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Separando o joio do trigo: fractional não é condo-hotel, nem pode ser, automaticamente, considerado um CIC

É de grande importância uma análise aprofundada da CVM sobre as características do empreendimento de fractional e, principalmente, das diferenças entre este modelo e o de condo-hotéis.

23/8/2018

1. Contextualização

A oferta de unidades de condo-hotel vem sendo objeto de diversos debates, principalmente a partir da publicação pela Comissão de Valores Mobiliários ("CVM"), em 12/12/13, do alerta ao mercado sobre ofertas públicas irregulares. Diversos participantes do setor imobiliário e do mercado de capitais vêm debatendo e evoluindo neste assunto, tendo em vista o impacto que referido alerta trouxe para tais mercados.

Resumidamente, por meio do aludido alerta, a CVM informa que:

- vem observando situações em que incorporadores e corretores de imóveis ofertam oportunidades de investimento em empreendimentos imobiliários que podem configurar oferta pública irregular de valores mobiliários, por não terem prévio registro naquela autarquia;

- "nas situações mais comuns, os investimentos do público são direcionados a sociedades em conta de participação (SCP), por meio da compra e venda de frações ideais de imóveis que correspondem a cotas das sociedades, muito embora outros tipos de contrato e de sociedade também possam ser utilizados"; e

- os contratos firmados sempre conferem aos investidores do empreendimento imobiliário o direito de participação nos resultados - positivos ou negativos - oriundos de atividades como hotelaria, locações comerciais ou residenciais, dentre outras.

Tendo em vista a fiscalização ostensiva que a CVM começou a fazer sobre as operações de vendas de empreendimentos imobiliários e a insegurança jurídica que passou a pairar sobre o empreendedor, a referida entidade começou a desenhar os contornos dos tipos de empreendimentos que caracterizam ofertas públicas de valores mobiliários, sujeitos, por isso, a prévia análise para fins de registro ou dispensa de registro pela Comissão.

Assim, os empreendimentos popularmente chamados de condo-hotéis foram os mais afetados, tanto pela atuação fiscalizatória quanto pela Deliberação 734 da CVM, publicada no dia 19 de março de 2015, que consubstanciou as decisões do órgão colegiado da CVM sobre as ofertas públicas de contratos de investimento coletivos ("CIC") em unidades hoteleiras, e constituiu o primeiro marco regulatório desta matéria.

Por meio desta deliberação ficou claro que a oferta, em empreendimentos hoteleiros, de um ativo (unidade autônoma, fração de imóvel ou cotas de SCP) atrelado ao recebimento de um resultado do projeto, caracteriza uma oferta pública de valores mobiliários, subordinada a prévia análise pela CVM.

2. O condo-hotel e a CVM

Para uma breve conceituação do que é popularmente chamado de condo-hotel, cite-se o Manual de Melhores Práticas para Hotéis de Investidores Imobiliários Pulverizados, também designado Manual de Condo-hotel, lançado pelo SECOVI-SP em 2012, que compilou as práticas e conceituou o que seria tal modelo. De acordo com este manual, o condo-hotel representa a terceira geração de flats do mercado brasileiro, com foco no setor hoteleiro, muito influenciado por eventos nacionais como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Oriundo da necessidade de aumento da capacidade hoteleira no Brasil, e sofrendo com a dificuldade de crédito para o setor, o arcabouço contratual dos condo-hotéis visava a obter financiamento por meio da comercialização das unidades imobiliárias ou frações de unidades, mas com uma característica intrínseca: a proibição de o adquirente utilizar diretamente a unidade, cuja aquisição destinava-se unicamente à obtenção de renda decorrente da exploração do negócio por uma empresa especializada em administração hoteleira.

Muitas estruturas contratuais e societárias foram criadas para se viabilizar a captação de recursos via comercialização de unidades/cotas de condo-hotéis, sendo as mais populares por meio de locação do empreendimento pela operadora hoteleira e por meio de constituição de uma SCP.

Esse modelo de fomento dos empreendimentos condo-hoteleiros acabou caindo como uma luva no conceito mais moderno do inciso IX do art. 2º da lei 6.385/76, que considera como valores mobiliários, quando ofertados publicamente, quaisquer "títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros".

Também, foi muito discutido se a venda de unidades de condo-hotel construídas sob o regime de incorporação imobiliária, nos termos da lei 4.591/64, se encaixaria no conceito do referido art. 2º, IX, afinal, a lei de Incorporações já cria regra de venda de unidades ao público em geral, e protege com seu arcabouço legal o adquirente respectivos. Não por outra razão, a CVM acabou criando uma regra mais branda para o CIC de condo-hotel desenvolvido por meio dessa estrutura se comparado ao CIC representativo de uma mera quota de participação, entendimento este consolidado na Deliberação 734.1

De fato, em operações de condo-hotéis em que o empreendimento não é desenvolvido por meio de incorporação imobiliária, e que o CIC ofertado corresponde a uma cota de participação, não há dúvidas sobre o enquadramento no conceito de valor mobiliário, e, portanto, passível de registro ou dispensa de registro na CVM. Mas no caso de incorporação ainda há certa resistência pelo empreendedor imobiliário em aceitar mais um grau de fiscalização e principalmente de necessidade de aprovação em um órgão regulador, tendo em vista a complexidade e rigidez da lei 4.591/64 e seu cunho protetor do adquirente da unidade.

