terem dificuldades várias para contratar pessoas com deficiência, seja pela falta de capacitação dos profissionais ou pela falta de interesse dos próprios trabalhadores, que procuram manter benefícios sociais”.

O desembargador aposentado e ex-presidente do TRT da 3ª região DÁRCIO GUIMARÃES DE ANDRADE possui o entendimento de que o artigo 93 da lei 8.213/91, que estabelece a porcentagem de funcionários portadores de deficiência por número de funcionário é inconstitucional, pois discrimina os candidatos sadios aos empregos. Nas suas palavras: “Sabidamente o artigo 93 é inconstitucional, porque discrimina os candidatos sadios aos empregos.”

Nesse contexto, temos exemplos de decisões que acolheram o entendimento de anular autos de infração de empresas que, apesar de não alcançarem os índices exigidos, empenharam-se no cumprimento da lei:

"RECURSO ORDINÁRIO - LEI 8.213/91 - COTA DEFICIENTES FÍSICOS - AUTO DE INFRAÇÃO - AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - É inequívoco que a empresa tem função social e que também tem papel a desempenhar na capacitação dos portadores de deficiência, ainda que na espécie de sociedade que vivemos, sob o regime capitalista. Todavia, o Princípio da Solidariedade, o dever do estado de prestar ensino fundamental especializado, obrigatório e gratuito aos portadores de deficiência e também de lhes criar programas de prevenção, inseridos na Constituição Federal, artigos 208 e 227, parágrafo 1º, revela não ser plausível que o estado se omita em tão importante questão que é a adaptação social integral do portador de deficiência, esperando que a iniciativa privada supra as falhas das famílias, das escolas e da Previdência Social. Afronta o princípio da legalidade multa em auto de infração lavrado por auditor fiscal do trabalho quando a empresa tendo firmado com o Ministério Público do Trabalho, Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta - TCAC - ainda se encontrava dentro do prazo de 2 anos, onde se obrigou a preencher com beneficiários reabilitados ou com pessoas portadoras de deficiência habilitadas, o percentual de seus cargos estabelecidos no artigo 93, da lei 8.213/91. Reveladoramente constrangedora também se mostra a realidade brasileira, onde estatísticas apontam que a questão da reserva de mercado de trabalho em relação às pessoas deficientes tem suscitado questionamentos no sentido de que a empresa-autora não é a única que tem tido dificuldades para cumprir integralmente o comando legal que ensejou a aplicação da multa, visto que a lei 8.213/91 se dirige aos beneficiários da Previdência Social, reabilitados ou pessoa portadora de deficiência habilitada e estas são raras a se apresentar. A louvável iniciativa do legislador de instituir um sistema de cotas para as pessoas portadoras de deficiência, obrigando as empresas a preencher determinado percentual de seus quadros de empregados com os denominados PPDs, não veio precedida nem seguida de nenhuma providência da Seguridade Social, ou de outro órgão governamental, no sentido de cuidar da educação ou da formação destas pessoas, sequer incentivos fiscais foram oferecidos às empresas. A capacitação profissional é degrau obrigatório do processo de inserção do deficiente no mercado de trabalho. A secretaria da Inspeção do Trabalho, ao editar a instrução normativa 20/01, a orientar os auditores fiscais do trabalho na fiscalização do cumprimento do artigo 93 da lei 8.213/91, resolveu definir como pessoa portadora de deficiência habilitada, aquelas que não se submeteram a processo de habilitação, incluindo como habilitadas as capacitadas para o trabalho, indo além do que disse a lei, e reconhecendo, implicitamente, a carência de portadores de deficiência habilitados. Recurso a que se dá provimento para anular o débito fiscal."

