O festejado garantismo jurídico, tão em voga em nossos dias, se apresenta como uma vanguarda libertária, revolucionária e iluminada. Porém, há em seu seio vícios ocultos que guardam relações com vetustos dogmatismos.
Aqui se abordará brevemente apenas um aspecto específico dessa face pouco explorada pela crítica (se é que alguma crítica ainda existe). Não se trata de esgotar o tema, nem muito menos de pretender invalidar e desvalorizar de forma total as conquistas e princípios garantistas, mas tão somente de dar um passo para o início de uma visão realmente crítica dessa doutrina.
Um dos ditames do garantismo ao estilo de Ferrajoli e acólitos é a ferrenha separação entre o direito (especialmente o penal) e quaisquer elementos éticos, morais e axiológicos. Qualquer incursão por esses temas acaba apontada, sem muito critério, como uma espécie de promiscuidade ou relação incestuosa, absolutamente indesejável e deletéria, a qual resultaria, invariavelmente, em imposições “moralizantes” e “arbitrárias”.
Parece que os defensores dessa espécie de vedação dos conteúdos éticos, morais e axiológicos no campo do direito não se dão conta do componente claramente positivista em seu mais radical estilo comteano. A busca vã e equivocada de uma ciência pura ou purificada; o que torna qualquer ciência, inclusive uma ciência normativa como o direito, algo indevidamente insípido, asséptico e, principalmente, inumano.
A maquiagem que se faz com a apresentação de critérios ou princípios como “dignidade humana”, “direitos fundamentais”, “direitos humanos” etc., nada mais é do que a utilização de expressões que se tornam vazias, vagas, indefinidas, quando amputadas de suas imprescindíveis dimensões éticas, morais e axiológicas.
O pluralismo acaba se convolando em relativismo tosco e insegurança jurídica; a liberdade se degrada em libertarianismo anárquico e libertino, e a insegurança jurídica se torna a grande marca registrada em um mundo onde o império não é dos deveres éticos e morais, onde nada e ninguém são orientados por valores de conteúdo seguro, ainda que os mais básicos imagináveis. Um mundo onde o império é o da “vontade”, dos caprichos, da absoluta incapacidade de reação madura e racional à frustração e adequação a limites impostos pela imprescindível correspondência e retroalimentação entre direitos e deveres.
Este breve texto não tem a pretensão de esgotar assunto tão vasto e polêmico, mas tão somente objetiva a abertura de novas perspectivas críticas num ambiente em que certas palavras, sem a menor ponderação, adquirem uma aura capaz de facilmente abrir sorrisos afáveis e portas, inclusive nos meios acadêmicos, tal como palavras mágicas ou ungidas divinamente. Este é o caso do “garantismo”. Por outro lado, o preconceito positivo se transmuda em negativo sempre que se usam outras palavras como, por exemplo, “conservadorismo”, “valores morais” etc. , transformando quem as profere, sem qualquer fundamento justo ou mesmo conceitualmente correto, em arbitrário, reacionário, fascista, autoritário, inimigo da liberdade, dentre outros impropérios ainda mais deslocados e até ridículos. Nesses casos, as portas se fecham e as expressões faciais se tornam sisudas, casmurras ou debochadas, deixando de lado qualquer resquício de liberdade, pluralismo ou espaço para o diálogo e a crítica. O discurso se dissocia da prática e se altera para projetar no “outro” as próprias mazelas e vícios.
Por isso é preciso repensar e refazer os caminhos que nos conduziram a esta situação de encapsulamento ideológico, promovendo uma mudança de rumos verdadeiramente tolerante e crítica. Já é hora de promover a crítica da crítica e corrigir o politicamente correto.
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*Eduardo Luiz Santos Cabette é delegado de polícia e membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.