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Luiz Gama, homenagem por ocasião dos 124 anos de sua morte

Essa homenagem prestada por parcela da alta sociedade da época ao rábula e poeta Luiz Gama, talvez hoje mais conhecido por suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino do que por sua atuação no foro, foi o epílogo de luta encarniçada travada por ele, nas barras dos tribunais e na imprensa, contra o juiz municipal Rêgo Freitas, o mesmo que empresta seu nome à rua bastante conhecida no Centro de São Paulo. Esta nota quer celebrar a memória desse causídico, cujo falecimento completa 124 anos nesta sexta-feira, 25 de agosto de 2006.

24/8/2006
 

Luiz Gama

 

(21/6/1830 - 24/8/1882)

 

Homenagem por ocasião dos 124 anos de sua morte 

 

 

Marco Ferreira Orlandi*

 

Em 31 de dezembro de 1870, o Correio Paulistano publicava a seguinte nota1:

Tributo de consideração – Comunicam-nos o seguinte:

“Os amigos do prestante cidadão e incansável democrata Luiz Gonzaga Pinto da Gama, como devida homenagem aos méritos e às virtudes cívicas que o caracterizam vão quotizar-se entre si, fazê-lo retratar, e distribuir seu retrato entre tantos quanto prezam e admiram a honra, os talentos, a alma republicana e dedicação patriótica de tão benemérito quanto obscuro filho do povo.

 

Esse fato servirá igualmente para perpetuar o glorioso triunfo na defesa que fez ele de si próprio, ante o ilustrado Tribunal do Júri da briosa capital de São Paulo, reunido no 28 de dezembro do presente ano de 1870 para julgar do iníquo processo que lhe foi há um ano engendrado sob o fútil pretexto, mas com o propósito prudente de afastá-lo da brilhante, posto que espinhosa posição que ocupa na sociedade como advogado gratuito das causas de liberdade em toda a província de São Paulo.”

Essa homenagem prestada por parcela da alta sociedade da época ao rábula e poeta Luiz Gama, talvez hoje mais conhecido por suas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino do que por sua atuação no foro, foi o epílogo de luta encarniçada travada por ele, nas barras dos tribunais e na imprensa, contra o juiz municipal Rêgo Freitas, o mesmo que empresta seu nome à rua bastante conhecida no Centro de São Paulo. Esta nota quer celebrar a memória desse causídico, cujo falecimento completa 124 anos nesta sexta-feira, 25 de agosto de 2006.

 

A origem da querela está numa ação de liberdade promovida por Luiz Gama em favor do africano Jacinto, escravo fugido da Comarca de Jaguari2, na Província de Minas Gerais, e que buscava sua libertação em juízo, sob o fundamento de que aportara no Império do Brasil após 7 de novembro de 1831, data em que se promulgou a Lei Feijó, que proibira o tráfico internacional de escravos3.

 

A primeira formalidade num processo desse gênero era obter-se o depósito do escravo, que assim deixava de ficar sob o poder de seu senhor e, geralmente, passava à responsabilidade de uma pessoa livre, de idoneidade reconhecida pelo juiz4, o que perdurava durante toda a discussão judicial. Uma vez concedido o depósito, passava-se à instrução do processo, a fim de se apurar a data em que o escravo chegara ao país5, e, por derradeiro, à análise do mérito da demanda.

 

O pedido de depósito do negro Jacinto já fora indeferido duas vezes por Rêgo Freitas, sob o argumento de que o foro competente para conhecer da ação era o do domicílio do senhor do escravo, ou seja, a Comarca de Jaguari, na Província de Minas Gerais. Luiz Gama, no entanto, não se deu por batido por esse empecilho processual e voltou a carga, com a contundência com que ficou famoso na imprensa e nas lides forenses.

 

Considerando que o despacho exarado por Rêgo Freitas seria “ofensivo da lei”, pediu a revisão dessa decisão, instando esse magistrado a cumprir “seu rigoroso dever”, asseverando que nada obstante o “estúpido emperramento” com que lutava, tinha a “coragem e moralidade” para manter o “juízo em sua posição legal” e arrematava seu virulento petitório, requerendo ao juiz que “reconsiderasse o seu fútil despacho”6.

