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Estupro X Importunação Sexual

Instaurou-se um intenso debate sobre o rigor da legislação penal brasileira e a dificuldade, muitas vezes, de se realizar a adequada subsunção do fato à norma, o que fez com que nosso legislador adotasse uma conduta mais discreta e intermediária, procurando fazer um ajustamento mais conveniente do tema.

18/11/2018

No dia 24 de setembro de 2018, foi publicada a lei 13.718 que tipificou a conduta descrita no novo artigo 215-A do Código Penal, bem como trouxe outras importantes modificações em nosso ordenamento jurídico-penal, mas que não serão objeto do presente estudo. Desta forma, a novatio legis passou a criminalizar a conduta de quem praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro, cominando, como sanção, uma pena privativa de liberdade que varia de um a cinco anos de reclusão, "se o ato não constitui crime mais grave" (princípio da subsidiariedade).

Não há dúvidas de que esta lei ganhou corpo após a intensificação da discussão a respeito de qual norma penal deveria incidir sobre a conduta do agente que ejaculou em uma passageira, dentro de um ônibus de transporte público do município de São Paulo. É que, após ter sido preso por estupro, o acusado foi posto em liberdade, por ter o magistrado entendido, in casu, tratar-se da prática, em tese, da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (artigo 61 da Lei das Contravenções Penais), fato que obstava a prisão do agente.

Talvez a reforma provocada no artigo 213 do Código Penal pela lei 12.015/09 tenha conferido uma expansão desmedida ao crime de estupro, a ele incorporando o de atentado violento ao pudor, abrindo assim um vácuo interpretativo e possibilitando entendimentos divergentes a respeito de sua prática. Pode acontecer que determinada conduta contra a dignidade sexual seja desproporcional ao crime de estupro, como, por exemplo, se o agente, de modo sorrateiro, ou até mesmo em tom de brincadeira, coram populo, sem a malícia necessária, toca as nádegas ou o seio da vítima, ainda que, repita-se, por mais repugnante que a ação se revele, ausente o dolo recomendado para a conduta, não é motivo suficiente para caracterizar a lascívia do agressor. Qual, então teria sido o crime praticado pelo agente?

Sendo assim, instaurou-se um intenso debate sobre o rigor da legislação penal brasileira e a dificuldade, muitas vezes, de se realizar a adequada subsunção do fato à norma, o que fez com que nosso legislador adotasse uma conduta mais discreta e intermediária, procurando fazer um ajustamento mais conveniente do tema.

É que, com a leitura do caput do novo artigo 215-A do Código Penal, verifica-se uma curiosa descrição da conduta ali tipificada: em relação às contravenções penais previstas nos artigos 61 e 65 da Lei das Contravenções, a novatio legis é prejudicial ao réu, pois comina uma pena maior e ainda classifica a conduta como crime, retirando-a do patamar de mera contravenção. Não se olvida, aliás, que o artigo 61 foi expressamente revogado pela lei 13.718/18.

Todavia, em relação ao crime de estupro, a novatio legis é claramente favorável ao réu, o que poderia ensejar sua retroatividade benéfica e, consequentemente, a desclassificação de condutas para a tipificada no novo crime de importunação sexual.

Antes da nova lei, poder-se-ia configurar, ao menos em tese, o crime de estupro, a depender da interpretação do caso concreto. Agora, com este "crime intermediário", não há como enquadrar a conduta do suposto infrator ao crime mais grave, uma vez que a tipificação do artigo 215-A é bastante clara. Mas essa dicotomia é suficiente apenas para os crimes praticados a partir da vigência do artigo 215-A. As condutas anteriores ainda podem pairar sob uma nuvem hermenêutica interessante e permite alçar interessantes voos a seu respeito.

Pois bem. Imagine-se que o agente tenha praticado a citada conduta antes da nova lei (tempus regict actum – aplica-se a lei em vigência ao tempo da conduta – tempo do crime, teoria da atividade), tenha sido condenado por estupro e, agora, vê seu recurso sendo julgado pelo Tribunal de Justiça, por exemplo. Como proceder o julgador? A desclassificação da conduta é bastante provável. Mas para o crime do artigo 215-A ou para a contravenção penal do artigo 61?

Em outras palavras: caso se entenda que o artigo 215-A trouxe uma previsão mais benéfica para o estupro, ele tem aplicação retroativa e atinge a todos os julgados sobre o tema.

Todavia, caso se entenda que a lei 13.718/18 trata-se, em verdade, de uma inovação para endurecer a conduta descrita na Lei das Contravenções Penais, tem-se verdadeira novatio legis in pejus e, portanto, não retroage, cabendo ao julgador aplicar o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, pois ele estava em vigor ao tempo da conduta do réu.

Em uma breve análise, parece que estamos diante da segunda hipótese: o artigo 215-A traz uma roupagem mais "atualizada" e um pouco mais rigorosa do revogado artigo 61 da Lei das Contravenções Penais: é verdadeira novatio legis in pejus. Isso porque o crime de estupro exige, para sua tipificação, o emprego da violência ou da grave ameaça e, em nenhum momento, admite a importunação sem estas elementares.

Logo, um novo crime, que traz a possibilidade de importunação sexual sem violência ou grave ameaça, não está excepcionando a regra do estupro, mas sim endurecendo a conduta já existente na Lei das Contravenções. Portanto, o artigo 215-A do Código Penal não haveria de ser aplicado em crimes pretéritos em que o acusado por estupro busca a desclassificação de sua conduta.

Não parece, no entanto, ser este o entendimento do STJ, pois o Tribunal da Cidadania decidiu, recentemente, que o artigo 215-A do Código Penal é norma penal mais benéfica que a do artigo 213, do mesmo diploma legal, e deve retroagir1. Como se vê, a discussão apenas está começando e, ainda, surgirão incontáveis julgados a respeito, a fim de que nossa jurisprudência possa se normalizar e garantir a segurança jurídica que todos aguardam.

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1 - https://migalhas.uol.com.br/Quentes/17,MI289915,51045- lei+sobre+importunacao+sexual+retroage+para+beneficiar+reu+acusado+de

 

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.






*Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.

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