1. Introdução
O objetivo deste artigo consiste em apresentar o estado da regulamentação dos criptoativos nos Estados Unidos, o que se justifica, em um primeiro momento, pela importância desse país para a economia mundial.
Além disso, o Brasil tende a "importar" modelos regulatórios vigentes nos Estados Unidos, muitas vezes, sem atenção às especificidades do mercado brasileiro, podendo-se citar como exemplo, o chamado critério "Howey Test", que embora seja uma criação da jurisprudência americana para caracterizar um contrato como sendo ou não de investimento, tem sido amplamente utilizado em nosso âmbito interno para a definição do conceito de valor mobiliário.
De um modo específico, relacionado ao mercado de criptoativos, recentemente a CVM utilizou o critério Howey Test para diferenciar o "token security" do "token utility". Tal ocorreu em processo instaurado com o fim de verificar se a "Initial Coin Offering" ("ICO") da criptomoeda denominada Niobium Coin ("Niobium"), relativa às atividades da denominada bolsa de moedas digitais empresariais de São Paulo - BOMESP ("Bomesp"), representava uma oferta pública de valores mobiliários e, desta forma, estaria sob a competência da CVM (CVM, 2017).
Enfim, conhecer a regulamentação americana também é importante em relação às estratégias de compliance, uma vez que países como o Brasil e a Alemanha seguem a orientação dos Estados Unidos no sentido de não considerar como atuantes no mercado interno apenas aquelas pessoas físicas ou jurídicas que atuem por meio de um local físico no país, mas também aquelas que ofereçam seus serviços por meio da internet, ainda que a sede da sociedade ou o local de atuação esteja no exterior1.
Ou seja, uma sociedade ou pessoa física brasileira que ofereça serviços financeiros ou relacionados ao mercado de criptoativos para cidadãos americanos ou alemães por meio da internet poderá estar sujeita inclusive a penalidades criminais, caso não observe as leis das jurisdições pertinentes, inclusive no que tange ao combate à lavagem de dinheiro.
Feitas essas considerações, passar-se-á a tecer algumas considerações acerca da complexa regulamentação vigente para o mercado de criptoativos nos Estados Unidos, cuja complexidade se acentua na medida em que se passa a considerar não apenas a legislação federal, mas aquela também vigente para os Estados federados.
2. A regulamentação das criptomoedas nos Estados Unidos
Uma dentre as várias tendências de regulamentação do mercado de criptomoedas observadas no cenário internacional consiste em equipará-las a outros ativos há muito tempo existentes, tal como o dinheiro e as commodities. Não há justificativa científica para essa tendência, mas meramente pragmática, dado a suposição de caráter político de que todo mercado deve ser obrigatoriamente regulamentado pelo Estado.
No contexto específico dos Estados Unidos a opção por equiparar as criptomoedas a outros ativos fez com que fosse atraída a jurisdição de diferentes agências reguladoras, tornando a configuração normativa aplicável a esse novo instituto extremamente complexa, pois passou a depender da interpretação de cada agência, conforme se verá a seguir.
2.1 Regulamentação Federal no tocante ao combate à lavagem de dinheiro.
Conquanto reconheça que as criptomoedas não se identificam ontologicamente com o conceito de moeda (currency), a agência responsável por coletar e analisar informações sobre transações financeiras, crimes financeiros, e o financiamento do terrorismo (FINCEN), com o fim de combater a lavagem de dinheiro, emitiu em 2011 e 2013 comunicados (guidances) regulamentando a aplicação do Bank Secrecy Act, principal Lei contra o combate à lavagem de dinheiro, em transações envolvendo criptomoedas.2 (LEE, 2018)
Contudo, a aplicação do Bank Secrecy Act não foi determinada mediante uma identificação ontológica entre as moedas fiduciárias e as criptomoedas, mas sobre pressupostos normativos diversos, considerando que, de acordo com as regras emitidas pelo tesouro americano, um dos critérios para definir um objeto como sendo moeda consiste no fato desse objeto ter sido emitido por algum Estado nacional, o que manifestamente não é o caso das criptomoedas (Financial Crimes Enforcement Network, 2013).
Sendo assim, o caminho encontrado para fazer incidir o Bank Secrecy Act em transações envolvendo criptomoedas se deu a partir do conceito de "Money Transmission Services". Para tanto, em um primeiro momento, o órgão regulador partindo do dualismo real versus virtual conceituou ontologicamente as criptomoedas como moedas "virtuais" (FINCEN, 2013).
