Nos últimos dias veio à tona, como uma avalanche ou a erupção de um vulcão jamais previsto por quem quer que fosse, acusações contra um cidadão brasileiro conhecido como João de Deus, a quem se imputa, repentina e sucessivamente, a pratica de centenas de abusos sexuais durante mais de três décadas, fatos esses que teriam ocorrido ao longo ou após os atendimentos espirituais que ele oferece em seu local de acolhida na cidade de Abadiânia-GO. Tudo coisa antiga, de outrora, nada atual, nenhuma coisa de agora. De um lado uma pessoa, cidadão brasileiro como qualquer um de nós, mas que não era "só mais um Silva" e que tem em seu currículo a cura de um sem número de pessoas, brasileiras ou não, com as mais diversas doenças. De outro, mais de 100 (cem) mulheres, ilustres desconhecidas de vários locais do Brasil e até mesmo de países estrangeiros, que afirmam terem sido vítimas de algum ato de cunho sexual por parte dele. É o que a mídia nos expõe nos últimos dias e é o que o MP, de Goiás e de São Paulo, e a Polícia Civil do Estado de Goiás, informam à imprensa, inclusive narrando como teriam sido as condutas imputadas e ainda em fase de investigação. Vale lembrar que a investigação corre sob segredo de justiça e que por isso, milagrosamente, a imprensa (ainda) não disponibilizou (com exclusividade e em primeira mão) qualquer peça da investigação para que a população, sedenta por saber dos fatos da moda do momento, possa formar a opinião pública(da).
Como desenvolvimento das investigações adveio um pedido de prisão preventiva realizado pelo MP/GO e deferido pelo juízo da causa. Nem a petição que contém o pedido de prisão preventiva, tampouco a decisão que acatou o pleito e decretou a prisão preventiva, vieram ao conhecimento do público, especializado ou não no ramo jurídico.
Eis a situação que se tem. E dentro desse quadrante passamos a escrever as próximas linhas. Antes, porém, cabe destacar que o que ora se analisa e o que se segue não leva em conta a subjetividade das pessoas envolvidas, seja ela o acusado, sejam elas as acusadoras. Não está em jogo aqui um ou outro. Menos ainda a questão de fé ou religiosidade das pessoas envolvidas, deste autor e dos leitores. O presente artigo se presta a analisar o fato alegado e o direito aplicável à espécie. Nada mais, nada menos.
Dito isso, prossigamos.
De início deve-se destacar que qualquer conduta imputada a João de Deus que tenha mais de 20 (vinte) anos de sua ocorrência está, indiscutivelmente, fulminada pela prescrição de (eventual) direito de punir estatal em razão de ser este o prazo máximo para a persecução e julgamento de qualquer fato criminoso e do seu respectivo autor, conforme dispõe o art. 109, CP. Pouco importa qual a classificação jurídica que se dê ao fato. Caso se considere a tipificação penal ora em análise o prazo pode ser ainda mais reduzido. Além disso, a conduta cuja alegada (sim, alegada) vítima tivesse mais de 18 (dezoito) anos de idade à época ou que embora menor de idade naquele tempo já ultrapassou a maioridade (civil e penal) está contaminada pela decadência do direito de representação ou direito de oferecimento de queixa crime, pois que, pelo que noticiado até agora, nenhuma delas ocorreu há menos de 6 (seis) meses. Com isso, em ambas as hipóteses não há mais porque se investigar e processar o fato, pois, se direito de punir houver, ele é natimorto.
