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Imposto sobre grandes fortunas: Considerações acerca da obrigatoriedade constitucional de sua instituição

Não existe resposta a priori sobre a constitucionalidade em geral do imposto sobre grandes fortunas, nem sobre a obrigatoriedade de sua instituição.

7/8/2018

 

Introdução

O imposto sobre grandes fortunas é uma das pautas capitais das esquerdas contemporâneas. No campo dos debates teórico-políticos o tema foi revigorado pela edição do bestseller internacional do economista francês Thomas Piketty, "O Capital no Século XXI", lançado em 2013. Na obra, o autor defende abertamente a instituição desta modalidade de tributação como forma de mitigar a concentração de riquezas no planeta. Um imposto mundial sobre grandes fortunas. Nas eleições de 2014, diversos partidos de esquerda, como o PSOL e o PSTU, reacenderam o debate na seara das discussões político-eleitorais no país.

No mundo, em 2012, sob o governo do socialista François Hollande, o parlamento francês aprovou a uma alíquota de 75% sobre os altos rendimentos, causando grande reação contrária por parte très riches franceses, simbolizada pela indignação pública do ator milionário Gerard Depardieu, ao declarar sua decisão de renunciar à cidadania francesa para fugir, proteger seu patrimônio de um alegado efeito confiscatório do tributo, o que de fato fez. Não durou muito na França o histórico imposto sobre grandes fortunas, ou "Imposto de Solidariedade Sobre a Fortuna", suprimido pelo atual presidente, Emmanuel Macron, em 2017, gerando uma renúncia de receita de 4 bilhões de euros, e atiçando a indignação do próprio Thomas Piketty, que classificou a revogação do imposto de "um erro moral econômico e histórico".

No Brasil, a pauta da instituição do imposto sobre grandes fortunas continua em voga e é atualíssima. Recentemente, o pré-candidato à Presidência da República nacional-desenvolvimentista do PDT deixou claro que a taxação de riquezas faz parte, possivelmente, de seu projeto de governo, declarando que o "Brasil tem o mecanismo mais selvagem do mundo para concentrar renda. E não é o lassaiz fair que vai resolver." Desde a primeira proposta de instituição do imposto sobre grandes fortunas, previsto no art. 153, VII, da Constituição Federal, inúmeros projetos de Lei Complementar para implementá-lo se sucederam. O primeiro veio já em 1989, por iniciativa do então senador Fernando Henrique Cardoso. Depois seguiram-se diversos, até o mais recente, de iniciativa da senadora do PC do B, Vanessa Graziotin (PLC 137/2017).

O Supremo Tribunal Federal também já teve a oportunidade de se manifestar sobre a instituição do imposto em Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 31), proposta pelo governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B) mas não entrou no mérito da questão, recusando a ação sob o argumento de ausência de legitimidade ativa do autor.

A favor do imposto, seus proponentes pretendem que o tributo seja um mecanismo de diminuição das desigualdades sociais, distribuição de renda, criação de receita para a aplicação precípua na prestação estatal dos serviços de maior relevância, especialmente a saúde e a educação.

As reações contrárias à instituição do imposto sobre grandes fortunas vem sempre de economistas e políticos de linhagem ortodoxa, ou liberal. Os argumentos contrários normalmente são de ordem macroeconômica como a fuga de capitais, redução do investimento e da poupança, etc. Afirmam ainda que o imposto além de ter um impacto macroeconômico negativo sobre a economia, não alcançaria os objetivos perseguidos pela esquerda, pois a arrecadação seria diminuta. Seria inéfica, portanto.

 

Origens históricas.

O argumento finalístico em favor do imposto sobre grandes fortunas é, indiscutivelmente, a redução da desigualdade social e a distribuição de renda, e como tal, é, evidentemente, um pleito de esquerda, herdeiro do ideário socialista, se quisermos enquadrá-lo numa perspectiva histórica mais ampla. Tanto é assim que sua inserção em nossa Constituição Federal, durante a Constituinte de 1988, se deu pela iniciativa do socialista histórico Plínio de Arruda Sampaio. O imposto está lado a lado, em suas raízes histórico-culturais, com outras políticas próprias do ciclo do Estado Social e dos direitos de segunda geração.

