Não é exagero dizer que “o principal motivo determinante do uso da arbitragem, em qualquer parte do mundo, é a morosidade dos feitos judiciais”.1 A situação não é diferente no Brasil. Com o advento da lei 9.307/96, declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal2, a prática da arbitragem como meio adequado de resolução de disputa vem ganhando cada dia mais espaço, notadamente em razão da celeridade com que o procedimento tramita e, por conseguinte, com que é proferida a sentença arbitral3.
A jurisdição arbitral é, pois, única. Não há duplo grau de jurisdição.4 É facultado às partes, no máximo, solicitar ao árbitro ou ao tribunal arbitral que corrija erro material ou esclareça eventual obscuridade, dúvida, contradição ou omissão que permeie a sentença arbitral, por intermédio de pedido de esclarecimentos (artigo 31), que é semelhante aos embargos de declaração disciplinados nos artigos 1.022 a 1.026 do CPC.5
A irrecorribilidade da sentença arbitral, no entanto, não significa dizer que a decisão dos árbitros não seja passível de controle judicial. Como ensina Flávio Luiz Yarshell: “Muito embora a celebração do compromisso – e, antes dele, da cláusula compromissória – revele que as partes não pretendem se valer do controle jurisdicional estatal, este, ainda que com limites, não deve ser descartado”.6
No Brasil, são dois os instrumentos aptos a impugnar e declarar a nulidade da sentença arbitral (seja parcial, seja final)7: a ação declaratória de nulidade8 (artigo 33 da Lei de Arbitragem), sujeita às regras do procedimento comum e ao prazo decadencial de noventa dias; e em sede de impugnação ao cumprimento de sentença (artigo 33, § 3º da Lei de Arbitragem), cabível em caso de execução judicial de sentença arbitral de tônus condenatório e sujeita às regras e prazos disciplinados nos artigos 525 e seguintes do CPC.
A ação declaratória de nulidade tem por escopo a anulação do julgamento arbitral nas oito hipóteses descritas numerus clausus pelo artigo 32 da Lei de Arbitragem. São situações específicas, excepcionais e taxativas9, cuja nulidade é medida que se impõe diante de vícios formais da arbitragem.
Se - e somente se - a sentença arbitral tiver incorrido em error in procedendo, e não em error in judicando, a ação declaratória de nulidade terá êxito. E, na hipótese de procedência do pedido, será desconstituída a sentença arbitral, com o competente decreto de nulidade ou, sendo o caso, serão as partes submetidas a novo julgamento arbitral. Não compete ao magistrado togado, em nenhuma hipótese, rejulgar a controvérsia10 (artigo 33, § 2º da Lei de Arbitragem).11
Nesse sentido, Donaldo Armelin ressalva que “não parece aceitável a admissibilidade de ação rescisória para complementar o quadro de ações judiciais estabelecido para o ataque da sentença arbitral já imutável. Este é suficiente par propiciar o reexame da matéria decidida pela via arbitral e, como sucede com a ação rescisória, não objetiva o julgamento de decisões injustas, mas sim daquelas que se encartem nas hipóteses do art. 32 da lei 9.307/96”12.
O controle judicial sobre a arbitragem, dessa forma, está adstrito ao controle da regularidade formal da sentença arbitral. É vedado ao Poder Judiciário adentrar no mérito da disputa, sob pena de, ao fazê-lo, ferir a autonomia da jurisdição arbitral e enfraquecer de maneira indesejada o instituto da arbitragem.
A propósito, nas palavras de Caio Rocha: “Não há caminho para a revisão do julgado, vedado que é o reexame da matéria arbitrada pelo Judiciário. Além do mais, o princípio que vocacionou o legislador arbitralista foi o de conferir autonomia à arbitragem em relação ao Poder Judiciário, a fim de assegurar a resolução privada de litígios, com a mínima interferência possível do juiz togado. Daí ter fixado o exíguo prazo de 90 dias para a remessa do exame de validade da questão arbitrada ao foro judicial. Seria absolutamente incompatível com o sistema adotado a possibilidade da espera pelo longo prazo de dois anos a fim de que a sentença arbitral ganhasse o status necessário a ser considerado juridicamente segura. O próprio desenvolvimento do instituto da arbitragem estaria comprometido: o processo arbitral passaria de instrumento real de resolução de conflitos para aperitivo pré-judicial de um litígio a ser sempre submetido às lindes forenses para só lá obter a palavra final quanto ao mérito debatido.”13
Como consequência, surge ampla discussão na doutrina a respeito do cabimento ou não da ação rescisória como ação autônoma de impugnação da sentença arbitral. Diversas são as conclusões. Há quem entenda que, irrecorrível, a sentença arbitral somente poderia ser desafiada pela ação rescisória. Mais flexível, existem outros que a admitem só quando convencionado pelas partes. De aplicabilidade temperada, há aqueles que reconhecem seu cabimento nos casos enumerados no artigo 966 do CPC, que não foram encampados pelo artigo 32 da Lei de Arbitragem. Por fim, estão os juristas que não admitem a ação rescisória para impugnação da sentença arbitral.14
À primeira vista, essa última corrente, majoritária, parece-nos a mais acertada. Não há espaço para se defender o cabimento de ação rescisória como meio de impugnação da sentença arbitral, com supedâneo nas normas do processo civil.15 Não são poucos os motivos que levam à essa conclusão.
