Migalhas de Peso

Poder de Polícia e Direito Ambiental

O Poder de Polícia Administrativo somente restaria concretizado quando do exercício de ações preventivas da Administração Pública ou também estaria materializado quando do seu agir repressivo (a posteriori)?

27/7/2018

Desde que concebido o conceito de Estado1, com ele surgiu a ideia e a necessidade de um poder superior que pudesse regrar a coletividade em busca de um bem-estar comum. Tal poder mais tarde viria a ser conhecido como Poder de Polícia.

No ordenamento nacional o Poder de Polícia encontra-se positivado no artigo 78 do CTN2 . Ao lado da descrição legal, podemos afirmar existir, praticamente, consenso doutrinário e jurisprudencial quanto ao seu conceito, no sentido de tratar-se do poder que exerce a Administração Pública sobre todas às pessoas, atividades e bens que afetam ou possam afetar a coletividade3, de forma a impor a supremacia do interesse público sobre o privado.

Quanto às suas características, é dotado o Poder de Polícia de (i) discricionariedade, na medida em que a Administração age de acordo com a oportunidade e conveniência em relação ao caso concreto, (ii) auto-executoriedade, na medida em que a Administração atua, decide e executa seu poder diretamente e independente da autorização de terceiros e, (iii) coercibilidade, na medida em que tem a possibilidade de aplicar sanções por descumprimento das regras.

Diferentemente, Marcelo Dawalibi entende que são apenas dois os atributos do Poder de Polícia, quais sejam, a "coercibilidade" e a "auto-executoriedade" pois, "a discricionariedade deve passar ao largo do exercício do Poder de Polícia, cuja obrigatoriedade é indiscutível", vez que, segundo o autor, "O que se deve debater é, tão-somente, a discricionariedade quanto atributo do ato de polícia. E, neste tópico, não há dúvida de que os atos de polícia podem ser tanto discricionários quanto vinculados, conforme a lei os regule4".

Na doutrina há quem diferencie entre Poder de Polícia Administrativa e Poder de Polícia Judiciária, sob o argumento de que o principal elemento diferenciador estaria no fato de que, em tese, o primeiro teria natureza preventiva, enquanto que o segundo seria de natureza eminentemente repressiva5.

Diante disto, surge a questão: o Poder de Polícia Administrativo somente restaria concretizado quando do exercício de ações preventivas da Administração Pública ou também estaria materializado quando do seu agir repressivo (a posteriori)?

Preferimos adotar entendimento no sentido de que a distinção está, em verdade, no objeto, na natureza impositiva (não facultativa)6 do seu exercício, ou seja, na atuação do órgão competente e não no seu tempo, pouco importando tratar-se de fiscalização preventiva ou repressiva, valendo notar se houve ou não desrespeito à norma7.

Outrossim, cabe ressaltar também que não importa a existência ou não de dano para justificar o exercício do Poder de Polícia Administrativo, bastando para tanto o desrespeito a regra, de forma que não se deve confundir sanção administrativa com a possibilidade de eventual responsabilização civil ou penal do infrator. Assim, entendemos pela possibilidade do exercício do Poder de Polícia Administrativo quer de forma preventiva, quer de forma repressiva.

 

Sobre tal distinção, esclarecedora é a lição de Willian Freire ao dispor que "Com o objetivo de restringir e punir as condutas que violem o ordenamento jurídico, o Estado atua através de suas polícias administrativa e judiciária. A primeira tem competência quando o ilícito não ultrapassa a esfera administrativa e age através de seus órgãos (IBAMA, órgãos ambientais estaduais e municipais, polícia florestal, mediante convênios); a segunda atua em casos de ilícitos que tenham tipificação penal.8"

Por outro lado, não existem dúvidas quanto ao fato de que, para o exercício de um ou de outro Poder de Polícia, necessário se faz a observação dos princípios e da legislação aplicável9, sempre em respeito ao princípio constitucional da reserva legal10.