Podemos dizer que o imposto sobre grandes fortunas é também uma das pautas políticas socialistas com base no conceito de socialismo de Norberto Bobbio, exposto em seu Dicionário Político, que, da desconcertante variedade de movimentos socialistas, extrai alguns denominadores comuns: "(a) forte limitação do direito de propriedade; (b) controle da classe trabalhadora sobre os principais recursos econômicos; (c) gestão pública que objetiva promover a igualdade social (e não somente jurídica ou política), através da intervenção dos poderes públicos.

Ora, o imposto sobre grandes fortunas é uma forma de intervenção dos poderes públicos sobre a propriedade privada com vistas à promoção da igualdade social ("e não somente jurídica ou política"). Daí o seu enquadramento lógico e histórico na tradição socialista.

Mais especificamente, ele é legatário do socialismo moderado, crítico do comunismo e do marxismo-leninismo, que tinham, por sua vez, como dogma, a abolição da propriedade privada por métodos revolucionários. Chamamos de socialismo moderado ao movimento político-cultural que se inicia com o revisionismo de Kautsky e Bernstein, na Alemanha, entre o final do século XIX e início do século XX, passa pela a fundação da Sociedade Fabiana na Inglaterra e da Social Democracia Alemã em 1890, e desembora nas atualíssimas propostas de resgate de um novo estado de bem-estar social, como a proposta por Piketty, na obra citada.

Muito embora, possamos dizer que o imposto sobre grandes fortunas deita razes na tradição de crítica ao capitalismo liberal, originária do século XIX, é só a partir da segunda metade do século XX que encontramos a positivação de suas primeiras experiências.

Na concretude da História, sua primeira aparição se deu apenas em 1981, quando o presidente socialista francês François Mitterand fez introduzir na Constituição Francesa o Impôt su les Grands Fortunes, abolido em 1986 por um parlamento conservador, e restitído à vigência, com outro nome, Impôt de Solidarité Sur La Fortune, em 1988. Como afirmamos, o governo de François Hollande, em 2012, buscou radicalizar a arrecadação do imposto, estipulando alíquotas que chegavam a 75%, causando a reação da corte suprema da França que declarou inconstitucional uma alíquota acima de 50% para o imposto. Por fim, o atual presidente gaulês promoveu a sua abolição. A experiência francesa foi imitada por quase todos os países da Europa Ocidental, com a exceção de Bélgica, Portugal e Reino Unido, mas tal como em França, o imposto foi sendo abolido em todos os países que o adotaram: na Itália, em 1995; na Alemanha, em 1997; na Holanda, em 2001; e na Suécia, em 2007, por exemplo.

 

Fundamentos do imposto sobre grandes fortunas na Teoria Política e na Filosofia do Direito.

De certo, o imposto sobre grandes fortunas encontrará a sua fundamentação jus-filosófica mais bem elabora e aprofundada em John Raws. Com afirma Michael Sandel, o neocontraturalista e neoutilitarista de Harvard, em sua Theory of Justice (1971), "embora não requeira uma distribuição de renda e riqueza, permite apenas as desigualdades sociais e econômicas que beneficiem os membros menos favorecidos de uma sociedade."

Mais especificamente, estamos a falar do segundo princípio ou norma - por assim dizer, hipotética fundamental - de sua sociedade ideal fundada a partir de uma abstrata "posição originária" (algo como o mítico estado de natureza de Rousseau) e de um "véu de ignorância" (apontado como impossível pela crítica comunitarista), a que o autor dá o nome de "princípio da diferença". Em suas próprias palavras: "(...) as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a cargos e acessíveis a todos."

Para Raws, portanto, nenhuma desigualdade social de renda se justifica se a sociedade não se beneficiar dela como um todo. Com ele concorda inteiramente Piketty, para quem a "desigualdade não é um problema em si, desde que seja fundada na 'utilidade comum' como proclama o art. primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão." O art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, por sinal, parece uma exata transcrição do segundo princípio de Justiça de John Raws e Pikety o invoca como normativo de Direito Internacional Público que dá respaldo jurídico a instituição de seu imposto planetário sobre grandes fortunas1.

Este postulado, parece-nos muito correto, e concordante com a ideia fundamental de "bem comum", já encontrada entre os gregos na Antiguidade e sistematizada por Aristóteles, em sua Política, como é cediço.

