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A natureza jurídica da SCP e o posicionamento da CVM

Apesar da discussão relacionada à natureza das SCP ainda estar indefinida na doutrina e na jurisprudência brasileira, a consolidação do entendimento da CVM sobre este tema mostra-se como um avanço visando a segurança jurídica dos negócios envolvendo entidades por ela reguladas.

16/10/2018

As Sociedades em Conta de Participação (SCP) são estruturas pelas quais duas ou mais pessoas se unem visando um fim específico em que uma pessoa fornece recursos à outra para que a última os utilize em determinado projeto ou empreendimento visando auferir resultados a serem compartidos.

Esta estrutura, regulamentada pelo Código Civil entre os Arts. 991 e 996, é composta pela figura de um sócio ostensivo e de um ou mais sócios participantes (também denominados ocultos). O primeiro é responsável pela execução das atividades da entidade buscando o seu fim, ao passo que os demais são responsáveis pela contribuição de recursos para ajudar a viabilizar a implementação do objeto almejado.

A administração da SCP e toda a relação externa dela é feita pelo sócio ostensivo, o qual responde exclusivamente perante terceiros (inclusive a Receita Federal), reservando-se o direito de regresso em relação ao sócio participante referente a perdas e danos eventualmente sofridas pela SCP, se previsto em seu contrato social (e nos limites ali previstos). Caso a sócia participante venha a intervir em obrigações inerentes à SCP, poderá responder de forma solidária por tais obrigações.

A SCP, diferentemente das sociedades previstas na legislação societária brasileira, não é composta por um capital social e quotas e/ou ações, mas sim de um patrimônio especial, formado pelos recursos alocados pelos sócios ocultos e pelo sócio ostensivo para o projeto por eles pretendido. Deste patrimônio, destaca-se a respectiva participação e o percentual de cada um destes sócios.

É importante registrar que embora a contabilidade da SCP seja de responsabilidade da sócia ostensiva, sob o ponto de vista fiscal, a SCP é uma entidade distinta deste sócio, podendo ter regime fiscal próprio e devendo separar as informações contábeis dela indicadas nas declarações e escrituração fiscal. Deste modo, apesar da legislação não prever a obrigatoriedade do registro do contrato social da SCP em nenhum cartório ou registro público para sua constituição - podendo, inclusive, ser pactuada de forma verbal -, para fins de tributação e declaração das atividades exercidas por tal entidade, a Receita Federal exige que os documentos da SCP sejam a ela apresentados e que esta seja inscrita perante o CNPJ/MF.

Mas, afinal, a SCP é uma sociedade? Do ponto de vista legislativo, a Sociedade em Conta de Participação foi instituída por meio do Código Comercial brasileiro, datado de 1850, e teve sua regulamentação alterada pelo Código Civil de 2002, o qual revogou as disposições da primeira legislação a este respeito. Apesar de o Código Comercial ter trazido as SCP no capítulo das “Sociedades Comerciais” e, na mesma linha, a SCP ser prevista no Código Civil dentro do subtítulo inerente às “sociedades não personificadas” (sem personalidade jurídica), existe uma grande discussão na doutrina referente à sua natureza jurídica. Há uma corrente que entende que tal estrutura legal se trata de uma sociedade e outra, distinta, que entende que a SCP nada mais é do que uma estrutura contratual celebrada entre duas ou mais partes.

Grande parte da doutrina entende que a SCP é uma sociedade, dentre outras razões, porque há na SCP uma associação entre duas classes de sócios visando um fim comum e pois, além disso, estão presentes no referido mecanismo jurídico todos os elementos que caracterizam uma organização societária contratual, quais sejam (i) pluralidade de sócios; (ii) contribuição; (iii) exercício de atividade econômica; e (iv) partilha dos resultados1.

Neste mesmo sentido, Arnoldo Wald entende que a SCP é, de fato, uma sociedade e, ao tratar da corrente contrária, elenca que “tal posicionamento baseia-se numa equivocada compreensão do que se entende por sociedade e por personalidade jurídica, sendo que a configuração da sociedade não depende da caracterização de sua personalidade jurídica, já que se apresenta como resultado da sua existência”.

