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A igualdade das relações sociais: um desafio que ultrapassa planos de governos

Haja vista o caráter constitucional do princípio da igualdade, o qual reflete diretamente na promoção da igualdade nas relações sociais, sua concretização ultrapassa planos de governos, devendo, sim, ser fomentado por todos os poderes do Estado brasileiro.

17/10/2018

A inglesa Mary Wollstonecraft, defensora da igualdade nas relações sociais e uma das pioneiras no movimento dos direitos das mulheres, em seu escrito A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects, de 1792, já consignara que é de justiça, não caridade, que o mundo precisa (“It is Justice, not charity, that is wanting in the world”).1

Por sua vez, Martin Luther King Jr., outro importante líder do movimento dos direitos civis e árduo defensor da igualdade nas relações sociais, certa feita bradou que a simples existência de alguma injustiça, independentemente de onde se encontre, deve ser considerada como uma ameaça à justiça em geral (“Injustice anywhere is a threat to justice everywhere”).2

Os direitos e garantias individuais e sociais são frutos de lutas e de conquistas marcantes, principalmente sob a ótica das minorias, ou seja, grupos sociais determinados que em função de situações históricas e culturais são discriminados pela sociedade.

Nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, em sede doutrinária, os “efeitos persistentes” das discriminações do passado tendem a se perpetuar no presente. Assim, não basta a positivação de garantias e direitos individuais ou sociais na Carta Magna, mas, para além disso, deve o Estado cuidar da concretização de tais direitos na própria sociedade.

Segundo o ministro, as chamadas ‘ações afirmativas’ possuem o objetivo de coibir a discriminação do presente, bem como eliminar os efeitos das discriminações do passado, efeitos (explica-se) que “se revelem na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos dominados”.3

Mesmo em tempos de crise, a promoção do direito à igualdade não pode ser alijada por ocupantes (ou possíveis ocupantes) do mais alto cargo do Poder Executivo em seus planos de governo, inclusive, por seu condão constitucional.

Ações afirmativas promovidas pelo Poder Executivo (e.g. política de cotas) e recentes decisões da Suprema Corte (e.g. Fundo Partidário x Candidaturas Femininas) constituem justas e legítimas ações visando a promover e a garantir uma maior participação das minorias na sociedade brasileira, constituindo, portanto, um grande passo relativamente à concretização do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput e I, da CRFB).4

Apesar do grande avanço, o cenário atual ainda permanece injusto e desigual, havendo outros fatores sociais e culturais que influenciam diretamente na discriminação e exclusão social das minorias no país, sendo evidente a necessidade de se corrigir a desigualdade concreta entre os “grupos dominantes” e “grupos dominados” no cenário social, por meio de ações que garantam as mesmas condições de oportunidades a todos os indivíduos. Esse é o caminho para que se possa gozar, no futuro, de uma sociedade mais justa, livre, igualitária e representativa.

Considerando tais premissas, a promoção da igualdade social deve ser concretizada mediante o rompimento de barreiras institucionais, normativas e fáticas que dificultam a participação das minorias na sociedade, por meio de ações que promovam condições de igualdade de oportunidades a todos.

O professor António Francisco de Sousa, da Universidade do Porto, com peculiar clareza e precisão, explica que há imperativos essenciais ao princípio da igualdade, bem como que ao “Estado recai a incumbência de criar, manter e promover a igualdade material entre os cidadãos, por exemplo, no domínio de pessoas de sexo diferente”.5

E ainda complementa que “uma das questões centrais suscitadas pelo princípio da igualdade tem a ver com a situação concreta de desigualdade”. Dessa forma, a igualdade constitucionalmente garantida não permite “que o que é essencialmente desigual seja tratado de uma forma igual”.6

Nessa linha, não há que se falar em concretização do princípio constitucional da igualdade por meio de políticas públicas direcionadas exclusivamente à maioria (grupos dominantes), sem que se considerem as necessidades específicas e concretas, bem como as condições sociais das minorias.