A discussão foi tamanha que a CVM colocou em audiência pública uma minuta de Instrução da CVM para regrar os pedidos de dispensa de registro de oferta pública de empreendimentos de condo-hotéis. Diante da complexidade do tema, a audiência pública acabou em 08 de fevereiro de 2017 e até a data de publicação deste artigo não houve sua publicação.

Não obstante, já é pacificado que a venda de unidades de condo-hotéis pode ser classificada como uma oferta pública de valores mobiliários, quando preenchidos cumulativamente os seguintes requisitos do inciso IX do art. 2º da lei 6.385/76:

a) o negócio jurídico for ofertado publicamente (Instrução CVM 400);

b) os contratos forem de investimento coletivo;

c) o negócio jurídico ofertado gerar direito de participação, parceria ou remuneração (inclusive resultante de prestação de serviços); e

d) os rendimentos advierem do esforço do empreendedor ou de terceiros (e não do investidor).

Diante desse quadro, recentemente passou-se a questionar se a venda de quotas de participação em empreendimentos fractional também se enquadraria no conceito de CIC. Esse questionamento faz muito sentido, tendo em vista a similaridade entre o condo-hotel e o fractional, e que este modelo é quase sempre aplicado em resorts ou hotéis turísticos. Entretanto, é aí que mora o perigo, pois quando se aplica a mesma regra a situações semelhantes, porém distintas, corre-se o risco de incorrer em erro justamente por não se considerar as diferenças.

Dito isso, passa-se a analisar brevemente o produto imobiliário fractional para em seguida, sob a ótica dos CICs, compará-lo ao condo-hotel.

3. Fractional

Assim como o Condo-hotel, o fractional pode ser desenvolvido por mais de uma estrutura jurídica. Contudo, para os fins deste artigo, a análise limitar-se-á aos empreendimentos de fractional realizados por meio de incorporação imobiliária, nos termos da lei 4.591/64.

O termo fractional, um claro anglicismo, se deve ao fato de que este tipo de empreendimento foi desenvolvido por norte-americanos, com grande foco em hotéis no Caribe, e que tem por característica principal o fato do contrato dar ao adquirente uma fração da propriedade da unidade vendida. No Brasil, esse modelo também é chamado de multipropriedade.

No direito pátrio, a unidade imobiliária, embora indivisível, pode pertencer a mais de um proprietário, em condomínio voluntário. Na multipropriedade, há uma delimitação do uso da unidade, de modo que os seus coproprietários nunca a utilizem conjuntamente. Ou seja, há um regramento temporal de uso da propriedade que garante que no tempo determinado, cada coproprietário possa usufruir isoladamente da unidade.

Geralmente o regramento consta dos contratos de promessa de compra e venda das unidades imobiliárias e da convenção do condomínio, mas já se tem notícia de certos empreendimentos em que foi possível incluir tais regras no memorial de incorporação, transportando-as para as matrículas das unidades, para maior segurança jurídica.

Por ser um empreendimento hoteleiro, há uma administradora hoteleira e/ou uma administradora condominial. Contudo, diferentemente do Condo-hotel, não há uma relação direta com o adquirente, por meio de criação de uma SCP ou de locação da unidade à administradora.

E isso por uma razão muito simples: no fractional, o objetivo do adquirente é o uso da unidade e da estrutura do empreendimento. Assim, não há a transferência da posse para a administradora de largada, e o adquirente não fica limitado ao recebimento de receita de locação ou rendimento da SCP.

Assim, na multipropriedade o coproprietário goza de todos os direitos sobre sua unidade (uso, fruição e disposição). A limitação refere-se apenas à divisão do tempo de uso/fruição entre os condôminos da unidade.

A discussão, contudo, torna-se mais difícil quando o multiproprietário adere a um pool de locação, gerido pela administradora hoteleira, para organizar e gerir as locações de todas as cotas dos condôminos aderentes. Seria esse pool de locação um CIC? Deveria, então, a venda de quotas de fractional passar pelo mesmo rito da Deliberação CVM 734, assim como os empreendimentos condo-hoteleiros?

4. Pool de Locação e CIC

O pool de locação em um empreendimento de fractional, diferentemente do condo-hotel, é facultativo e, em regra, não é vendido junto com a cota de participação como um produto de investimento. Já no condo-hotel, a regra é proibir o uso direto do proprietário, que tem apenas o direito à renda (em caso de resultado positivo). O condo-hotel é vendido como um produto de investimento, e a adesão ao pool de locação, ou sistema similar, é obrigatório.

Esse argumento é bastante válido, mas não suficiente para descaracterizar a venda de multipropriedade como um CIC, pois, por exemplo, a própria lei 6.385/76 diz que contratos futuros e de opção são valores mobiliários. Note-se que tanto o contrato de opção quanto o contrato de compra e venda de uma cota de fractional geram um direito de participação em um outro negócio jurídico, que podem ou não ser exercidos.