Contra Raws, contudo, se insurgem, no campo mais radical do liberalismo político, os libertarians, que têm como seus maiores expoentes os teóricos os norte-americanos Murray Rothbard, Robert Nozik e Hans Hermann Hoppe. Nozik é mais comentado entre os acadêmicos brasileiros nos cursos de Direito, Ciências Políticas ou Filosofia Política. Contudo, creio estar em Rothbard uma sistematização mais cristalina do libertarianismo, fundamentada na Escola Austríaca de Economia e no Jusnaturalismo. Em sua obra The Ethics of Liberty (1982), encontramos a sua ideia fundamental de sociedade justa. Rothbard, tal qual Raws, e, no passado, Locke, Hobbes, Rousseau, argumenta que, a "tarefa da Filosofia Política" é encontrar uma espécie de pedra angular, de ponto arquimédico, que sirva de base para toda ética política, e seja válida para qualquer sociedade, independente do tempo histórico ou da localização geográfica. Em seu caso concreto, o que Rothbard propõe é um retorno ao Jusnaturalismo. Tal como Raws propõe um retorno ao Contratualismo.

E quais seriam os princípios fundamentais desta ética? Podemos identificar dois: primeiro, o princípios das "trocas voluntárias" (voluntary exchange), depois, o da não-agressão (non-aggretion). Os dois princípios se apoiam na ideia de que todo homem tem direito de propriedade absoluto sobre si mesmo (self ownership) e que os frutos de seu trabalho sobre as matérias primas se tornam sua propriedade (ownership). Nesse ponto, a concepção do ética política de Rothbard coincide com o conceito de John Locke de propriedade. Rothbard seria assim um jusnaturalista neolockeano. Somente o direito à propriedade absoluta sobre si mesmo poderia ser universalizado, segundo ele, por isto ele deveria ser considerada o ponto arquimédico da Filosofia Política. Dele decorreriam todos os demais direitos. É com base nisso que Rothbard contesta o próprio fundamento de legitimidade do Estado que é o direito de império, ou de coerção, sobre os cidadãos. As trocas de bens materiais só podem ser voluntárias e praticadas no livre-mercado. Destarte, os tributos, pelo seu caráter fundamental de compulsoriedade, seriam inadmissíveis na sociedade ideal rothbardiana. Vem da filosofia de Rothbard e de seus próceres a ideia de que todo imposto é roubo.

A Teoria da Sociedade Justa de Rothbard é tão utópica quanto a ideia do "estado de natureza" de Rousseau. Motivo? É outro liberal, com os pés mais bem fincados no chão, que nos explica, o Professor de Chicago Milton Friendman:

"A necessidade de atuação do governo para o exercício dessas funções [garantir a obediências às leis, por exemplo] resulta da impossibilidade da liberdade absoluta. Por mais atraente que pareça a anarquia como filosofia, ela é impossível em um mundo de pessoas imperfeitas."

Friedman se aproxima mais de Hobbes, enquanto Rothbard está mais ao lado de Rousseau e Lock. Ele não propõe a dissolução do Estado nem como ideal utópico, e muito menos desdenha de seu papel "social", quando, por exemplo, propõe uma forma de distribuição de renda, ou de programa social, através de sua ideia de "imposto de renda negativo". Segundo ela, quem auferisse rendimentos abaixo do limite de isenção, teria direito a um crédito, em dinheiro, do Estado. Trata-se de uma proposta de política de "renda mínima" de um autor liberal!

Contudo, Friedman crê que a distribuição de renda através da tributação é inerentemente injusta, baseando-se não só no que poderíamos chamar de "princípio da meritocracia" ("a cada um de acordo com o que produz, por suas qualificações e por seus instrumentos"), mas também no "princípio da não-coerção", que vedaria a intervenção sobre a vontade do indivíduo de dispor livremente de sua liberdade e de sua propriedade. Podemos dizer que, em Friedman o "princípio da não-coerção" tem maior peso que o "princípio da meritocracia" porque o autor reconhece a crítica de muitos autores comunitaristas, como Michael Sandel, de que, muitas vezes, a riqueza não é fruto do trabalho, do mérito e do esforço, mas da sorte ou mesmo da inércia (caso de heranças):

"Grande parte da diferença de status, de posição ou de riqueza pode ser encarada como produto da chance [sorte]. A pessoa trabalhadora e parcimoniosa deve ser tida como'merecedora`; esses atributos, entretanto, resultam em muito dos genes que teve a felicidade (ou a infelicidade?) de herdar.”

