A colaboração premiada não é novidade no ordenamento jurídico nacional, tendo em vista a sua previsão em diversos diplomas desde o início da década de 901. No entanto, após o advento da lei 12.850/13 houve fortalecimento do instituto em razão da criação do procedimento para celebração do acordo e suas repercussões, o que acabou ocasionando maior segurança jurídica para acusação, defesa e juiz na sua aplicação no âmbito forense.
O art. 4º, §§ 2º e 6º é um dos pontos trazidos pela nova legislação que é alvo de polêmicas, pois, acertadamente, afastou o juiz das negociações do acordo de colaboração e definiu as tratativas de duas formas: a) delegado de polícia, investigado e defensor, com manifestação do Ministério Público; b) Ministério Público, investigado ou acusado e defensor. No tocante à segunda hipótese não houve maiores celeumas acerca do procedimento, entretanto, quanto à primeira hipótese o debate se acentuou2, tanto que a Procuradoria-Geral da República apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.508/DF defendendo que a autoridade policial não poderia firmar colaborações premiadas sem a presença do Ministério Público.
É fato que a discussão apresentada encontra forte viés institucional, tanto é assim que, em grande medida, membros do Ministério Público sustentam em obras doutrinárias ou artigos científicos a inconstitucionalidade da atuação do delegado de polícia3, enquanto estes trilham perspectiva antagônica4, indicando a imprescindibilidade de um debate teórico e despido de paixões.
Diante disso, o presente trabalho traz breves reflexões acerca da legitimidade da autoridade policial firmar colaborações premiadas, especialmente à luz da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade5, na qual se entendeu pela legitimidade do delegado de polícia firmar acordos de colaboração premiada6.
Para se abordar a legitimidade da autoridade policial, faz-se necessário o exame dos prêmios dispostos em lei, consistentes em imunidade, perdão judicial, redução da pena privativa de liberdade, substituição por pena restritiva de direitos, os quais deverão ter tratamentos distintos a partir do proponente do acordo de colaboração.
De início, observa-se que a imunidade não pode ser proposta pela autoridade policial, visto que a Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública (cf. art. 129), tornando-o, portanto, único legitimado para oferecer a benesse legal ante o poder-dever conferido para exercer a pretensão acusatória. Por outro lado, em relação aos demais benefícios, a discussão mostra-se mais complexa.
Os prêmios previstos na lei 12.850/13 são classificados como institutos de direito material7, ou seja, possuem incidência obrigatória a partir da obtenção dos resultados possíveis dispostos em lei, isto é, podem ser compreendidos como verdadeiros direitos subjetivos do investigado/acusado. Desse modo, observa-se que a formalização do acordo, seja pela autoridade policial ou pelo próprio Ministério Público, é medida irrelevante caso se alcance o resultado disposto em lei (colaboração unilateral8), conforme já decidiu inclusive o Superior Tribunal de Justiça9. É claro que a existência do acordo de colaboração oferece maior segurança jurídica10 entre os envolvidos antes as delimitações das obrigações contraídas, todavia, ainda que ausente o contrato seria possível a concessão dos prêmios legais.11
Note-se, inclusive, que a lei 9.807/99 autoriza que o juiz, de ofício, conceda o perdão judicial ou a redução de pena, nos termos dos arts. 13 e 14, reforçando o aspecto de que caberia apenas à autoridade judicial mensurar a extensão do prêmio em cotejo com os resultados obtidos, tendo em vista que o juiz avaliaria na sentença a situação jurídica do acusado.
De outro lado, examinando-se a questão sob a ótica processual, partindo-se das premissas firmadas no julgamento do HC 127.483, pelo Supremo Tribunal Federal, tem-se que a colaboração premiada é meio de obtenção de prova, ou seja, constitui instrumento para o alcance de meios de provas que possam corroborar as informações trazidas pelo colaborador.
Nesse contexto, imprescindível a comparação da atuação da autoridade policial em outros meios de obtenção de prova, no intuito de facilitar a análise de eventual invasão das atribuições do Ministério Público, notadamente no que diz respeito à titularidade da ação penal. Por conseguinte, pode-se mencionar a interceptação das comunicações telefônicas, meio de obtenção de prova disciplinado pela lei 9.296/96, a qual em seu art. 3º, inc. I, prevê a possibilidade da autoridade policial formular o pedido na fase de investigação criminal12, o que indica a existência de dispositivos legais estabelecendo atuação do delegado de polícia similar à fixada na delação premiada, em outros meios de obtenção de prova.