Por outro lado, a corrente doutrinária contrária vai além do mencionado argumento levantado e questionado por Arnoldo Wald de que a SCP não possui personalidade jurídica. Outros argumentos apontados por juristas são que (i) a relação existente entre os integrantes do contrato de SCP existe apenas internamente, não havendo existência desta relação perante terceiros; (ii) não há órgãos de administração na SCP; (iii) a SCP não possui um patrimônio autônomo; e (iv) não é possível que a SCP seja titular de direitos e deveres; atributos que deveriam ser observados para que fosse caracterizada uma sociedade. Alfredo de Assis Gonçalves Neto, seguindo esta linha, destaca que a referida entidade não se apresenta como um ente capaz de adquirir direitos e obrigações, nem mesmo pode ser tida como um centro de imputação de interesse, uma vez que toda a atividade é exercida pelo sócio ostensivo, tratando-se, assim, de uma simples relação contratual2.

Em meio a esta discussão, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão responsável por fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil, vem consolidando seu entendimento no sentido de serem as SCPs somente uma relação contratual entre as partes, afastando-se a natureza jurídica societária de tais estruturas.

Este entendimento foi primeiramente abordado pelo Colegiado da CVM no âmbito do Processo Administrativo Sancionador CVM RJ2014/5099, no início de 2016, sendo tal posicionamento reafirmado durante o julgamento do Processo Sancionador CVM RJ2015/7239, ao final do mesmo ano. Neste último caso, discutiu-se a possível atividade irregular de administração de carteira de valores imobiliários por uma sociedade (sócia ostensiva) que celebrou contrato de sociedade em conta de participação com uma sociedade investidora (sócia oculta) com o propósito de administrar e aplicar no mercado financeiro os recursos aportados por tal sociedade investidora.

Neste contexto, trazendo esclarecimentos para a dúvida relacionada à natureza das SCPs, elucidou o então diretor Gustavo Tavares Borba que:

“A sociedade em conta de participação, apesar do nomen iuris que lhe foi atribuída pelo ordenamento jurídico, não consiste verdadeiramente em uma sociedade, o que se observa tanto pela sua inserção em subtítulo do Código Civil que trata das “sociedades não-personificadas”, quanto pela leitura dos dispositivos legais que regem esse instituto, em especial os artigos 991, 993 e 994 do citado diploma legal. Não se verifica, na “sociedade em conta de participação”, a constituição de uma pessoa jurídica para o desempenho da atividade definida em seu instrumento. Trata-se, portanto, de um contrato entre um investidor (sócio oculto/participante) e um empreendedor (sócio ostensivo), a fim de que este exerça determinada atividade espcífica e partilhe o lucro com o investidor.”3

Com este entendimento, a CVM deixa claro também que, ao analisar os processos sancionadores a ela trazidos, levará em consideração a essência do negócio em sobreposição de sua forma no que se refere à utilização da SCP como mecanismos de investimento.

Apesar da discussão relacionada à natureza das SCP ainda estar indefinida na doutrina e na jurisprudência brasileira4, a consolidação do entendimento da CVM sobre este tema mostra-se como um avanço visando a segurança jurídica dos negócios envolvendo entidades por ela reguladas. Espera-se, em um futuro não tão distante, que a questão levantada neste artigo possa ser respondida de forma pacífica por todas as frentes do meio jurídico.

__________

 

1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe. Sociedade em Conta de Participação. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

 

2 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa. 7ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

 

3 Processo Sancionador CVM RJ2015/7239. Disponível em: clique aqui.

 

4 A título de exemplificação, no REsp 1.230.981/RJ, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) ao discordar do entendimento deste tribunal que julgava ser a SCP uma relação contratual e, reestabelecendo a decisão de primeira instancia, afirmar o entendimento de ser a SCP uma sociedade.

__________

 

*Gustavo Siqueira Calazans é advogado da área de Direito Societário e Fusões e Aquisições do escritório KLA – Koury Lopes Advogados.

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