Por outro lado, ele ressalta que a imposição de impostos agride o ideal de não-coerção:

"Poderíamos nós, justificadamente, atuar como juízes de nossas próprias causas, decidir por conta própria quando teríamos o direito de usar a força para conseguir o que consideramos nos ser devido por outro?"

Sendo assim, Milton Friedman negaria a instituição do imposto sobre grandes fortunas não porque, em todo o caso, feriria o "princípio da meritocracia" (uma vez que nem toda fortuna advém do mérito, ele reconhece), mas sim em virtude do "princípio da não-coerção". E ele diz isso claramente em "Capitalismo e Liberdade":

"Como liberal, considero difícil encontrar qualquer justificativa para a tributação progressiva, apenas para fins de distribuição de renda. Esse me parece um caso claro de usar a coerção para tirar de alguns e dar para outros, o que conflita com a liberdade individual."

Pode-se invocar ainda como backgrounds político-filosóficos para o imposto sobre grandes fortunas, no campo da Filosofia e da Teoria Política, além do neocontratualismo de Raws, as linhas de pensamento marxista e comunitarista.

Dentro da tradição marxista, seus principais expoentes atuais não creem mais na inevitabilidade apocalíptica da "acumulação infinita de capital" preconizada por Karl Marx, que culminaria inexoravelmente na revolução do proletariado, na abolição da propriedade privada, e no desaparecimento do Estado, concebido por ele como superestrutura jurídica da classe dominante na luta de classes. A defesa de Piketty de impostos progressivos sobre as grandes fortunas, mais sóbria, se baseia, primeiramente, nos pressupostos fático-históricos, apontados por ele, de que, no capitalismo liberal, a tendência à concentração de renda é inevitável e crescente. Em segundo lugar, a defesa de Piketty coloca o fundamento jus-filosófico, ou ético, de que a concentração de renda é intrinsecamente injusta por não servir aos ideais do "bem comum" e da "meritocracia". Nisto, ele se aproxima da Teoria da Justiça de Raws, ao passo que se distancia de Marx no que diz respeito ao apreço ao sistema democrático intervencionista, o velho welfare state.

Já o comunitarismo (termo rejeitado por seus próprios próceres tais como Michael Sandel, Michael Walzer ou John Taylor), a seu turno, conflita com o liberalismo econômico na medida em que afirma que grande parte do mérito do indivíduo na constituição de seu patrimônio advém de fatores herdados da comunidade em que está inserido. Para os comunitaristas, os indivíduos tem obrigação de solidariedade para com a comunidade ou sociedade da qual vieram, pois, se constituíram um patrimônio (quando não o receberam por meio da simples herança de pai para filho), não o fizeram meramente à custa de seus próprios esforços, mas graças também à educação recebida, ao sistema de saúde, aos valores herdados, e até mesmo aos seus genes. O comunitarismo rejeita a ideia do indivíduo como átomo social autossuficiente: ele é debitário de uma herança comunitária, e, portanto, tem o dever de ser justo, retribuindo com sua parte. A obrigação de pagar impostos não é mais do que uma consequência lógica destas premissas comunitaristas. E quanto maior a fortuna, maior a obrigação de retribuir.

Em apertado resumo, podemos dizer que são estas as linhas de pensamento político mais profundas favoráveis ou contrárias ao imposto sobre grandes fortunas.

 

Discussões pragmáticas político-econômicas sobre o imposto.

A discussão pragmática a respeito do imposto sobre grandes fortunas pretende responder a perguntas tais como: (1) sua imposição atingirá seus objetivos teleológicos de distribuição de renda, de fato? (2) o imposto pode ser inóquo em reduzir as desigualdades sociais e a pobreza? (3) sua adoção pode resultar num efeitos econômicos colaterais deletérios como redução do PIB, fuga de capitais, desemprego, inflação?

São perguntas que dizem respeito antes às Ciências Econômicas que à Teoria Política ou ao Direito, mas que tem grande importância para a questão da obrigatoriedade constitucional do imposto, como pretendemos demonstrar.