Assim sendo, haja vista o caráter constitucional do princípio da igualdade, o qual reflete diretamente na promoção da igualdade nas relações sociais, sua concretização ultrapassa planos de governos, devendo, sim, ser fomentado por todos os poderes do Estado brasileiro.

A interpretação ora defendida está totalmente em sintonia com o posicionamento exarado pela Suprema Corte em casos que a questão central era a efetivação concreta do princípio constitucional da igualdade na sociedade brasileira.

Vale relembrar trecho do voto da ilustre senhora ministra Rosa Weber na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, onde foi confirmada a constitucionalidade do sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas. Confira-se:

“Identificadas essas desigualdades concretas, a presunção de igualdade deixa de ser benéfica e passa a ser um fardo, enquanto impede que se percebam as necessidades concretas de grupos que, por não terem as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de galgar os mesmos espaços daqueles que desfrutam de condições sociais mais favoráveis. E, sem igualdade mínima de oportunidades, não há igualdade de liberdade”.

E ainda acrescenta em seu voto que “necessária se faz, então, a intervenção do Estado, que tem ocorrido em especial por meio das chamadas ações afirmativas. É preciso adentrar no mundo das relações sociais e corrigir a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter seu papel benéfico”.

Defendendo, por fim, que “se as oportunidades são limitadas (...) é dado ao legislador e ao aplicador do Direito voltar a presumir a igualdade em razão do igual tratamento legal. Em outros termos, às vezes se fazem necessários tratamentos desiguais em determinadas questões sociais ou econômicas para que o resto do sistema possa presumir que todos são iguais nas demais esferas da sociedade”.

No mesmo julgamento, o ministro Luiz Fux destacou a necessidade do reconhecimento da dimensão material da igualdade, a mitigar sua tradicional concepção puramente formal, posto que “a mera proclamação normativa da igualdade não tem qualquer valor sem sua implementação fática”.

De mais a mais, importante relembrar, também, as lições da ministra Cármen Lúcia, primeira mulher a ocupar a presidência do E. Tribunal Superior Eleitoral. In verbis:

“Verifica-se, na Constituição de 1988, que os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são verbos de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. (...) Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito, possibilita a verdade do princípio da igualdade que a Constituição Federal assegura como direito fundamental de todos”.7

Flávia Piovesan ressalta ainda que, na busca pela igualdade material, não é suficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata, sendo necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Alguns desses sujeitos exigem uma resposta específica e diferenciada, um “direito à diferença”, a fim de assegurar-lhes um tratamento especial.8

Portanto, ante o atual cenário brasileiro, não basta a previsão constitucional estabelecendo o princípio da igualdade. É necessário assegurar a participação das minorias na sociedade em condições de igualdade, que se traduz em fornecer condições básicas para que haja a efetivação material dessa garantia constitucional no Brasil, independentemente de programas e planos de governos.

__________

1 Mary Wollstonecraft. A Vindication of the Rights of Woman: with Strictures on Political and Moral Subjects. 1792.

 

2 Martin Luther King Jr. Letter from a Birmingham Jail. 1963.

 

3 GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. Ações Afirmativas e o combate ao racismo nas Américas. Brasília: ONU, BID e MEC, 2007, p. 56.

 

4 Art. 5º, Constituição da República: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

 

5 SOUSA, António Francisco de. O princípio da Igualdade no Estado de Direito. In Revista de Estudos Jurídico-Políticos, n. 13/16. 2007. p. 185.

 

6 SOUSA, António Francisco de. Op. cit., pp. 185-186.

 

7 ROCHA, Cármen Lúcia. Ação Afirmativa: O Conteúdo Democrático do Princípio da Igualdade Jurídica. In: Revista Trimestral de Direito Público, nº 15, 1996. pp. 93-94.

 

8 PIOVESAN, Flávia. “Ações Afirmativas: A Questão das Cotas”. In: Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Coord. Renato Ferreira. Niterói: Impetus, 2011. p. 118-119.

__________

*Derick de Mendonça Rocha é mestrando em Direito e Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Ex-vice-presidente do Núcleo de Estudos Luso-Brasileiro (NELB). Membro da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Advogado do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.

 

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