Primeiro, não há, em nenhuma passagem da Lei de Arbitragem, a ação rescisória como uma opção. Pelo contrário, o legislador foi claro ao dispor que a impugnação da sentença arbitral, perante o Poder Judiciário, se dará mediante o ajuizamento da ação declaratória de nulidade, observadas as casuísticas do artigo 32 e a exceção (impugnação ao cumprimento de sentença) do § 3º do artigo 33. Não há forma diversa. A legislação de regência é indiscutível.
Aliás, sobre essa questão específica, Flávio Yarshell destaca com acerto que “seria cômodo ao legislador, se assim desejasse, ter remetido a desconstituição da sentença arbitral às regras do art. 485 do CPC [artigo 966 do CPC atual]. Não o fazendo, é de se entender que excluiu o cabimento da rescisória”.16
Da mesma forma, o próprio artigo 966 do CPC, que versa sobre ação rescisória, não menciona a possibilidade de sua utilização para desconstituir sentença arbitral, não sendo recomendável, para não dizer incabível, uma interpretação extensiva nesse sentido.17
Segundo, é indispensável reconhecer que, caso existisse, de fato, um conflito de normas entre a ação declaratória de nulidade e a ação rescisória para a impugnação de sentença arbitral - o que se admite apenas para fins de debate acadêmico –, prevaleceria o critério da especialidade, segundo o qual o caráter especial da Lei de Arbitragem se impõe sobre o CPC, que é regra geral.
Terceiro, admitir o cabimento da ação rescisória significa caminhar contra a celeridade que é buscada pelas partes que elegem a jurisdição arbitral. O prazo decadencial de dois anos previsto para o ajuizamento da ação rescisória submeteria as partes a um longo período de insegurança, passível de modificação da decisão dos árbitros pelo Poder Judiciário, situação incompatível com a essência da arbitragem.18
Quarto e último, não se pode descartar o fato de que a legislação processual civil não se aplica, de forma automática, ao processo arbitral. São raros e excepcionais os casos de aplicação, sendo certo, inclusive, que não é viável às partes convencionar o cabimento da ação rescisória para desafiar a sentença arbitral, por força do óbice presente no artigo 2º, § 1º da Lei de Arbitragem.
A ação rescisória, portanto, não serve para fazer as vezes da ação declaratória de nulidade de sentença arbitral19. A distinção é relevante, pois, como adverte Flávio Yarshell, resulta em severas consequências práticas: “Assim, dizer que não cabe rescisória contra sentença arbitral significa reconhecer, em primeiro lugar, que demanda tendente à desconstituição dessa espécie de julgamento não se submete à regra de competência originária dos tribunais, cabendo a órgão de primeiro grau, segundo as regras ordinárias de competência, conhecer e julgar tal demanda. Em segundo lugar, os ônus das partes não são aqueles previstos na lei processual para a ação rescisória, não havendo que se falar, por exemplo, no depósito de que trata o art. 488, II, do CPC, ou na fixação do prazo a que alude o art. 491 do CPC, ou no prazo decadencial estatuído pelo art. 495 do CPC.”20
Não se desconhece, de todo modo, que há uma situação singular em que a ação rescisória será bem-vinda no que toca a arbitragem: quando destinada a desafiar decisão que julgou a ação anulatória de sentença arbitral, desde que preenchida alguma das circunstâncias do artigo 966 do CPC. Se, por um lado, a sentença arbitral não constitui objeto da ação rescisória; por outro, pode ser objeto de rescisória o pronunciamento que julgar, em caráter definitivo, a ação que visa à desconstituição da sentença arbitral.21
Feita essas breves considerações, está claro que a Lei de Arbitragem sugere uma via competente e suficiente para a desconstituição da sentença arbitral: a ação declaratória de nulidade. Essa opção pelo legislador não foi despropositada. Ao revés, o uso da ação declaratória de nulidade salvaguarda o instituto da arbitragem e suas finalidades (incluindo, mas não se limitando à celeridade), afasta a burocracia a que as partes estariam submetidas caso obrigadas a recorrer à ação rescisória e, ao mesmo tempo, assegura o direito de impugnar a invalidade de sentenças arbitrais eivadas de nulidades.22
__________
1 Cf. Sergio Bermudes, Arbitragem: um instituto florescente, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 50, set. 2016, p. 387.
