A controvérsia relativa à exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS e da Cofins, que parecia ter sido resolvida em definitivo com o julgamento do RE 574.706, acaba de ganhar um novo capítulo. Após a inusitada tentativa da União de modular os efeitos da decisão via o manejo de embargos de declaração; foi a vez de a Receita Federal externar o seu entendimento a respeito da forma de operacionalizar essa decisão, por meio da Solução de Consulta Interna COSIT 13/18, publicada nesta terça-feira (23).
Ao longo das quase 30 laudas em que vem escrita, apoiada sobre a transcrição dos votos proferidos por ocasião do julgamento desse RE e sobre exemplos que são dados para esclarecer a sua proposta, o que faz a RFB por meio dessa SCI é criar uma metodologia de cálculo que, na prática, acaba por restringir sobremaneira a eficácia dessa decisão do Supremo.
Pois segundo entendimento nela externado, o valor do ICMS a ser excluído das bases de cálculo das contribuições é aquele representado pelo ICMS a pagar, produto do cotejo entre os créditos das entradas e os débitos das saídas1. Pela interpretação puramente literal que faz do voto condutor do acórdão, da lavra da eminente ministra Cármen Lúcia, e que foi acompanhado integralmente pelos demais membros afeitos à tese, entende a RFB que o cerne da discussão no RE 574.706 foi a exclusão do ICMS pago das bases de cálculo dessas contribuições2; e não o ICMS destacado no documento fiscal de venda, como vinha essa discussão sendo conduzida no STJ3.
Na prática, a aplicação desse entendimento faz com que o montante de ICMS a ser excluído das bases de cálculo das contribuições pelos agentes intermediários de uma cadeia de circulação seja menor do que seria acaso fosse considerado exclusivamente o ICMS destacado nos documentos fiscais de saídas; e menor ainda se a empresa for beneficiária de algum tipo de incentivo fiscal. Como se não bastasse, o racional da RFB para apuração das bases de cálculo leva em consideração que existem múltiplas formas de incidência (alíquotas básicas; alíquotas monofásicas; alíquota zero), motivo pelo qual determina que a partir dos CST sejam apuradas tantas bases quanto forem as alíquotas a que submetido o contribuinte; para que, ato contínuo, aplicando-se o método de rateio proporcional, o ICMS a pagar possa ser dividido proporcionalmente a cada uma dessas bases – método esse que pode resultar em uma exclusão ainda menor de ICMS no cálculo dessas contribuições.
Ora, esse raciocínio não está correto.
O primeiro grande problema verificado nessa SCI está na interpretação literal que a RFB faz dos votos proferidos pelos ministros no julgamento do RE 574.706. Se bem verdade que, a todo o momento, eles façam menção ao ICMS a ser recolhido aos cofres públicos, não há negar que a opção por esse método interpretativo acaba por desconsiderar a sistemática de recolhimento dessas contribuições. Esse ponto de vista não é, portanto, minimamente aceitável, haja vista o julgamento ter sido conduzido pela mais alta corte do país.
A base de cálculo do PIS e da Cofins, sabemos, é a receita bruta. Quando do julgamento do RE 357.950-9/RS, em que se debateu acerca da (in)constitucionalidade do § 1º do art. 3º da lei 9.718/98, que definia as bases de cálculos do PIS e da Cofins como sendo “a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica”, o STF culminou por equiparar os conceitos de faturamento e de receita bruta4. Desde então, a corte vem sistematicamente reafirmando que essas expressões são utilizadas para designar “a venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços”; embora tenha afetado para julgamento em regime de repercussão geral a definição da extensão do conceito para outros tipos de atividade, que não aquelas limitadas à venda de mercadorias ou à prestação de serviços5.
Assentes, no entanto, na atual definição, podemos afirmar, para o que interessa a esta análise, que o contribuinte aufere receitas quando é efetua a venda de mercadorias. Nesse momento, o contribuinte emite o documento fiscal da venda, composto pelo valor da operação mercantil e dos tributos sobre ela incidentes. Essa circunstância nos permite afirmar que quem adquire essa mercadoria paga no preço o ICMS incidente sobre a operação; e que quem vende essa mercadoria recupera do comprador o ICMS incidente sobre a sua venda.
Ao final do mês, o contribuinte apura o seu resultado, partindo da análise da receita bruta; sendo que, a teor do §1º do art. 12º do decreto-lei 1.598/77, a receita bruta, base para o cálculo do PIS e da Cofins, é composta de “vendas canceladas, os descontos concedidos incondicionalmente e os impostos incidentes sobre vendas”.