Em um segundo momento, ainda no plano ontológico, malgrado o órgão ter reconhecido expressamente que tais "moedas" virtuais não ostentariam todas as características das moedas reais, afirmou que, em alguns ambientes, comportavam-se como tais (FINCEN, 2013), o que denota a importância atribuída para o elemento pragmático do conceito em detrimento do semântico.
Portanto, uma vez considerado que "as moedas virtuais em alguns ambientes se comportam como moedas reais", passou a ser possível subsumir algumas das atividades praticadas no mercado de criptomoedas, no contexto das disposições constantes do Bank Secrecy Act. E isso pelo fato de que para atrair a incidência do Bank Secrecy Act para uma atividade de natureza econômica ou financeira não é necessária a utilização de moedas fiduciárias, bastando que nessa operação esteja sendo utilizado qualquer "valor", desde que este cumpra algumas das funções tradicionalmente atribuídas para tais moedas (FINCEN, 2013), ou seja: unidade de conta, reserva de valor, e meio de pagamento.
Portanto, uma vez considerado que as transações com criptomoedas poderiam ser subsumidas ao conceito de Money Transmission Services, passou-se a definir quais seriam as pessoas envolvidas nessas transações que poderiam ser consideradas "Money Transmitters".
Nesse sentido, a agência reguladora inovou novamente por meio da criação de três conceitos (VALKENBURGH, 2017), que assim como o conceito de "moeda virtual" não constam nem do Bank Secrecy Act, nem da regulamentação Federal emitida pelo Departamento do Tesouro Americano.
O primeiro conceito com significado técnico, "user", se refere àquela pessoa que adquire criptomoedas, "virtual currency", com a finalidade de obter bens ou serviços, sendo a única isenta das obrigações contidas na legislação (VALKENBURGH, 2017).
O segundo conceito é o de "exchanger" aplicável àqueles que trocam "moedas virtuais" por "moedas reais"; "moedas virtuais" por outras "moedas virtuais", ou ainda por outros recursos de natureza financeira. Enfim, a agência traz o conceito de "administrator" que são aquelas pessoas que podem ou emitir "moedas virtuais" ou tirá-las de circulação (VALKENBURGH, 2017).
Ante o exposto, prima facie, apenas aqueles que adquirem moedas virtuais com o fim de obter bens e serviços estariam isentos da regulamentação voltada ao combate à lavagem de dinheiro. Contudo, a própria agência ressalta que esses conceitos não podem ser entendidos como uma afirmação sobre a extensão de aplicabilidade de outras normas federais ou estaduais, e mesmo do próprio Bank Secrecy Act (FINCEN, 2013).
Em que pese as incertezas existentes, impende-se ressaltar, todavia, que a não observância dessa regulamentação atrai a incidência de punições na esfera administrativa e criminal, não sendo válido como escusa o desconhecimento da lei.
2.1.2. Dois casos nos quais a regulamentação foi aplicada.
Um dos casos emblemáticos de aplicação das normas referidas terminou em um acordo entre a Ripple Labs, responsável pela criação da criptomoeda XRP, e o departamento de Justiça (LEE, 2018).
Por meio desse acordo, em troca de não ser processada criminalmente pela não observância das disposições contidas no Bank Secrecy Act,, além do pagamento de U$$ 450.000,00 ao Tesouro, a Ripple teve que reconhecer expressamente que violou diversas disposições regulamentares relativas ao combate à lavagem de dinheiro, além de ter tido que se comprometer a se adaptar à legislação aplicável aos chamados "Money Service Business" (LEE, 2018).
Já um segundo caso, no entanto, não terminou em acordo, mas foi levado a julgamento perante a Corte Distrital do Sul de Nova York.
De acordo com a acusação, de dezembro de 2011 até aproximadamente outubro de 2013, Robert M Faiella operacionalizou um mercado paralelo de Bitcoin na Dark Web, de modo a fomentar a compra de drogas ilícitas no website Silk Road (US v. Faiella).
Este website era acessado apenas por meio da rede Tor, especialmente desenvolvida para esconder o IP do usuário, de modo a preservar sua privacidade.
Fazendo uso do pseudônimo, BTCking, após receber ordens para a compra de bitcoins dos usuários do Silk Road, o acusado liquidava essas ordens por meio de uma companhia sediada em Nova York (US v. Faiella) que, por sua vez, fazia a troca de dinheiro por Bitcoins sem proceder a qualquer identificação pessoal do comprador.
