Migalhas de Peso

Drogas e princípio da insignificância: atipicidade material do fato

A posse de droga para consumo pessoal transformou-se (com a nova lei de drogas) numa infração “sui generis” (art. 28, que não comina pena de prisão). A ela se aplica, isolada ou cumulativamente, uma série de medidas alternativas (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso educativo). Quando, entretanto, se trata de posse ínfima de droga, o correto não é fazer incidir qualquer uma dessas sanções alternativas, sim, o princípio da insignificância, que é causa de exclusão da tipicidade material do fato.

31/8/2006


Drogas e princípio da insignificância: atipicidade material do fato

 

Luiz Flávio Gomes*

 

A posse de droga para consumo pessoal transformou-se (com a nova lei de drogas) numa infração “sui generis” (art. 28, que não comina pena de prisão). A ela se aplica, isolada ou cumulativamente, uma série de medidas alternativas (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso educativo). Quando, entretanto, se trata de posse ínfima de droga, o correto não é fazer incidir qualquer uma dessas sanções alternativas, sim, o princípio da insignificância, que é causa de exclusão da tipicidade material do fato.

 

Há duas modalidades de infração bagatelar própria: a primeira reside na insignificância da conduta (desaparece nesse caso o juízo de desaprovação da conduta); a segunda na do resultado (não há que se falar em resultado jurídico desvalioso).

 

A posse de droga para consumo pessoal configura uma das modalidades do chamado delito de posse (“delitos de posesión”), que retrata uma categoria penal muito singular no Direito penal. Mister se faz, para a consumação da infração, constatar a idoneidade ofensiva (periculosidade) do próprio objeto material da conduta. Se a droga concretamente apreendida não reúne capacidade ofensiva nenhuma, em razão da sua quantidade absolutamente ínfima, não há que se falar em infração (pouco importando a sua natureza, penal ou “para-penal”). Não existe, nesse caso, conduta penalmente ou punitivamente relevante.

 

A conseqüência natural da aplicação do critério da insignificância (como critério de interpretação restritiva dos tipos penais – assim sustentava Welzel - ou mesmo como causa de exclusão da tipicidade material – STF, HC 84.412, rel. Min. Celso de Mello) consiste na exclusão da responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouca importância ou de ínfima lesividade. São fatos materialmente atípicos (afasta-se a tipicidade material, pouco importando se se trata da insignificância da conduta ou do resultado). Se tipicidade penal é (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) tipicidade objetiva ou formal + tipicidade material ou normativa, não há dúvida que, por força do princípio da insignificância, o fato nímio ou de ínfimo significado é atípico, seja porque não há desaprovação da conduta (conduta insignificante), seja porque não há um resultado jurídico desvalioso (resultado ínfimo).

 

Sobre a mais adequada conseqüência dogmática do princípio da insignificância (exclusão da tipicidade material) paradigmático é o HC 84.412-SP do STF (rel. Min. Celso de Mello). Mais recentemente essa mesma posição foi reafirmada no RHC 88.880, pelo STF (rel. Min. Gilmar Mendes).

 

Jurisprudência brasileira: depois daquela primeira decisão do STF (de 1988: cf. RTJ 129/187 e ss. – caso de lesão corporal levíssima em razão de acidente de trânsito) cabe assinalar que praticamente toda a jurisprudência brasileira passou a admitir o princípio da insignificância como corretivo da abstração e generalidade do tipo penal.

Inclusive em matéria de entorpecentes, apesar das divergências (que continuam), são numerosas as decisões do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo o princípio da insignificância:

 

“Entorpecente. Quantidade ínfima. Atipicidade. O crime, além da conduta, reclama um resultado no sentido de causar dano ou perigo ao bem jurídico (...); a quantidade ínfima informada na denúncia não projeta o perigo reclamado”1.  Sempre “é importante demonstrar-se que a substância tinha a possibilidade para afetar ao bem jurídico tutelado”2.  A pena deve ser “necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do delito. Quando a conduta não seja reprovável, sempre e quando a pena não seja necessária, o juiz pode deixar de aplicar dita pena. O Direito penal moderno não é um puro raciocínio de lógica formal. É necessário considerar o sentido humanístico da norma jurídica. Toda lei tem um sentido teleológico. A pena conta com utilidade”3. 