Aqui, um detalhe. Não se nega que o referido parágrafo tenha sofrido alteração por força da lei 12.973/12, substituindo o termo impostos incidentes sobre vendas por tributos sobre ela [receita bruta] incidentes. A conclusão a que chegamos, todavia, não se altera. Porque sendo o conceito de receita bruta equiparável ao de faturamento, vê-se, sem grandes dificuldades, que a mudança na redação não implicou em mudança na interpretação de seus efeitos práticos.
É por isso que não faz sentido afirmar que o ICMS dedutível do cálculo do PIS e da Cofins seja o ICMS a pagar. O ICMS a pagar deriva do confronto entre os débitos das saídas (ICMS sobre vendas, destacado nos documentos fiscais de vendas) e os créditos das entradas (ICMS destacado no documento fiscal de aquisição de mercadorias); razão pela qual pode: equivaler ao ICMS destacados nos documentos fiscais de vendas (quando não há créditos a serem apropriados no período pelo contribuinte); ser menor que o ICMS destacado nos documentos fiscais de vendas (caso haja créditos apurados no mês para abatimento dos débitos escriturados); ou mesmo inexistir quantia a pagar, na hipótese em que o contribuinte apura saldo credor. Em qualquer dessas situações, todavia, o ICMS que comporá a receita bruta será aquele incidente sobre as vendas: destacado nos documentos fiscais de saídas e que, na apuração do período, será escriturado como débito em conta gráfica.
Não faz sentido, portanto, o entendimento externado pela RFB na mencionada Solução de Consulta. Porque não é possível admitir que o STF, alheio à sistemática de apuração dessas contribuições, tenha excluído das respectivas bases de cálculo uma grandeza que sequer chega a compô-las (leia-se: ICMS a pagar). Acaso aceito esse entendimento, seríamos levados a crer que a Suprema Corte não apenas teria dado uma decisão descontextualizada da dinâmica fiscal; como, também, teria criado um esdrúxulo benefício fiscal, na medida em que estaria a determinar a dedução fiscal de um valor que sequer chega a compor as bases de cálculo.
Justamente por isso é que os tendenciosos exemplos trazidos a título de ilustração nessa SCI não socorrem. Porque eles partem da análise da cadeia sob a perspectiva do ICMS: em que a cada etapa somente é recolhida a diferença do ICMS incidente sobre o objeto de operação mercantil (diferença entre o valor que onerou a etapa anterior, crédito; e o que passou a onerar globalmente a operação, débito), Sob esse enfoque, cada agente da cadeia recolherá apenas uma parcela do ICMS, haja vista que o ônus da tributação recairá inteiramente sobre o consumidor final. Acontece que para o PIS e para a Cofins essa lógica não se aplica. Porque partindo do pressuposto de que essa mercadoria ficará sujeita às alíquotas básicas do PIS e da Cofins em cada etapa dessa cadeia, há que se entender que cada contribuinte recolherá ditas contribuições com base em sua receita bruta mensal, na qual estará incluso o ICMS incidente sobre as vendas, ou seja, o ICMS destacado no documento fiscal de saída – e não o ICMS efetivamente suportado pelo consumidor final.
É por isso que essa primeira parte da metodologia de cálculo proposta na SCI não encontra respaldo na decisão proferida pelo STF; tratando-se de evidente e perniciosa distorção do teor do julgado, com o nítido propósito de restringir a extensão dos efeitos da decisão. Por esse motivo, não poderá prevalecer para os fins de quantificar a dedução de ICMS a ser feita das bases de cálculo dessas contribuições.
Agora, no que toca à circunstância do contribuinte dever apurar tantas bases de cálculo quanto forem as alíquotas de PIS e Cofins incidentes sobre as suas receitas (alíquotas básicas; alíquotas monofásicas; alíquota zero), segunda parte da metodologia de cálculo proposta na SCI, não há dúvida de que não se pode, simplesmente, excluir todo o ICMS incidente sobre as vendas das respectivas bases de cálculo. Há que ser verificado se a específica operação da qual se origina o ICMS a ser potencialmente excluído teve ou não a sua receita tributada pelo PIS e pela Cofins; e em que medida.
Consciente dessa peculiaridade, a RFB bem rememora que com o advento dos Códigos CST, a segregação de receitas a partir das alíquotas das contribuições aplicáveis passou a ser feita mais facilmente6. Nesse sentido, o constante aprimoramento dos controles fiscais tem permitido, inclusive, conhecer do ICMS incidente em cada item do documento fiscal de saída, discriminado por CST. Isso faz com que não haja a necessidade do emprego de métodos de aproximação para cálculo do ICMS s efetivamente sujeito à tributação pelo PIS e pela Cofins. Em outras palavras, diferentemente da situação retratada na SCI, em que não se tem como alocar com exatidão os pagamentos de ICMS a cada grupo de receitas, aqui, partindo-se do ICMS incidente sobre vendas, é plenamente possível realizar esse cálculo.