Charlie Shrem, responsável pelo compliance da aludida companhia, também foi processado e condenado, sob a justificativa de que embora estivesse ciente de que o Silk Road se destinava ao comércio de drogas ilícitas, assim como que Faiella operacionalizava seu negócio lá, além de conceder descontos a Faiella, se absteve de cumprir com as disposições constantes das leis de combate à lavagem de dinheiro (US v. Faiella).
2.2. Regulamentação dos Estados federados
À parte da legislação Federal contra a lavagem de dinheiro os Estados membros da Federação também possuem disposições especificas aplicáveis àqueles que realizem atividades de compra e venda de moeda ou outros ativos financeiros. Desse modo, a questão no que se refere à legalidade das operações envolvendo criptomoedas nos Estados Unidos também vai depender do entendimento de cada Estado federado (LEE, 2018).
O Estado de Nova York, por exemplo, por meio de seu departamento de serviços financeiros, New York Department of Financial Services, foi o primeiro a criar uma licença específica para companhias operantes no mercado das criptomoedas, comumente denominada pelo termo BitLicence (LEE, 2018).
Para obter essa licença as sociedades deverão ter que cumprir com os seguintes requisitos: manter um departamento interno de compliance, em especial, contra a lavagem de dinheiro; manter um setor responsável para atender aos consumidores; manter em arquivo documentos relativos às operações realizadas para posterior auditoria; implantar medidas voltadas a assegurar a cibersegurança dos usuários (LEE, 2018).
Ficaram excluídos da necessidade de obter a BitLicence as pessoas que utilizem criptomoedas para adquirir bens e serviços, os mineradores (digital currency miners), que são os responsáveis pela criação de criptomoedas a partir da resolução de complexos problemas matemáticos, os desenvolvedores de softwares, assim como aqueles que realizem operações com criptomoedas, que não ostentem natureza financeira (LEE,2018).
Enfim, importante mencionar que a necessidade de haver uniformidade na legislação de modo a não impedir o desenvolvimento da tecnologia e a livre concorrência no setor financeiro, fez com que em 2017 a Uniform Law Comission, organização sem fins lucrativos criada com o fim de propor a adoção de Leis uniformes pelos Estados Federados, propusesse um modelo de regulamentação similar à BitLicence, denominado, Uniform Regulation of Virtual Currency Businesses Act, já adotado pelo Estado de Nebraska e do Hawaii (LEE, 2018).
2.3. Regulamentação das criptomoedas como commodities
A agência responsável por supervisionar o mercado de commodities nos Estados Unidos é a Commodity Futures Trading Commission, CFTC, que tem como objetivo proteger os investidores de fraudes, manipulações nos preços das commodities, e outras práticas abusivas proibidas pelo Commodity Exchange Act de 1936 (LEE, 2018).
Em princípio, uma sociedade que atue apenas no mercado à vista, spot market, não necessita ter registro na CFTC, dado que a jurisdição desta está voltada principalmente para o mercado futuro, assim como para o mercado de derivativos. Por exemplo, se a negociação de compra e venda de uma commodity for realizada sobre uma base financiada, por meio de alavancagem, "on a margin", o não enquadramento dessa operação como pertencente ao âmbito de jurisdição da CFTC dependerá do prazo de liquidação, ou seja, se a commodity será ou não entregue para o comprador em um prazo máximo de 28 dias (LEE, 2018).
Contudo, em que pese essas limitações que isentam de registro na CFTC aquelas operações que não aconteçam no mercado futuro ou de derivativos, referida agência tem poderes para reprimir fraudes ou manipulações no mercado à vista (LEE,2018).
A primeira manifestação da CFTC sobre as criptomoedas ocorreu em setembro de 2015 em um procedimento, "order", contra a Coinflip Incorporated, que negociava opções de criptomoedas por meio da plataforma Derivabit (LEE,2018).