 

“Trancamento de ação penal, crime, porte de entorpecente, maconha, pequena quantidade, inexistência, dano, perigo, saúde publica, aplicação, principio da insignificância. (voto vencido) (min. Paulo Gallotti) descabimento, trancamento de ação penal, crime, porte de entorpecente, maconha, uso próprio, hipótese, consumo, praça publica, irrelevância, pequena quantidade, caracterização, tipo penal, perigo abstrato, violação, saúde publica.” (STJ, HC 21672-RJ, Rel. Min. Fontes de Alencar).

 

“Penal. Entorpecentes. Princípio da insignificância. - sendo ínfima a pequena quantidade de droga encontrada em poder do réu, o fato não tem repercussão na seara penal, à míngua de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a hipótese no princípio da insignificância - habeas corpus concedido. (STJ, HC 17956-SP, rel. Min. Vicente Leal).

 

Também a Suprema Corte já reconheceu o princípio da insignificância nessa área4.  De qualquer modo, é certo que sua clássica posição em matéria de drogas é negativa: “Direito penal e processual penal. Posse ilegal de substância entorpecente (art. 12 da lei nº 6.368/76): pequena quantidade. Princípio da insignificância ou crime de bagatela. alegação de falta de justa causa para a ação penal (atipicidade material da conduta). "Habeas corpus". <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="1. A">1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não abona a tese sustentada na impetração (princípio da insignificância ou crime de bagatela). Precedentes. 2. Não evidenciada a falta de justa causa para a ação penal, o "H.C." é indeferido (STF, HC 81641-RS, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 04-04-2003, p.51).

Autoridade policial, MP, juiz e princípio da insignificância: a autoridade policial não pode proferir “decisão definitiva” sobre a insignificância da conduta ou do resultado (inclusive no caso de drogas). Sua atribuição primordial consiste em registrar o fato e deve fazê-lo (desde logo) num termo circunstanciado (quando se trata de fato insignificante). Se para a infração de menor potencial ofensivo essa é a solução legal, para o menos (fato atípico) não pode ser diferente. A autoridade policial não pode arquivar o procedimento investigatório (TC, inquérito policial etc.). Cabe-lhe registrar tudo (num TC) e enviar ao juízo competente, sendo certo que o Ministério Público pedirá o arquivamento desse TC em razão da atipicidade (material). Ao juiz (não à autoridade policial) cabe determinar o arquivamento (CPP, arts. 28 e 17). Nenhuma sanção pode recair sobre quem pratica uma conduta absolutamente insignificante.

 

Se o Ministério Público, em lugar de pedir o arquivamento fizer proposta de transação penal, impõe-se que a defesa solicite ao juiz o reconhecimento da insignificância (que não admite nem sequer sanções alternativas consensuadas). O caso é de arquivamento, reconhecendo-se a atipicidade material do fato. E se o juiz insistir na transação penal? Só resta o caminho do habeas corpus contra o juiz dos juizados (esse HC deve ser dirigido às Turmas Recursais). Não se obtendo êxito nas Turmas Recursais, só resta levar o assunto ao STF (que é o competente para conhecer e julgar HC contra as Turmas Recursais).

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1Cf. decisão de 18/12/1997, relator LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJU de 6/4/1998, p. 175. Sobre o princípio da insignificância e ínfima quantidade de entorpecentes cf: MENDES, Carlos Alberto Pires, O princípio da insignificância e a ínfima quantidade de entorpecente, Justicia & Poder n. 3, 1998, p. 65. Veja também FRANCO, Alberto Silva et alii, Leis penais especiais e a sua interpretação jurisprudencial, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1096 e ss.

 

2Cf. decisão de 30/3/1998, relator ANSELMO SANTIAGO, DJU de 1/6/1998, p. 191.

 

3Cf. decisão de 21/4/1998, relator LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJU de 17/8/1998, p. 96.

 

4Cf. decisão no HC 77.003-PE, relator MARCO AURÉLIO, Boletim IBCCrim n. 72/Jurisprudência, 1998, p. 301.

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Fundador e presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes








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