Traçados alguns pontos conceituais preliminares, passemos então a seara do direito ambiental, na qual, segundo Paulo Affonso Leme Machado, o Poder de Polícia Ambiental é "a atividade da Administração Pública que limita ou disciplina direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato em razão de interesse\público concernente à saúde da população, à conservação dos ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividade econômica ou de outras atividades dependentes de concessão, autorização/premissão ou licença do Poder Público de cujas atividades possam decorrer poluição ou agressão à natureza11".

Especificamente no campo do direito ambiental12, questão controvertida está ancorada no que diz respeito à distribuição da competência para o exercício do Poder de Polícia Administrativa.

O artigo 23 e seus incisos13 da CF/88, na forma em que foi redigido, estabelece completa e verdadeira descentralização administrativa14, de tal sorte que um ente pode atuar na deficiência do outro, suprindo, muitas vezes, a omissão e falta de eficiência do outro (competência comum).

Isto porque, por força de norma constitucional, tanto a União, como os Estados e o Distrito Federal possuem competência concorrente15 para legislar sobre meio ambiente, restando aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local, mas de forma suplementar a legislação federal e estadual no que couber16.

Assim, estão todos os entes federativos autorizados a agir em defesa do meio ambiente, posto que, pelas disposições constitucionais, estão legitimados a agir e devem, em respeito ao princípio da eficiência da administração17 e do dever de tutelar o meio ambiente18, agir e exercer o Poder de Polícia de forma inteligente, integral e integrada19.

Assim, outra questão interessante a ser debatida diz respeito quanto a possibilidade do exercício do Poder de Polícia Administrativa Ambiental na restrição ou na aplicação de sanções entre os entes federativos (da Administração direta ou indireta), ainda que de diferentes esferas de poder (federal, estadual ou municipal)20.

Acerca do assunto, Paulo Affonso Leme Machado preleciona que: "É correntio encontrar-se nos doutrinadores a afirmação de que o poder de polícia destina-se a limitar ou regrar os direitos individuais. Esta questão é pacifica. Contudo, deve ser colocada a questão do exercício do poder de polícia disciplinando e sancionando a própria pessoa de Direito Público e o ente paraestatal. (...). Do ponto de vista constitucional não vejo obstáculo ao exercício do poder de polícia ambiental realizado pela Administração diretamente à Administração indireta. (...). Não haverá quebra de autonomia constitucional se um órgão federal agir contra um órgão estadual ou este contra aquele, desde que tenha sua atuação respaldada na legislação: por exemplo, um organismo ambiental estadual pode multar uma empresa pública federal ou aprender-lhe instrumentos"21.

Portanto, denota-se que o Poder de Polícia Administrativo Ambiental apresenta-se como mais um dos instrumentos públicos a serviço da proteção ao meio ambiente. Neste sentido, dever ser adequadamente utilizado, especialmente, na imposição do interesse coletivo sobre o interesse privado, inclusive para coibir conduta dos próprios entes públicos, seja qual for sua natureza ou hierarquia, tudo em homenagem ao bem-estar da coletividade, da presente e das futuras gerações.

Neste sentido Marcelo Dawalibi afirma que "os atos de polícia em matéria ambiental são instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente" e, como exemplo cita aqueles arrolados no artigo 9º da lei 6938/81 como o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental (inciso I); zoneamento ambiental (inciso II); avaliação de impactos, licenciamento ambiental e a respectiva revisão das atividades potencialmente poluidoras, entre outros mais22.

Ainda cumpre assinalar sobre a responsabilidade pessoal dos agentes públicos que, diante do Poder de Polícia, deixarem de agir, de formas omissiva ou comissiva, deverão responder por infrações administrativas previstas na Lei dos Crimes Ambientais23, além de responder por improbidade administrativa24.