(TRT/SP 03506.2006.081.02.00-8, relatora: Juíza RITA MARIA SILVESTRE, DATA DA PUBLICAÇÃO: 12/8/08, ACÓRDÃO 20080053100)

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESERVA LEGAL DE VAGAS PARA PORTADORES DE DEFICIÊNCIA HABILITADOS OU BENEFICIÁRIOS REABILITADOS. ART. 93 DA LEI 8.213/91 E ART. 36 DO DECRETO 3.298/99. Hipótese em que a sentença deu procedência à Ação Civil Pública para obrigar a empresa a contratar trabalhadores portadores de deficiência habilitados ou beneficiários reabilitados. A observância dos artigos 93 da lei 8.213/91 e 36 do decreto 3.289/99 que regulamentou a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (lei 7.853/89) deve levar em conta a OS Conjunta do INSS 90/98, segundo a qual a inexistência de vaga na empresa não enseja o descumprimento da norma. É certo que a reserva legal atende o objetivo de inserção, no mercado, dos trabalhadores recapacitados ou portadores de deficiência física ou mental, habilitados para o desempenho de atividades laborais. Ocorre que esta inserção deve ser feita com uma margem mínima de critérios, de modo a permitir a aplicabilidade da norma, e atingir os objetivos legal e constitucional. Assim, em atenção aos interesses difusos dos diversos e inominados portadores de deficiência física e mental, representados pelo Ministério Público do Trabalho, e também em vista do interesse da empresa, de não ser condenada a cumprir ordem inexequível, admite-se o atendimento gradativo do percentual mínimo, na medida em que venham surgir vagas capazes de provimento por pessoal habilitado. Recurso ordinário a que se dá parcial provimento."

(TRT – 4ª Região – Rio Grande do Sul, Acórdão do processo 0084300- 29.2000.5.04.0010 (RO), relatora: desembargadora MARIA INÊS CUNHA DORNELLES, data: 17/3/04. Origem: 10ª Vara do Trabalho de Porto Alegre)

“(...) No entanto, o certo é que há provas nos autos que, de várias formas, mesmo através de concursos a empresa tentou repetidamente preencher a cota prevista no art. 93 da lei 8213/91. Disse que a intepretação da norma é teleológica e dentro do princípio da razoabilidade, não entanto a empresa obrigada a contratar pessoas despreparadas, sem noção técnica para o cargo que irá ocupar, sem as habilidades necessárias para o cargo. A colocação daqueles que não são portadores de deficiência está difícil, apesar dos noticiários em jornais demonstrar a existência de vagas. As vagas existem, mas o que não está existindo é a qualificação dos candidatos a emprego. Obrigar empresas a contratar qualquer um, um despreparado, sem qualificação profissional, é o mesmo que colocar em risco o empreendimento. A empresa não pode ser apenada por não ter conseguido atingir a cota, porque a percentagem do art. 93 da lei 8213/91 tem que ser interpretada dentro do princípio da razoabilidade. Contrato é a manifestação bilateral de vontades. Não tem a empresa, por outro lado, o poder de obrigar o candidato ao emprego a aceitar a remuneração oferecida, as condições de trabalho previstas em norma regulamentar. Normalmente as empresas não conseguem cumprir a cota por motivos alheios à sua vontade.” (Processo 0025800-83-2008-5.01.0038; juiz José Mateus Alexandre Romano, 38ª Vara do Trabalho de Rio de Janeiro)

Em suma, os Tribunais também demonstraram uma tendência de flexibilização do cumprimento da cota de PNEs, para empresas que conseguiram efetivamente comprovar que se empenharam no cumprimento da lei, mas que, em razão da notória dificuldade de contratação de empregados qualificados, não alcançou a quantidade legalmente prevista.

c) Existência de negociação coletiva flexibilizando a quota de PNEs

Quando questionado, antes da reforma trabalhista, o TST “consolidou” os argumentos mencionados acima e, ao julgar o recurso ordinário 76-64.2016.5.10.0000, declarou a validade de cláusula de convenção coletiva que fixou como base de cálculo da cota o número de trabalhadores administrativos das empresas.

Com efeito, a cláusula 10ª da referida convenção coletiva de trabalho assinada previa como parâmetro de cálculo das cotas exigidas pelo artigo 93 da lei 8.213/91 apenas o número de empregados da área administrativa das empresas de vigilância privada, já que o ofício de vigilante poderia trazer riscos à segurança dos próprios empregados, eis que “o exercício da função de vigilante, regulada pela lei 7.102/73, exige determinadas qualidades físicas e mentais dos trabalhadores, inclusive para porte de armas e defesa própria, do local e das pessoas vigiadas – algo considerado incompatível com situação das pessoas com necessidades especiais ou com limitações”.