A situação se altera, contudo, na apuração de créditos mais antigos, em que os controles fiscais não ostentavam o nível de detalhamento que temos hoje. Para esses créditos, caso não seja possível precisar dos valores a serem recuperados, a solução deverá ser, mesmo, a adoção do método de rateio proporcional, sob pena de inviabilizar a execução da decisão judicial.
Com base nos apontamentos que foram feitos no decorrer deste texto, observa-se que a solução encontrada pela RFB para operacionalizar a decisão proferida pelo STF no RE 574.706 não foi das melhores, na exata medida em que restringe, sobremaneira, a sua eficácia. Espera-se, então, que ela possa ser revista pelo órgão, sob pena de contribuir para a extensão da litigiosidade desse assunto, o qual se esperava já ter sido encerrado, desde março do ano passado.
1 [LC 87/96] Art. 24. A legislação tributária estadual disporá sobre o período de apuração do imposto. As obrigações consideram-se vencidas na data em que termina o período de apuração e são liquidadas por compensação ou mediante pagamento em dinheiro como disposto neste artigo:
I - as obrigações consideram-se liquidadas por compensação até o montante dos créditos escriturados no mesmo período mais o saldo credor de período ou períodos anteriores, se for o caso;
II - se o montante dos débitos do período superar o dos créditos, a diferença será liquidada dentro do prazo fixado pelo Estado;
III - se o montante dos créditos superar os dos débitos, a diferença será transportada para o período seguinte.
2 [voto condutor do Acórdão do RE 574.706] “6. Poder-se-ia aceitar que a análise jurídica e a contábil do ICMS, ambas pautadas na não cumulatividade deste tributo, revelariam que, assim como não é possível incluir o ICMS na base de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins, também não seria possível excluí-lo totalmente, pois enquanto parte do ICMS é entregue diretamente ao Estado, parte dele se mantém no patrimônio do contribuinte até a realização da nova operação”
3 [voto do ministro Edson Fachin no RE 574.706] “De outro lado, até em decorrência da ausência de repercussão geral no julgado anterior, noticia-se o julgamento, em 10 de agosto do ano pretérito, do REsp 1.144.469, de relatoria do ministro Napoleão Nunes e com o acórdão redigido pelo ministro Mauro Campbell, sob a sistemática dos recursos repetitivos, na 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em que se assentou diretriz jurisprudencial diametralmente oposta à fixada no apelo extremo supracitado. Nesse caso, firmou-se a seguinte tese: ‘O valor do ICMS, destacado na nota, devido e recolhido pela empresa compõe seu faturamento, submetendo-se à tributação pelas contribuições ao PIS/PASEP e Cofins, sendo integrante também do conceito maior de receita bruta, base de cálculo das referidas exações’”
4 RE 357.950-9/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 15.08.2006 – EMENTA: CONTRIBUIÇÃO SOCIAL – PIS – RECEITA BRUTA – NOÇÃO – INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da lei 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada.
5 EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. COFINS E CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS. INCIDÊNCIA. RECEITAS FINANCEIRAS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. CONCEITO DE FATURAMENTO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
(RE 609096 RG, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, PUBLIC 02-05-2011)
6 43. A legislação da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins estabelece tratamentos tributários distintos, de natureza subjetiva (vinculada à pessoa jurídica) ou objetiva (vinculada à natureza do bem ou serviço vendido, vinculada à sua destinação ou à natureza do adquirente), em relação às receitas mensais auferidas por parte das pessoas jurídicas, as quais podem ser tributadas às alíquotas modais (alíquotas básicas do regime cumulativo e não cumulativo), a alíquotas específicas, a alíquota zerou ou de forma monofásica, bem como podem ter o tratamento desonerado de isenção, suspensão ou não incidência.
44. No sentido de estrutura e viabilizar a adequada e correta apuração das referidas contribuições, nas suas mais diversas formas de incidência, a Instrução Normativa Secretaria da Receita Federal do Brasil 1.009, de 10 de fevereiro de 2010, estabeleceu a codificação correspondente a cada regime tributário previsto na legislação das contribuições, definindo os CST aplicáveis para a Contribuição para o PIS/Pasep (Tabela II) e para a Cofins (Tabela III), a serem considerados tanto na emissão de notas físicas representativas da venda de bens e serviços, como na escrituração mensal das contribuições, em sua diversas bases de cálculo, conforme a seguir relacionados
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*Luiz Henrique Renattini é advogado na Advocacia Lunardelli.