A primeira grande crítica à instituição de impostos sobre grandes fortunas é o que podemos chamar de "fuga de capitais". Conforme anotam Catarino e Cavalcanti, "as grandes fortunas são avessas a ambientes tributários de alta tributação, e tendem a deslocar-se facilmente, sobretudo se assentarem em ativos financeiros." O natural é que os investidores não empreguem seus recursos em países com alta tributação de fortuna. Com a "fuga de capitais", as companhias ficam descapitalizadas, investem menos em expansão da produtividade, empregando menos e deixando de contribuir mais com o fisco. Argumentos semelhantes são utilizados contra a revogação da isenção de impostos sobre lucros e dividendos de pessoas físicas e jurídicas, garantido pelo art. 10, caput, da lei 9.249/95, do Governo Fernando Henrique Cardoso.

O resultado prático da taxação de grandes fortunas pode ser redução do PIB, baixa de empregos e, consequentemente, "baixa arrecadação", situações que tornam o imposto se não inóquo, deletério.

Ex-Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o economista Bernardo Appy, recentemente, usou o mesmo argumento da ineficácia do imposto sobre grandes fortunas: "imposto sobre grandes fortunas não funciona, essa é a experiência mundial. Os donos das grandes fortunas vão tirar o dinheiro do Brasil e não vamos arrecadar".

Um outro argumento contrário à instituição do imposto é o da redução da poupança, tendo em vista que, estudos tem demonstrado, que são as famílias ricas que mais poupam, garantindo o crédito para os menos afortunados. O imposto de renda sobre grandes fortunas, então, teria efeitos deletérios sobre a poupança e o crédito, afetando os mais pobres, não contribuindo, portanto, para a diminuição da pobreza.

Por outro lado, o mestre em Finanças Públicas Amir Kahir é um enfático defensor do imposto sobre grandes fortunas. Combate a ideia de que o imposto geraria baixa tributação. Calcula que, mesmo recaindo sobre uma parcela de 1% a 2% da população, o imposto, com uma alíquota de apenas 1% traria uma arrecadação de 100 bilhões de reais por ano. Quanto à "fuga de capitais", é comum entre os defensores do wealth tax invocar a proposta de Piketty de um imposto mundial.

Não é objetivo deste artigo discutir a eficácia prática do imposto sobre grandes fortunas e chegar a alguma conclusão, ele limita-se a apresentar a contenda pragmática a respeito de sua instituição, uma vez que, como demonstraremos no próximo item, ela é de especial relevância para a discussão da constitucionalidade dos impostos à luz dos princípios constitucionais.

 

Análise da obrigatoriedade constitucional do imposto sobre grandes fortunas.

Nas seções precedentes demonstramos as origens históricas do imposto sobre grandes fortunas, seus fundamentos jus-filosóficos ou teórico-políticos, bem como as críticas a ele nestas searas, e fizemos uma breve resenha sobre as discussões pragmáticas de sua instituição. Isto porque, segundo cremos, o imposto sobre grandes fortunas pode e deve ser discutido em três níveis: o teórico, ético, ou jus-filosófico; o pragmático ou político-econômico; e o jurídico. Quanto aos dois primeiros níveis apenas expomos as discussões, sem pretender chegar a conclusões, apenas esclarecer a contenda. Neste tópico, o propriamente jurídico, mais especificamente constitucional, pretendemos chegar a uma conclusão sobre a obrigatoriedade da instituição do tributo. O tema tem relevância, pois como demonstramos na introdução, o Supremo Tribunal Federal já foi instado a se manifestar sobre a questão, e certamente ainda terá de encará-la novamente.

À primeira vista, a questão estaria dirimida pela regra prevista no art. 11 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) que estatui: "Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal, a instituição, previsão, e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação."

A partir de uma exegese literal não restaria dúvidas de que estaríamos diante de uma imposição ao ente da Federação responsável pela instituição, previsão e efetiva arrecadação do Imposto Sobre Grandes Fortunas, qual seja a União (CF, art. 153, VII). Isto porque a Lei de Responsabilidade Fiscal não admite exceções ao mandamento de instituição pelo ente Federativo. Ele refere-se a "todos" os impostos da competência do ente federativo.

Ocorre que a constitucionalidade do art. 11 da Lei 101/2000 não é inquestionável. Na doutrina tributarista, sempre dominou o entendimento de que a instituição de tributos previstos expressamente na Constituição Federal tem caráter facultativo, como afirma, ex. gr., o eminente tributarista Roque Antônio Carraza:

"Sendo o exercício da competência tributária uma prerrogativa legislativa e inexistindo mecanismos de ordem constitucional que obriguem o legislativo a criar tributos, a facultativade é ilação necessária a que se chega a partir da interpretação sistemática do texto constitucional e, por essa razão, não se pode afirmar, em relação à competência tributária, que a inércia do legislador caracterizaria uma omissão inconstitucional."