Como podemos ver, no julgamento, os ministros ponderaram, também, os seguintes aspectos: (i) que os sindicatos não se negaram a cumprir a reserva legal de vagas para pessoas com deficiência, mas apenas restringiram a base de cálculo para os cargos de natureza administrativa; e (ii) a incontroversa dificuldade para contratar pessoas com deficiência aptas ao desempenho das funções de vigilância, conforme demonstrado em defesa pelo sindicato patronal.

III. Possibilidade de flexibilização da cota de PNE – Situações posteriores à lei 13.467/17

Como era de se esperar, ainda mais com a entrada em vigor da reforma trabalhista, algumas empresas incluíram cláusulas em suas convenções coletivas flexibilizando as cotas previstas no artigo 93 da lei 8.213/91 e o TST terá a oportunidade de, pela primeira vez, analisar a matéria sob o âmbito da nova Legislação, ao analisar e julgar a ação anulatória de cláusula normativa 1000639-49.2018.5.00.0000.

Neste caso, o Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA) e o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) firmaram convenção coletiva que excluiu os aeronautas da base de cálculo das cotas para contratação de aprendizes e de pessoas com deficiência ou reabilitadas. Em razão disso, o Ministério Público do Trabalho, aduziu que, apesar das inovações trazidas pela lei 13.467/17, o artigo 93 da lei 8.213/91 seria norma com caráter de ordem pública, inderrogável, portanto, por um instrumento normativo de trabalho.

Essa será a primeira vez que a matéria será analisada por nosso Tribunal Superior depois da entrada em vigor da lei 13.467/17. No entanto, devemos destacar que estaremos, novamente, diante de uma categoria que possui uma legislação própria, em que já havia precedentes jurisprudenciais que excluíam da base de cálculo do art. 93 da lei 8213/91 os aeronautas, que inequivocamente requererem capacitação e agilidade incompatíveis com as limitações e podem colocar em risco a vida dos passageiros.

Dessa forma, ao que nos parece, nem após o julgamento da ação anulatória de cláusula normativa 1000639-49.2018.5.00.0000, será possível concluir se o TST firmará sua jurisprudência no sentido de ser possível, em todos os casos, a flexibilização do cumprimento da quota de PNEs através de instrumento normativo, ou se, em verdade, seria possível apenas para determinadas categorias, tratando-se- de um argumento acessório, mas que, por si só, não permitiria que quaisquer outras categorias agissem do mesmo modo.

IV. Conclusões

Terminando do mesmo jeito que começamos, considerando sua pouca “idade”, ainda não é possível definir qual será o entendimento dos nossos Tribunais Regionais e Superiores sobre a possibilidade de flexibilização das cotas de PNEs em instrumentos coletivos, pois considerando que o rol do artigo 611-B, da, agora, CLT, nos parece bastante prematuro afirmar que a previsão de “proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência” pode ser entendida como uma proibição de flexibilização da cota prevista na lei 8.213/91.

No entanto, considerando os entendimentos firmados anteriormente, a esperança de muitas empresas e empregados é de que o TST considere referida cláusula como válida.

Obviamente, não será uma tarefa fácil: a matéria envolve temas sensíveis para a sociedade, como função social, limites do negociado sobre o legislado, inclusão de PNEs no mercado de trabalho, proteção aos empregados, entre outros. Mas uma coisa é certa: a decisão que será tomada pelo TST, possivelmente, balizará todas as negociações coletivas realizadas nos próximos anos.

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1 Trecho do projeto de lei 6.787 de 2016; disponível em: clique aqui. Acessado em 28/11/18.

2 DELGADO, Maurício Godinho in Direito coletivo do trabalho e seus princípios informadores; acessado em 27/11/18.

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*André Rodrigues Schioser é advogado trabalhista do escritório Gasparini, De Cresci e Nogueira de Lima Advogados.





 

*Paula Boschesi Barros é advogada trabalhista do escritório Gasparini, De Cresci e Nogueira de Lima Advogados.

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