É certo, porém, que a atuação do delegado de polícia não poderá ser dar no sentido de negociar o benefício de imunidade (não oferecimento da denúncia), conforme art. 4º, §4º, da lei 12.850/13, hipótese de prêmio legal suscetível de negociação, única e exclusivamente, pelo Ministério Público, isto porque, compreensão diversa permitiria indevida ingerência nos poderes constitucionalmente conferidos ao Parquet.
Por conseguinte, é possível examinar a decisão do STF sob duas perspectivas: a) em primeiro lugar, confirmação da natureza material do instituto da colaboração premiada; b) sob a vertente processual, partindo-se da premissa fixada em julgamento anterior, reforça-se que a atuação do delegado de policial na concretização de acordo de colaboração não afeta as atribuições privativas do Ministério Público.
Em outras palavras, não existe óbice para que o acordo seja formulado diretamente entra autoridade policial e investigado, desde que o juiz homologue as avenças firmadas entre as partes, após manifestação contrária ou favorável do Ministério Público, para que no momento da sentença possa conceder os benefícios contidos no contrato13.
De todo modo, a manifestação desfavorável do Ministério Público não impedirá eventual homologação da avença, sobretudo porque – insista-se – o acordo constitui instrumento que confere segurança jurídica à negociação, mas não obsta eventual aplicação de benefícios legais, nos termos da lei 9.807/99.
Por fim, a conclusão apenas evidencia que o Poder Judiciário continua sendo o responsável pelo direito de punir14, que somente pode ser exercido após a conclusão da ação penal, com a efetiva participação do Ministério Público, o que não constitui óbice a atuação do delegado de polícia na formalização de acordo de colaboração premiada na fase de investigação criminal.
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1 Para entender a evolução do instituto: BITTAR, Walter Barbosa. Delação premiada: direito estrangeiro, doutrina e jurisprudência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 83/145.
2 Contra o acordo pela autoridade policial: MENDONÇA, Andrey Borges de. A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013). Revista Custos Legis, vol. 4, 2013, p.14; PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada: legitimidade e procedimento. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2016, p. 131/132. A favor do acordo pela autoridade policial: ANSELMO, Marcio Adriano. Colaboração premiada: o novo paradigma do processo penal brasileiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: M. Mallet Editora, 2016, p. 81/90.
3 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa – Lei 12.850/13. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 122/124. Os autores divergem na análise do tema, sendo que Paulo César Busato sustenta a inconstitucionalidade da autoridade policial entabular o acordo, enquanto Cezar Roberto Bitencourt não vislumbra qualquer empecilho.
4 SANNINI NETO, Francisco; HOFFMANN, Henrique. Colaboração premiada deve ter participação da polícia judiciária.
5 A importância do tema é enorme, visto que após a manifestação da Suprema Corte, houve a aplicação imediata do entendimento na homologação da colaboração premiada com o ex-ministro Antonio Palocci. Disponível em: clique aqui. Acesso em 09 de julho de 2018.
6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 907. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 09 de julho de 2018.
7 O Ministro Gilmar Mendes, no voto proferido na ADIn, ressaltou a natureza material dos benefícios legais ao colaborador premiado, concluindo que o juiz pode aplicá-los ex officio. (Disponível em . Acesso em 12.07.18.
8 SANTOS, Marcos P. D. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr. 2017. Clique aqui; ROSA, Alexandre Morais da. Você sabe o que é delação premiada unilateral? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Delação premiada no limite – a controvertida justiça negocial made in Brazil. Florianópolis: Emais, 2018, p.85/89.
9 REsp 1691901/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 09/10/2017.
10 GOMES, Luiz Flávio; SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações Criminosas e Técnicas Especiais de investigação – Questões controvertidas, aspectos teóricos e práticos e análise da Lei 12.850/2013. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 286.
11 Tal posição se aproxima do modelo paulista de delação premiada existentes antes da Lei nº. 12.850/13, em contraposição ao modelo paranaense que já se utilizava da figura contratual. Vide BITTAR, Walter Barbosa. Op. Cit., p. 235-243.
12 Em sentido similar, mas relacionando o julgamento da ADIn com os poderes do delegado na representação por medidas cautelares em geral, cf. GOMES, Rodrigo Carneiro. Delegado tem o poder-dever de representar ao juízo e propor colaboração premiada.
13 A vinculação do julgador aos termos do contrato no momento da prolação da sentença, salvo ilegalidade superveniente, restou assentada pelo STF Pet 7074 QO, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 02-05-2018 PUBLIC 03-05-2018.
14 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 06.
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*Luiz Antonio Borri é advogado, pós-graduado em Direito e Processo Penal pela UEL.
*Rafael Junior Soares é advogado, professor de Direito Penal da PUCPR/Campus Londrina.