Para justificar a instauração do expediente, em um primeiro momento, a CFTC utilizou informações constantes do próprio site da Derivabit, onde a Coinflip advertia seus usuários de que a plataforma tinha como função conectar compradores e vendedores de contratos futuros e de opções cujo ativo subjacente seria bitcoin. (Commodity Futures Trading Commission, 2015)
Em um segundo momento, assim como a FINCEN, a CFTC designou as criptomoedas pelo termo "moedas virtuais", e destacou o fato destas não serem emitidas por um Estado como moeda de curso forçado:
Bitcoin is a "virtual currency," defined here as a digital representation of value that functions as a medium of exchange, a unit of account, and/or a store of value, but does not have legal tender status in any jurisdiction. Bitcoin and other virtual currencies are distinct from "real" currencies, which are the coin and paper money of the United States or another country that are designated as legal tender, circulate, and are customarily used and accepted as a medium of exchange in the country of issuance. (CFTC, 2015)
Enfim, o órgão apresentou o conceito de commodity de acordo com a Seção 1a (9) do Commodity Exchange Act de 1936, de modo a destacar que esse conceito teria amplitude suficiente para abranger o conceito de "moeda virtual" (CFTC, 2015). Sendo assim, de acordo com a CFTC, as criptomoedas poderiam ser tratadas como qualquer outra commodity, a exemplo do ouro, grãos, petróleo ou gás natural (LEE, 2018).
Logo, com base em tais considerações, concluiu-se que a Coinflip Incorporated por meio da plataforma Derivabit teria violado diversos dipositivos atinentes ao Commodity Exchange Act de 1936, em especial os seguintes: "Sections 4c(b) and 5h(a)(1) of the Act, 7 U.S.C. §§ 6c(b) and 7b-3(a)(l) (2012), and Commission Regulations 32.2 and 37.3(a)(1), 17 C.P.R. §§ 32.2 and 37.3(a)(1) (2014) " (CFTC, 2015).
Por outro lado, o reconhecimento pela CFTC no sentido de que as criptomoedas seriam commodities tornou possível a sua negociação em grandes mercados oficiais, o que passou a ocorrer em 2017 no maior mercado de opções dos Estados Unidos, Chicago Board Options Exchange, assim como em um dos maiores mercados de commodities do mundo, ou seja, no Chicago Mercantile Exchange (LEE, 2018).
Deste modo, pela primeira vez, os interessados em investir no mercado futuro de criptomoedas passaram a ter acesso a um mercado liquido e regulamentado, o que trouxe como consequência o poder de especulação acerca do valor futuro do bitcoin sem necessidade de adquiri-la no mercado à vista (LEE, 2018).
2.4. Regulamentação das criptomoedas como securities.
A definição do termo Security constante do artigo 2° do Security Exchange Act de 1933 é demasiado ampla, na medida em que se optou por meramente enumerar alguns instrumentos amplamente negociados no mercado dos Estados Unidos, a exemplo das ações e debêntures, sem a preocupação de descrever um conceito preciso, que estivesse fundado em critérios específicos previamente definidos.
Dada essa imprecisão semântica do conceito de Security que, por sua vez, é definido por meio da remissão a outros conceitos igualmente imprecisos, tal como o de contrato de investimento, constante do mesmo artigo 2°, diversas discussões judiciais foram travadas no decorrer dos anos sobre se a natureza jurídica de certas operações poderia ou não ser caracterizada como Security.
Dentre esses casos, um é paradigmático, SEC versus W.J. Howey Company, na medida em que a partir de uma análise feita pela Suprema Corte dos Estados Unidos sobre esse litígio, extraiu-se alguns critérios que passariam a ser amplamente utilizados para saber quando um determinado contrato poderia ser conceituado como Security.
A Howey Company possuía grandes extensões de terra onde eram plantadas frutas cítricas. Paralelamente a outras atividades, essa sociedade passou a vender contratos relacionados a tais áreas, onde o contratante, mediante a aquisição de uma fração ideal da propriedade, receberia um determinado percentual, proporcional às vendas dos produtos que fossem ali cultivados.
A ideia subjacente à operação não era, em hipótese alguma, conferir a posse dessas áreas aos contratantes de modo a que pudessem realizar qualquer cultivo de frutas ou outras atividades nessas áreas, seja porque os lotes mencionados no contrato tinham dimensões mínimas, que inviabilizariam qualquer espécie de cultivo de forma individualizada, seja porque os contratantes não precisavam ter qualquer conhecimento, ou mesmo interesse no que concerne às atividades que fossem ali desenvolvidas.
Em outros termos, os contratantes tinham a única e exclusiva função de aportar os recursos, e a sociedade a função de administrá-los, assim como de extrair lucro da propriedade, de modo a distribuí-lo ulteriormente aos investidores na proporção de suas cotas.
Ante esse contexto a questão que surgiu foi a de saber se esses contratos se subsumiam ao conceito de contratos de investimento constante do artigo 2º do Security Exchange Act e, por conseguinte, ao conceito de Security.