Entretanto, no contrato de opção o objeto do negócio jurídico ofertado é a própria opção, enquanto na venda de fractional o direito de participação facultativa no pool hoteleiro é tão-somente um dos efeitos da multipropriedade.

Ora, seria descabido estender o conceito de valor mobiliário para todo e qualquer direito de participação cujo rendimento advenha de esforço de terceiro, sob pena de se chegar ao absurdo de considerar como valores mobiliários os contratos de venda de unidades que venham a ser colocadas para locação por um corretor de imóveis. Seria o mesmo que dizer que venda de imóveis de um empreendimento em geral é oferta de CIC, pois o proprietário sempre poderá obter renda de locação intermediada por um corretor imobiliário.

Assim, só haverá CIC se tanto o negócio jurídico quanto a oferta contiverem, como elemento essencial (ainda que não obrigatório), o direito de se obter renda proveniente do esforço de terceiro.

Sublinhe-se: na multipropriedade, a adesão ao pool hoteleiro não se confunde com a compra de cotas de participação, nem dela decorre necessariamente. Então, é importante distinguir quatro situações:

(i) se, por ocasião da publicidade e celebração do contrato de venda de fractional, a participação no pool for facultativa, e sem prévio esforço de oferta pública deste (Instrução CVM 400, art. 3º), não se poderá considerar tal oferta como um CIC, ainda que a opção (pelo direito à renda advinda de atividade de terceiro) venha a ser exercida, já que essa participação será mera faculdade, e não um elemento essencial do negócio; em outras palavras, a coligação será eventual, e unilateral: o contrato de participação do pool existirá somente se subsistir a venda da fração, mas o inverso não se verifica, persistindo a multipropriedade ainda que a participação no pool não seja exercida pelo adquirente;

(ii) se a oferta de participação no pool de locação ocorrer somente após a celebração do contrato de fractional, com ainda mais razão não haverá um CIC, eis que referida oferta, realizada quando a incorporadora já tem relação jurídica com o adquirente, sequer será pública (Instrução CVM 400, art. 3º, §1º);

(iii) se a negociação da fração ocorrer juntamente com os esforços de venda da opção de participação no pool, haverá ou não, a depender de cada caso, um nexo funcional entre os dois contratos, e a oferta poderá, ou não, ser considerada um CIC, conforme o esforço de venda da renda do pool hoteleiro seja ou não relevante em relação à venda da fração; e

(iv) se, finalmente, a alienação da multipropriedade gerar, automaticamente, a participação no pool, os dois contratos estarão funcional e bilateralmente coligados entre si, e o negócio será claramente tido como um CIC, encaixando-se no conceito do inciso IX do art. 2º da lei 6.385/76; e

É preciso sempre ficar atento às práticas de corretores de imóveis na venda do fractional, pois a CVM já se manifestou no sentido de que a responsabilidade é sempre da incorporadora. Ainda que os contratos de compra e venda, administração hoteleira ou material publicitários não contenham todas as características de uma oferta pública, caso na prática o corretor de imóveis oferte a cota como um investimento, colocando a adesão ao pool de locação como uma das grandes atratividades do negócio, e de fato "ofertando" a opção de adesão ao pool¸ pode ser que estas práticas configurem um CIC.

5. Conclusão

É de grande importância uma análise aprofundada da CVM sobre as características do empreendimento de fractional e, principalmente, das diferenças entre este modelo e o de condo-hotéis, para que a multipropriedade não seja colocada em uma "vala comum", sendo automaticamente considerada um CIC.

Mais relevante ainda: o empreendedor imobiliário, especialmente o incorporador, deve se atentar às regras de oferta pública de valores mobiliários para que não caracterize, involuntariamente, o lançamento e venda de seu empreendimento como uma oferta pública de valor mobiliário sem prévio registro na CVM, correndo o risco de incorrer em crime contra o sistema financeiro nacional.

Para evitar esse perigo, é essencial a correta estruturação jurídica dos contratos, e um cuidadoso treinamento e acompanhamento da equipe de vendas.

Por fim, é importante mencionar o PL do Senado 54/17, em tramitação no Senado Federal (clique aqui para o texto atual), e já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça em março deste ano, que procura regulamentar amplamente a multipropriedade, mas que nada trata sobre eventual necessidade de registro da oferta pública em empreendimentos hoteleiros. O regramento do tema no projeto de lei, se ocorrer, poderá aumentar a segurança jurídica dos empreendedores, com benefícios para todo o mercado, devendo ainda as regras da CVM sobre CIC serem observadas para se evitar a sua caracterização sem a prévia dispensa de registro perante esta autarquia.
__________

1 Por exemplo, para investir em unidades autônomas o investidor precisa comprovar patrimônio mínimo de R$ 1 milhão, e para investir em uma fração ideal de condomínio geral, o patrimônio a ser comprovado é de pelo menos R$ 1,5 milhão.
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*André Abelha é sócio do escritório Castier/Abelha Advogados.

*Leandro Issaka é sócio de IBS Advogados.

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