Trata-se de entendimento majoritário, dentre os doutrinadores, a facultatividade da instituição de tributos em geral. No cerne deste entendimento está a interpretação literal do art. 145 da Constituição Federal que prescreve: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos(...)"[grifo nosso].

Assim, do ponto de vista constitucional, a regra do art. 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal deveria ser interpretada como uma orientação facultativa dirigida ao legislador complementar.

Porém, preceitos elementares de hermenêutica constitucional nos permitem afirmar que a interpretação literal ou gramatical do art. 145, caput, da Constituição Federal é insuficiente. Despiciendo demonstrar que a jurisprudência dos tribunais - em especial jurisprudência de jurisdição constitucional - não se limita à interpretação literal. Um caso emblemático, dentre tantos, é aquele em que a Corte Suprema, reconheceu a constitucionalidade das uniões estáveis homoafetivas, a despeito da leitura literal do art. 226, § 3º.

O velho brocardo de hermenêutica in claris cessat interpretatio, no Direito moderno, perdeu a sua força. Ademais, conforme afirma Roberto Barroso, os elementos da interpretação clássica derivados da obra de Savigny, o literal ou gramatical, o histórica, o sistemática e o teleológico, jamais podem ser tomados em separado.

Some-se a isto, a constatação já tantas vezes ressaltada pelos hermeneutas de que o verbo "poder" nos textos legais é dúbio. Trata-se de "poder" no sentido de facultatividade de uma ação, ou de poder-dever?

A combinação do art. 153, VII, que estabelece a competência da União para instituir impostos sobre grandes fortunas com o art. 145, caput, portanto, não resolve a dúvida quanto à obrigatoriedade da instituição do imposto.

Diante destas observações, podemos concluir que a aplicação do art. 145 da Carta Magna não esclarece definitivamente se a instituição do imposto sobre grandes fortunas é inquestionável. Estamos diante de um caso difícil.

E, no atual estado da hermenêutica de jurisdição constitucional, os autores demandam que a resolução de casos difíceis se faça através da interpretação principiológica das regras. Atualmente é indubitável a normatividade dos princípios.

A nossa proposta, pois, é que a questão seja vista à luz dos princípios constitucionais, com vistas ao ideal de "integridade" do Direito, conceito tão caro ao onipresente Dworkin.

Cumpre então responder às seguintes questões: que princípios constitucionais dão esteio à instituição do imposto sobre grandes fortunas? Por outro lado, que outros princípios são contrários a esta instituição?

Todas as proposições legislativas sobre o imposto sobre grandes fortunas e mesmo a ação de inconstitucionalidade por omissão citada na introdução, além da doutrina, parecem unânimes em invocar as normas principiológicas dos "objetivos fundamentais da República" para fundamentar a instituição do imposto (CF, art. 3º, I a IV). Dentre estes objetivos fundamentais, para a defesa do wealth tax no Brasil, destacam-se os princípios ou "mandados de otimização" de (1) se "constituir uma sociedade livre, justa, e fraterna" e (2) "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais".

Em tese, o imposto sobre grandes fortunas seria um instrumento de "justiça social" ("constituição de uma sociedade justa e fraterna") e de "erradicação da pobreza" e "diminuição das desigualdades sociais".

Os princípios são, conforme o magistério de Alexy, "mandados de otimização". Os governantes da República devem otimizar a redução das desigualdades sociais, distribuir renda na maior medida possível. Sendo o imposto sobre grandes fortunas um dos possíveis mecanismos de distribuição de renda, de redução das desigualdades sociais, a princípio, então, ele deveria ser adotado, devendo-se afastar a facultatividade de sua instituição.

Ocorre que sua instituição pode entrar em colisão com outros princípios constitucionais. E não há dúvidas de que a norma-regra do art. 153, VI , da CF colide com alguns outros princípios constitucionais. Quais especificamente?