Em célebre voto, o Juiz Murphy apresentou critérios que posteriormente seriam amplamente adotados, não apenas para a definição de contrato de investimento, mas para a própria definição de Security:
"Para os fins do Securities Act, um contrato de investimento (não definido pelo Act), significa um contrato, transação ou esquema no qual alguém investe seu dinheiro em um empreendimento comum e espera obter lucros somente por meio do esforço de outrem, sendo irrelevante se os seus direitos sobre o empreendimento serão formalizados por meio de certificados"2.
Desse modo, a partir do que veio a ser chamado de Howey definition, o termo Security passou a ser aplicado para operações que ostentassem os seguintes elementos:
"(a) investment of money (investimento em dinheiro); (b) common enterprise (empreendimento comum); (c) expectation of profits (expectativa de lucro); e (d) solely from the effort of others (unicamente com esforço alheio)" (EIZIRIK, 2011).
No que se refere à aplicabilidade dessas disposições ao âmbito de operações envolvendo criptomoedas, impende-se ressaltar, em um primeiro momento, que a conceituação das criptomoedas como commodities realizada pela CFTC, prima facie, exclui a jurisdição da SEC, pois algo não pode ser ao mesmo tempo uma commodity e uma security (LEE, 2018).
Contudo, nada impediria a atuação da SEC em um caso no qual criptomoedas fossem utilizadas como ativos relacionados com alguma espécie de investimento coletivo, a exemplo das ETFs, que combinam elementos dos fundos e das ações (LEE, 2018).
Frise-se, enfim, que tão logo a CFTC permitiu a negociação de contratos futuros e de opções baseados em criptomoedas, iniciaram-se diversas tentativas de criação de ETFs vinculadas ao desempenho desses contratos, o que atraiu a jurisdição da SEC. Todavia, nenhuma dessas iniciativas foi aprovada, visto que no entendimento da agência a ausência de regulação do mercado à vista de criptomoedas poderia tornar as ETFs vinculadas a estes ativos sujeitas à manipulação de preços (LEE, 2018).
2.5. Regulamentação das criptomoedas como property.
De acordo com o Internal Revenue Service (IRS), para propósitos tributários, as criptomoedas são tratadas como "property" (LEE, 2018). Sendo assim, poder-se-á conceituá-las como business property, investment property, ou personal property, dependendo das circunstâncias na qual o contribuinte esteja inserido.
Portanto, mais uma vez se observa a tendência do governo dos Estados Unidos de equiparar as criptomoedas com institutos jurídicos já conhecidos, a partir de considerações mais pragmáticas do que de caráter semântico, o que tem suscitado várias críticas devido a insegurança jurídica que é causada por essa espécie de definição (VALKENBURGH, 2017).
Neste caso específico relativo ao Direito Tributário fácil é verificar que a conceituação das criptomoedas como property traz ao contribuinte o ônus de ter que pagar tributos relativos a um eventual ganho de capital, o que aconteceria, por exemplo, em uma situação onde após realizada a venda de uma mercadoria vis à vis o pagamento com criptomoedas, esta viesse a sofrer uma ulterior valorização.
Para facilitar o entendimento do quão heterodoxa é essa proposta da agência dos Estados Unidos, basta imaginar o quão seria estranho se você tivesse que pagar tributos sobre a diferença de valorização dos reais recebidos como salário em uma situação de deflação.
Conclusão
Conforme observado, a regulamentação americana tem manifesta índole pragmática, e basicamente pretende aplicar a regulamentação já aplicável a outros mercados para o mercado de criptoativos, sem observar suas especificidades. Logo, devido a ausência de alicerces principiológicos de caráter científico, as autoridades brasileiras devem evitar a mera transposição de tal regulamentação para o mercado interno, sob pena de vir a tolher a livre concorrência e a livre iniciativa em um país que já sofre pelo desemprego.
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1 FINANTIAL ACTION TASK FORCE: GUIDANCE FOR A RISK-BASED APPROACH VIRTUAL CURRENCIES. Acesso em 11/12/18.
2 Tradução livre do original do caso 320 U.S. 293: "For purposes of the Securities Act, an investment contract (undefined by the Act) means a contract, transaction, or scheme whereby a person invests his money in a common enterprise and is led to expect profits solely from the efforts of the promoter or a third party, it being immaterial whether the shares in the enterprise are evidenced by formal certificates".
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*Fernando Lopes é advogado diretor do departamento jurídico de corretora internacional de criptoativos e integrante da equipe do escritório Robson Galvão Sociedade de Advogados.