E, pelo que está informado pela mídia, que nos repassa aquilo que as autoridades responsáveis por todas as investigações lhes fomentam (o que é um outro sério e grave problema tupiniquim que mercê tratamento apropriado em outro momento e seara), é a situação da maioria, se não de todas, as acusações feitas contra João de Deus. Nenhuma atual, recente ou que gere o estado de flagrância. Por isso a nossa primeira pergunta: por que e para que investigar se não há direito, em tese, a se discutir? Para expor a pessoa do acusado, sobre quem sequer recai uma denúncia formalmente formulada e menos ainda alguma culpa judicialmente declarada transitada em julgado (lembrem-se da presunção de inocência2 ou da não culpabilidade)? Para fazer alarde social? Para fazer chacota com o nome do investigado? Para destruir a sua carreira por razões sejam elas quais forem? Para dar voz àquelas pessoas que se alegam (relembre-se) vítimas dele? Para combater a violência sexual contra mulheres? Enfim, seja o motivo qual for, por mais relevante e nobre que seja, não supera a (des)necessidade jurídica da atuação penal estatal, com toda sua força (polícias, legislação, MP e Poder Judiciário) em casos tais. Ou alguém admite que se faça tudo o que está sendo feito para depois dizer que, se culpa houver de João de Deus, não é mais possível puni-lo, isto é, que se trabalhe sabendo desde já que o possível resultado é o prejuízo?
Outro ponto de relevo é o pedido de prisão realizado e acatado. As razões de um e de outro não foram publicadas, razão pela qual não cabe aqui analisá-las. Todavia, se os fatos são pretéritos, e alguns tão (ante)passados que já não são puníveis penalmente, por que considerá-los para fins de pedido e de concessão, caso assim tenha ocorrido? Se não há informação de atualidade delitiva, requisito básico e essencial, segundo Rodrigo Capez3 e o STF4, qual a base jurídica para se valer do mais selvagem e depravado instrumento jurídico que há (o cerceamento da liberdade, mais ainda sem culpa formada)?
Ademais, se fundamento houver para a decretação da prisão cautelar exatamente por isso mister se faz passar pela análise da sua substituição por medida cautelar diversa da prisão, ambos os casos mediante o exercício do contraditório da parte alvo de tais medidas, já que não há risco de sua frustração, conforme o art. 282, § 3º, CPP.
E no campo das medidas cautelares é de se indagar se não seria suficiente a proibição de que João de Deus atendesse a outras pessoas, principalmente mulheres, desacompanhado de outra pessoa que labora junto com ele em seu mister espiritual. Afinal de contas, se o trabalho que João de Deus desenvolve traz benefícios sociais os mais diversos (saúde, turismo, movimentação da economia local, arrecadação de impostos e etc.), fato este incontroverso, por que interrompê-lo abruptamente e assim arrastar junto com João de Deus também as pessoas que acreditam na capacidade dele de curar suas doenças e os cidadãos da cidade de Abadiânia-GO, e de outros locais também, que se beneficiam do que ele produz? O que fizeram essas outras pessoas para serem também punidas tão severamente? Por que levá-las para a prisão da miséria, seja ela espiritual, laboral, financeira ou de que ordem for?
Por fim, há de se lembrar que a investigação policial, caso se mostre adequada e necessária, fomentará a opinio delicti do MP competente para oferecer ou não a denúncia em razão dos fatos em apreço, e que eventual persecução judicial dos fatos e do seu autor terá como regra o ônus da prova exclusivo para a acusação5, o direito à prova (de ambas as partes)6, a busca de uma verdade judicial e não da verdade real (já que a verdade absoluta é intangível do ponto de vista epistemológico e está baseada na doutrina da jurisdição como verificação de fato e juiz boca da lei7, bem como que a verdade absoluta pertence a Deus, restando ao homem uma verdade mitigada, uma verdade faltando um pedaço8) e a valoração da palavra da vítima em crimes sexuais (outro problema de relevo da nossa terrae brasilis). Já é passada a hora de aplicação efetiva e eficaz dessas regras e de (re)pensar o jargão judiciário, repetido por um dos promotores de justiça que atuam no caso, de que em crimes sexuais se dá mais valor à palavra da vítima9 por serem praticados, em regra, às escondidas, razão pela qual “não há motivo para se duvidar da palavra [daquelas que se dizem] vítimas”. Não mesmo? Quer dizer então que se dentre as alegadas vítimas apenas uma ou poucas estiverem dizendo a verdade e as demais mentindo tudo o que contra João de Deus se alega é verdade porque repetida mil vezes, à moda de Joseph Goebbels, braço direito de Hitler)? Isso é um desrespeito às verdadeiras vítimas de crimes sexuais, à legislação aplicável ao caso, e à dignidade da pessoa humana (seja ela vítima ou autor do fato).