De forma potencial, o imposto sobre grandes fortunas conflitaria com o princípio da "livre iniciativa econômica" (art. 1º, IV, da CF). Isto porque taxar grandes fortunas impossibilita que o indivíduo, enquanto agente econômico, aplique suas rendas como bem lhe entender, escorado no princípio da livre iniciativa. Potencialmente, o imposto sobre grandes fortunas também conflita com o princípio de vedação de confisco tributário, haja vista que, normalmente, é aplicado em alíquotas altíssimas, tal como ocorreu no exemplo francês.

Diante da constatação de que a questão da obrigatoriedade da instituição do imposto sobre grandes fortunas é um hard case, e de que princípios constitucionais que o favorece e desfavorecem entram em colisão, deve necessariamente entrar em cena a técnica alexyana da ponderação de princípios.

Destarte, a solução para a questão da obrigatoriedade da adoção do imposto sobre grandes fortunas deve ser colocada nos seguintes termos: qual deve ter precedência numa proposta de criação de imposto sobre grandes fortunas: o princípio da redução das desigualdades sociais ou o princípio da livre iniciativa?

A resposta deveria ser, segundo a técnica da ponderação a seguinte: se o imposto promove muito (otimiza) a redução das desigualdades sem afetar, de forma considerável, a livre iniciativa, deveria ser adotado. Se a livre iniciativa for gravemente afetada, sem muito ganho (otimização) para a redução das desigualdades sociais, então o imposto deve ser descartado.

Eis como o legislador complementar deveria agir, sob o império da constituição: ponderando seus princípios na criação de uma lei numa conjuntura concreta.

Mas caso não o faça, sendo a lide levada à jurisdição constitucional do STF, não resta dúvidas de que este deva ser o procedimento hermenêutico a ser empregado pela corte para resolver o caso.

Ocorre que, somente as circunstâncias econômicas concretas, após os devidos estudos e debates, podem dizer se a adoção do imposto é uma forma eficaz de contribuir para otimizar o mandamento constitucional de diminuir as desigualdades sociais e outros mandamentos que dão esteio ao tributo, sem afetar tanto os princípios que são contrários à instituição do imposto, como o princípio da livre iniciativa.

As circunstâncias econômicas estruturais e conjunturais deverão ser avaliadas. E a quem cabe fazer essa avaliação? Primeiramente, ao legislador da União. Somente a partir de debates e discursos racionais (no sentido que Habbermas dá ao discurso racional), baseados em números, estudos, estatísticas, pode-se concluir se o imposto sobre grandes fortunas atenderá às suas finalidades principiológicas ou não. E cabe justamente aos Poderes Executivo e Legislativo, não só por serem titulares constitucionais do processo legislativo (CF, arts. 59, caput, e seguintes), mas porque dispõem de maior aparelhamento técnico, material e humana, a competência para fazer tal avaliação.

Mas caso a Corte Constitucional fosse instada a se manifestar, diante do princípio da inafastabilidade de jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), como de fato já o foi, sobre a constitucionalidade do imposto sobre grandes fortunas, somente poderia dar um parecer favorável ou desfavorável a esta instituição levando em consideração a avaliação técnica da questão, que envolve estudos, pareceres, estatísticas, etc., derivadas das ciências econômicas e sociais. Trata-se de um caso em que o "consequencialismo ou pragmatismo jurídico" deve ser levado em consideração para uma decisão "deontológica" a respeito da obrigatoriedade do imposto sobre grandes fortunas. Este caso concreto parece nos mostrar que o conflito entre uma hermenêutica consequencialista do Direito e uma hermenêutica deontológica é um falso conflito. Melhor seria encará-las como hermenêuticas complementares.

Em conclusão, não existe resposta a priori sobre a constitucionalidade em geral do imposto sobre grandes fortunas, nem sobre a obrigatoriedade de sua instituição. Não se pode chegar a uma conclusão sem a análise do projeto de lei concreto e das circunstâncias político-econômicas. Pois é a análise delas que permite ao julgado dizer se o imposto realiza os princípios constitucionais que lhe dão esteio (como o princípio da "justiça social") sem afetar outros princípios albergados pela Carta Magna (o "princípio da livre iniciativa", por exemplo.

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1 - Diz o art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1989, ainda vigente na Constituição Fededral da França: "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum." A semelhança com o primeiro item segundo princípio de Justiça de John Raws, exposto em sua clássica "Teoria da Justiça" e citado neste artigo é evidente.

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*Vinícius de Oliveira é analista judiciário do TRE-MG.

 

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