Foi publicado no diário oficial da União desta terça-feira, dia 9/10/18, a lei federal 13.726/18 que visa “racionalizar atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, Estados e Municípios”.
Contendo 10 artigos e 3 vetos a lei da “desburocratização” teve origem no PLS (projeto de lei do Senado) 214/14 pretende simplificar as formalidades e exigências na relação entre o cidadão e a administração pública e que, com o avanço tecnológico, beiram à irracionalidade, como, por exemplo, ter que “reconhecer a firma” em um documento quando o próprio interessado comparece à repartição pública munido de sua documentação (RG, CPF ou carteira profissional) ou, ainda, “tirar uma cópia autenticada” de um documento, cuja autenticidade é plenamente possível de ser aferida pelo servidor público. Os atos emanados pelo agente público são dotados de fé pública, mas até então não eram suficientes para atestar o óbvio, como nos exemplos citados.
A lei trará reflexos diretos no dia a dia do cidadão, como se verá na análise específica do artigo 3º, e imporá ao agente público maior responsabilidade na execução de suas atividades, já que terá que conferir a idoneidade do documento apresentado e opor sua “certidão de autenticidade”, responsabilidade esta que até então era exclusiva dos serventias extrajudiciais, a teor do artigo 7º, incisos IV e V da lei federal 8.935/94.
Com o início da vigência desta lei, que só deve ocorrer nos próximos 45 (quarenta e cinco) dias, será dispensável:
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O reconhecimento de firma em documento particular, desde que possa o agente público conferir a assinatura do documento com o documento original do interessado ou, caso este se faça presente assine o documento na frente do agente público (art.3º, inciso I)
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A autenticação de cópia de documento, sempre que for possível comparar o original e a cópia (art.3º, inciso II);
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Juntada de cópia de documento pessoal, que poderá ser substituído por cópia autenticada pelo agente público (art.3º, inciso III);
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A apresentação da certidão de nascimento, sempre que for possível substituí-la por outro documento público (art.3º, inciso IV);
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Apresentação do título de eleitor, salvo para votação ou registro de candidatura (art.3º, inciso V);
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Apresentação de autorização com firma reconhecida para viagem de menor se os pais estiverem presentes no embarque (VI);
Os mais céticos dirão que a dispensa destas exigências será uma porta aberta para fraude. De fato, isso é um risco, vai existir e foi antevista pelo legislador. Porém, para este mesmo legislador, a burocracia gera um imenso custo econômico e social e que se sobrepõe ao eventual risco de fraude (art. 1º). Pode-se enxergar aí uma tentativa de trazer o princípio da eficiência da administração pública (art. 37, caput da CF/88) para o cotidiano das pessoas.
É indiscutível, em nosso sentir, as vantagens para a coletividade, inclusive sob a perspectiva do erário, com a dispensa dos documentos listados no artigo 3º, inciso I a V. Contudo, como nenhum ato humano é imune de falhas, há alguns pontos que merecem alguma preocupação. Citamos, por exemplo, a hipótese do inciso VI deste mesmo dispositivo.
Diz a lei que é dispensável: “apresentação de autorização com firma reconhecida para viagem de menor se os pais estiverem presentes no embarque”.
Ante tal assertiva, emerge naturalmente a seguinte pergunta:
_ Será que não precisarei mais apresentar uma autorização dos pais com firma reconhecida quando for levar o amigo do meu filho numa viagem (trem, avião ou ônibus)?
A lei em comento claramente diz que não, desde que os pais estejam presentes no embarque. Porém, imaginemos a hipótese de voo que tenha uma ou duas escalas.
É certo que no embarque do aeroporto “A” para o aeroporto “B” os pais estarão presentes e não haverá maiores problemas, mas como se dará no embarque do aeroporto “B” para o aeroporto “C” ou, ainda que seu voo não tenha escalas, como será feito no retorno da viagem, quando os pais do menor não estiverem presentes?
O risco do embarque ser impedido são grandes e, dada a responsabilidade das companhias aéreas, ônibus ou trem, pensamos que é bem razoável que se exija esta autorização com a firma reconhecida, até porque a questão envolve interesse do menor e este deve ser privilegiado, ainda que haja maior custo econômico.
Além destes problemas de ordem prática, sob o aspecto jurídico, este dispositivo merece algumas críticas. Primeiro, porque é regra comezinha de direito que os parágrafos e incisivos devem ser interpretados de acordo com o caput.
E o que diz o caput deste artigo 3º é que “na relação dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão, é dispensada a exigência de:”
Observe-se que o que se buscou no referido texto normativo foi desburocratizar/racionalizar os procedimentos entre o cidadão e a administração pública da União Federal, Estados e Municípios, eliminando exigências inúteis. Ora, em se tratando de viagem nacional ou internacional de um menor, cuja a relação direta é entre companhia aérea e o consumidor (seus pais ou responsável), não há sentido em dispensar a autorização de viagem, pois ainda que se trate de serviço público delegado, a relação de direito material entre eles é completamente distinta da relação entre o cidadão e o Poder Público.
Em segundo lugar, é preciso destacar que a interpretação deste inciso V, do art. 3º, deve ser feita em consonância com as disposições do artigo 83 a 85 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é lei especial. Neste caso, o que se verifica é um conflito aparente de normas, pois enquanto este inciso que está inserido numa lei geral de desburocratização, dispensa a autorização de viagem mediante consentimento verbal dos pais no ato do embarque, o ECA é rigoroso (e não poderia deixar de ser) e estabelece exatamente o contrário, assim, seguindo o critério da especialidade, não há dúvidas de que a Lei Geral (ECA) prevalecerá sobre a lei 13.726/18 (Lei Geral), de sorte que a exigência de autorização para viagens desacompanhadas dos pais ainda persistirá.
Digno de registro nestas “primeiras impressões” da referida lei é o que nela não está impresso – desculpem-nos o trocadilho -- simplesmente porque foi vetado.
Dizia o utilíssimo artigo 4º (vetado) que “os órgãos da administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal deverão disponibilizar em seus sítios eletrônicos mecanismo próprio para a apresentação, pelo cidadão, de requerimento relativo a seus direitos. Parágrafo único. O requerimento a que se refere o caput tramitará eletrônica ou fisicamente, e eventuais exigências ou diligências serão comunicadas pela internet ou por via postal." Ora, se estamos tratando de simplificação é certo que seria de enorme valia, seja pela segurança, pela economia e pela facilidade se tais “modelos de requerimentos” estivessem em sítios eletrônicos como aliás já constam em vários endereços eletrônicos e portais e órgãos públicos, como, por exemplo, usando exemplo comentado acima, o modelo de autorização de viagem de menor constante no site do CNJ.
Por fim, é importante deixar claro que de forma alguma a lei suprimiu a possibilidade de reconhecimento de firma ou autenticação dos documentos, pois haverá casos em que isso será inevitável, mas esta exigência, quando a relação for entre a administração pública e o cidadão, será exceção e não mais a regra.
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*Christina Cordeiro dos Santos e Marcelo Abelha Rodrigues são sócios de Cheim Jorge & Abelha Rodrigues – Advogados Associados.