Tudo isso para evitar (revi)ver uma triste história social e judiciária brasileira, que já parece esquecida e fadada ao ostracismo, qual seja, a Escola Base10. Até agora o filme se repete já que o comportamento das autoridades estatais envoltas na investigação é idêntico (como sói ocorrer na operação Lava Jato, infelizmente). Como dizia Chico Xavier, não se pode mudar o começo, mas é possível fazer um novo final. Que assim seja!
Em tempo, uma provocação, cujo debate cabe mais à dogmática penal, para tentar responder à indagação feita no título deste artigo: se João é de Deus porque sobre ele atuam entidades com poderes de curas das mais diversas mazelas da saúde humana, quem estaria agindo no momento do alegado fato criminoso: João de Deus fisicamente ou a entidade por seu intermédio? Seria eventual ato sexualmente reprovável parte do tratamento a que se submetia a pessoa que procurava por ajuda ou excesso da entidade ou mesmo de João de Deus? A alegada vítima estava lá contra sua vontade ou teria consentido com tudo o que ocorreu? Enfim, são questões que precisam ser respondidas para se evitar o julgamento de Deus e realizar o de João, se necessário for.
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1 O título do presente artigo tem a colaboração do amigo e advogado criminalista Ticiano Figueiredo, que fez a primeira pergunta do título ao longo de uma conversa sobre o tema e reforçou a certeza da necessidade de elaboração destas linhas.
2 Sobre o tema recomenda-se a leitura de MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
3 CAPEZ, Rodrigo. Prisão e medidas cautelares diversas. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 459.
4 HC 156.730.
5 GOMES FILHO, Antonio Magalhaes. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). In: Revista do Advogado, n.º 42, br. 1994, p. 31.
6 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 76 e 77/79. TONINI, Paolo. A prova no processo penal italiano. Tradução de Alexandra Martins; Daniela Mróz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 83/87 e 102. BARROS, Antonio Milton de. Da prova no processo penal: apontamentos gerais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 21. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 77/79 e 83.
7 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 51/52.
8 TUCCI, Rogério Lauria. Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 91. ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade processual penal. 1ª., 4ª reimpressão. Curitiba: Juruá, 2014, p. 44.
9 FERNANDES, Antonio Scarance. O papel da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 25/26, 212/214 e 221. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 5ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 472/475. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12ª. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 462/463. CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Tradutor Francisco José Galvão Bueno. Vol. 1. Campinas: Bookseller, 2004, p. 316.
10 A Escola Base era uma escola particular localizada na cidade de São Paulo. Em março de 1994 os proprietário (o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada), a professora Paula Milhim Alvarenga e o seu esposo e motorista Maurício Monteiro de Alvarenga foram injustamente acusados pela imprensa de abuso sexual contra alguns alunos de quatro anos da escola. Em consequência da revolta da opinião pública a escola foi obrigada a encerrar suas atividades logo em seguida. A cobertura parcial por parte da imprensa e a conduta precipitada e muito questionada por parte do delegado de polícia Edélcio Lemos, responsável pelo caso, que, supostamente, teria agido pressionado pela mídia televisionada e pelas manchetes de jornais. O caso foi arquivado pelo promotor Sérgio Peixoto Camargo por falta de provas.
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*Fernando Parente é doutorando em processo penal pela USP, mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCEUB. Professor do IDP. Advogado sócio fundador do escritório Guimarães Parente Advogados.