2 SE 5206 AgR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/2001.
3 Reconhece-se que há exceções.
4 É possível, contudo, que as partes optem por submeter a sentença arbitral à revisão por um painel arbitral, desde que o regulamento da câmara de arbitragem assim permita. É o caso, por exemplo, do regulamento da AAA.
5 Cf. Nelmo Versiani, Ação Rescisória de Sentença Arbitral, RePro 135/90, Maio/2006, p. 1167.
6 Cf. Flávio Luiz Yarshell, Ação anulatória de julgamento arbitral e ação rescisória, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 5, São Paulo, RT, 2005, p. 983.
7 Cf. Donaldo Armelin, Notas sobre ação rescisória em matéria arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, jan. 2004, pp. 907/918.
8 Leia-se: ação anulatória.
9 Cf. Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e processo, São Paulo, Malheiros, 1998, p. 261.
10 A impossibilidade do Poder Judiciário, em sede de ação anulatória, revisitar o mérito de sentença arbitral é questão reconhecida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial autuado sob 693.219/PR, realizado sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi em 19 de abril de 2005.
11 Carlos Alberto Carmona observa a diferença entre o sistema brasileiro e o italiano nesse quesito. Ensina que o sistema italiano, ao contrário do brasileiro, permite que, anulada a sentença arbitral, seja a causa devolvida ao Judiciário para a prolação de decisão que a substitua. (Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2007, pp. 338/339).
12 Cf. Donaldo Armelin, Notas sobre ação rescisória em matéria arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, RT, jan. 2004, p. 910.
13 Cf. Caio Cesar Vieira Rocha, Limites do controle judicial sobre a jurisdição arbitral no Brasil. Tese (Doutorado em Processo Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 263.
14 Cf. Nelmo Versiani, Ação Rescisória de Sentença Arbitral, Revista de Processo, RePro 135/90, Maio/2006, p. 1169.
15 Confira-se o teor do Enunciado nº 203, aprovado no Fórum Permanente de Processualistas Civis, realizado em abril de 2014, no Rio de Janeiro: “(art. 966) Não se admite ação rescisória de sentença arbitral. (Grupo: Arbitragem)”. No mesmo sentido é o Enunciado nº 1, aprovado na I Jornada “Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios”, realizado em agosto de 2016, em Brasília, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “A sentença arbitral não está sujeita à ação rescisória.”
16 Cf. Flávio Luiz Yarshell, Ação anulatória de julgamento arbitral e ação rescisória, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 5, São Paulo, RT, 2005, p. 983.
17 A questão foi acertadamente enfrentada pelo TJRJ, ainda à luz do vetusto CPC: TJ RJ – AgRg na AR nº 0317105-31.2008.8. 19.0001 – 20ª Câmara Cível, j. 4/7/2012, Relª. Desª. Conceição A. Mousnier. Comentando tal julgamento, ver, por todos: Samantha Mendes Longo, Ação rescisória de sentença arbitral – art. 33 da Lei 9.307/1996, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 36, São Paulo, RT, 2013, pp. 401/407.
18 Cf. Donaldo Armelin, Notas sobre ação rescisória em matéria arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, RT, jan. 2004, p. 911.
19 A situação é ainda mais sensível no caso da sentença arbitral estrangeira, considerando que “já delibada passou pelo crivo do Judiciário, que lhe outorgou, por decisão transitada em julgado, a nacionalidade brasileira, equiparando-a àquelas sentenças arbitrais internas, que produzem os mesmos efeitos das sentenças judicias, inclusive, quando condenatória, propiciando o ajuizamento de execução forçada. Mais, ainda, estatui o art. 35 da Lei 9.307/1996 que para ser reconhecida ou executada no Brasil, a sentença arbitral estrangeira está sujeita, exclusivamente, à homologação do STF”. (Cf. Donaldo Armelin, Notas sobre ação rescisória em matéria arbitral, Revista de Arbitragem e Mediação, jan. 2004, p. 914).
20 Cf. Flávio Luiz Yarshell, Ação anulatória de julgamento arbitral e ação rescisória, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 5, 2005, p. 985.
21 Cf. Leonardo de Faria Beraldo, Curso de arbitragem: nos termos da Lei nº 9.307/96, São Paulo, Atlas, 2014, p. 546.
22 Op. Cit., Caio Cesar Vieira Rocha.
__________
*Gustavo Favero Vaughn é advogado do escritório Cesar Asfor Rocha Advogados. Mestrando em Direito Processual.
*Fernando Del Picchia Maluf é advogado do escritório Demarest Advogados. Mestrando em Direito das Relações Econômicas.