 

A ousadia do rábula7, que buliu com quem não devia, foi recompensada de pronto: amanuense da Secretaria de Polícia de São Paulo havia 12 anos, foi demitido do cargo sob a acusação de que tratara de maneira inconveniente e desrespeitosa o juiz municipal, ao qual, no entanto, não estava subordinado hierarquicamente. Além disso, logo a notícia chegou ao parquet, abriu-se processo contra ele por injúria e difamação, crimes pelos quais foi levado à julgamento perante o Tribunal do Júri em 28 de dezembro de 18708.

 

No entanto, nenhuma dessas represálias surtiu o efeito escoimado: sem o emprego na Secretaria de Polícia de São Paulo, Luiz Gama passou a dedicar-se integralmente à advocacia, de onde passou a tirar o sustento seu e de sua família, conquistando posição de destaque no foro, sobretudo nas ações de liberdade na Comarca da Capital e também em outras do interior da Província9.

 

Por fim, sua brilhante autodefesa perante o Tribunal do Júri e a conseqüente absolvição, celebradas no anúncio do Correio Paulistano que abre este panegírico, valeram como desagravo público pelos dissabores que sofrera por sua destemida atuação em juízo e certamente ajudaram-lhe a construir sua reputação como advogado combativo, coroando a defesa intransigente que fizera dos interesses do escravo que assistia em juízo, como dá conta o Correio Paulistano:

“A importância do processo pelas circunstâncias especiais que o rodeavam, quer pela natureza dos fatos de onde originou-se (uma questão de libertação de africano livre), quer pelas condições sociais do réu e do ofendido10, despertou a atenção pública fazendo com que o tribunal regorgitasse de espectadores.

 

O sr. Luiz Gama foi absolvido por unanimidade de votos.

 

Por mais de uma vez, durante a defesa, foi a voz do réu coberta de aplausos, sendo saudado por uma roda de palmas por parte dos espectadores ao concluir seu discurso.

 

Depois de encerrada a sessão, para mais de cem cidadãos acompanharam o Sr. Gama desde a sala do júri até sua residência.”11 (grifos nossos)

_____________

 

1Esta nota é largamente baseada em Orfeu de Carapinha – A Trajetória de Luiz Gama na Imperial Cidade de São Paulo, dissertação de mestrado da historiadora Elciene Azevedo, publicada pela Editora da Unicamp em 1999 (1a reimpressão, 2005). A transcrição do jornal está na pág. 195.

2Atual Comarca de Pouso Alegre, no Estado de Minas Gerais.

3Bem entendido, o tráfico entre as províncias continuava legal. A ementa e o primeiro artigo da Lei Feijó rezavam o seguinte: “Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos. A Regência, em nome do Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os Súditos do Império, que a Assembléia Geral decretou, e Ele Sancionou a lei seguinte: Art. 1o - Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. (...)” Conquanto sua lassa aplicação seja célebre, as penas cominadas aos infratores eram severas: “Art. 2o - Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do artigo cento e setenta e nove do Código Criminal, imposta aos que reduzem à escravidão pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos importados, além de pagarem as despesas da reexportação para qualquer parte da África; reexportação que o governo fará efetiva com a maior possível brevidade, contratando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores responderão cada um por si e por todos.” Apud dissertação de mestrado do historiador Argemiro Eloy Gurgel, A Lei de 7 de novembro de 1831 e as ações cíveis de liberdade na Cidade de Valença (<_st13a_metricconverter w:st="on" productid="1870 a">1870 a 1888), defendida em 2004 na UFRJ, disponível no sítio www.dominiopublico.gov.br.

4Idem, ibidem, pág. 38, citando Joseli Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os Caminhos da Abolição no Brasil, Editora da Unicamp, 1999.

5Ou seja, se antes ou após a promulgação da Lei Feijó.

6Elciene Azevedo, op. cit., pág. 112.

7À época da querela com Rêgo Freitas, Luiz Gama não possuía licença para atuar como solicitador, ou seja, autorização para advogar concedida pela Justiça àqueles que não tinham o grau de bacharel em Direito, o que veio a obter apenas mais tarde.

8Idem, ibidem, págs. 110 e 126.

9Embora possa soar estranho ao observador contemporâneo, cujos ouvidos estão já calejados pela ladainha da dificuldade do acesso à Justiça, os arquivos judiciários guardam número significativo de ações de liberdade, sobretudo da segunda metade do século XIX, nas quais os cativos vinham a juízo postular sua liberdade, o que faziam, vale frisar, apesar de óbvio, contra o desejo de seus senhores e proprietários. Vide Argemiro Eloy Gurgel, op. cit., pág. 11.

10Apesar de sua grande capacidade intelectual e das altas amizades de que privava na sociedade paulistana, Luiz Gama era homem de parcas posses, não pudera freqüentar os bancos da Academia de Direito de São Paulo e, sobretudo, era preto e, ele próprio, ex-escravo: posto que nascido livre, fora vendido por seu pai para saldar uma dívida de jogo e assim reduzido ilegalmente à escravidão. Para mais detalhes da biografia de Luiz Gama, consulte-se Elciene Azevedo, op. cit., em especial pág. 35 e ss.

11Correio Paulistano, 29 de dezembro de 1870, vide Elciene Azevedo, op. cit., pág. 194.

 

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*Advogado do escritório Boccuzzi Advogados Associados

 


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Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador em 21 de junho de 1830. Mulato, filho de Luíza Mahin (principal liderança da Revolta dos Malês, em 1835) e de um fidalgo de origem portuguesa que participou da Sabinada em 1837. Mesmo tendo nascido livre, foi vendido aos dez anos e idade pelo próprio pai (para cobrir dívidas e jogos). Foi a última vez que viu sua família.

 

Durante o período em que foi escravo, aprendeu a ler e a escrever. Em 1848, após fugir de seu senhor, conseguiu as provas de sua liberdade. Alistou-se na Guarda Nacional, chegando a ordenança de Conselheiro Furtado de Mendonça, então chefe de Polícia e professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Conforme confessou mais tarde, do conselheiro guardou a gratidão pelas boas lições de letras e de civismo que recebera. Abandonando a carreira militar, entrou para o serviço público como amanuense (escrevente) da Secretária de Polícia de São Paulo em 1856. Nesta época, tornou-se amigo do poeta e professor José Bonifácio, O Moço. Também se tornou autodidata em Direito e Humanidades.

 

Em 1859, publicou a primeira edição do seu livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. Posteriormente, dedicou-se exclusivamente à imprensa, donde pôde fazer uma carreira brilhante e polêmica na defesa dos ideais republicanos, abolicionistas e liberais. Colaborou nos jornais O Caberia, Radical Paulistano, Correio Paulistano, A República (órgão do Partido Republicano Paulista), O Polichinello (do qual foi proprietário) e A Província de São Paulo (atual Estado de São Paulo). Na primeira dição d’O Polichinello, expôs em versos a linha editorial que seria adotado pelo jornal. Daí em diante, o ex-escravo autodidata entrou em definitivo para a seleta República das Letras que regia o Brasil.

 

Após ser demitido de seu cargo na Secretaria de Polícia, passou a trabalhar como advogado provisionado, especializando em defender na justiça a libertação dos escravos. Em muitos casos, sequer cobrava seus honorários.

 

Membro fundador do Partido Republicano, líder da esquerda liberal radical (chegando a ser acusado de agitador a serviço da Iª Internacional Socialista), Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882. Morreu muito pobre, contudo, sendo um cidadão respeitado legando um nome honrado ao seu filho Caio Graco Pinto da Gama. Segundo jornais da época, seu funeral foi o maior jamais visto na capital bandeirante. Nele acotovelaram-se negros e brancos, abolicionistas e escravocratas, conservadores e republicanos.

 

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