Isto posto, resumidamente, o Poder de Polícia encontra-se positivado no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 78 do Código Tributário Nacional e, na doutrina é descrito como sendo o poder que exerce a Administração Pública sobre todos os cidadãos, atividades e bens de forma a impor a supremacia do interesse público sobre o privado em prol do bem comum dinate da discricionariedade, da auto-executoriedade e da coercibilidade que possui, mostrando-se, na seara ambiental, como mais um instrumento público a serviço da proteção do meio ambiente na exata medida em que confere à Administração o poder de fiscalizar, bem como o de regular parâmetros normativos25 que visem garantir a qualidade ambiental, o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

_________

1 - Dalmo de Abreu Dallari conceitua o Estado como sendo "a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território". Para o autor, "Nesse conceito se acham presentes todos os elementos que compõem o estado, e só esses elementos. A noção de poder está implícita na de soberania, que, no entanto, é referida como característica da própria ordem jurídica. A politicidade do Estado é afirmada na referência expressa ao bem comum, com a vinculação deste a um certo povo e, finalmente, a territorialidade, limitadora da ação jurídica e política do estado, está presente na menção a determinado território" (Elementos de Teoria Geral do Estado, 18ª ed., São Paulo : Saraiva, p. 101).

 

 

2 - Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

 

3 - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 24ª ed., São Paulo : Malheiros, p. 114.

 

4 - DAWALIBI. Marcelo, In O poder de polícia em matéria ambiental, São Paulo : Revista dos Tribunais, RDA, Ano 4, nº 14, p. 94.

 

5 - Neste sentido expõe Toshio Mukai: "a polícia judiciária aparece depois de cometida a infração, age a posteriori, investiga fatos já consumados, enquanto a polícia administrativa atua a priori, tentando evitar que os delitos sejam cometidos". (Direito Ambiental Sistematizado, 4ª ed., São Paulo : Forense Universitária, p. 46).

 

6 - DAWALIBI. Marcelo, O poder de polícia em matéria ambiental, São Paulo : Revista dos Tribunais, RDA, Ano 4, nº 14, p. 91

 

7 - Também esclarecedoras são as lições de Édis Milaré sobre tal questão quando assevera que "O poder de polícia administrativa destingue-se de outras formas de poder de polícia, tanto em sua natureza quanto em seus métodos. Não é exercido por policiais profissionais, voltados preferencialmente para a manutenção da órdem pública, mas por porofissionais técnicos adrede capacitados que se ocupam de aspectos específicos do bem comum. No caso, estão em jogo a defesa e a preservação do meio ambiente, assim como a manutenção da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico essencial – tudo em função do patrimônio ambiental (que é público) e do desenvolvimento sustentável (que é o interesse da sociedade). Entretanto, há circunstâncias em que o poder de polícia administrativa ambiental pode e deve ser reforçado por outras modalidades de polícia. Aqui se enquadram as polícias Militares Ambientais, que agem por delegação expressa do Poder Executivo competente e, ademais, segundo os objetivos e métodos de polícia administrativa". (Direito do Ambiente. 3ª ed., São Paulo : Revista dos Tribunais, p. 679/680).

 

8 - In, Direito Ambiental Brasileiro, 2ª ed., Rio de Janeiro : Aide, 2ª edição, p.63.

 

9 – "O ato de inspecionar e fiscalizar é típico do exercício do poder de polícia da Administração Pública e caracteriza, segundo o art. 145, II da CF, fato gerador de taxa, razão pela qual é ineficaz a portaria editada pelo Ministério do Meio Ambiente que fixa preços relativos a inspeções feitas pelo Ibama nas exportações e importações da indústria pesqueira, sem a observância da legalidade estrita e da anterioridade". (ADIn 2.247-4/DF – Tribunal Pleno – STF – j. 13.09.2000 – rel. Min. Ilmar Galvão – DJU 10.11.2000).

 

10 - Artigo 5º, II da CF/88, "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;"

 

11 - In, Direito Ambiental Brasileiro, 21ª ed., São Paulo : Malheiros, p. 385.

 

12 - "Poder de Polícia, em outras palavras, é a faculdade que tem a administração pública de limitar e disciplinar direito, interesse e liberdade, procurando regular condutas no seio da sociedade para evitar abusos por parte do poder do estado. O poder de polícia é amplo e abrange a proteção à moral e aos bons costumes, a preservação da saúde, o controle de publicações, a segurança das construções e dos transportes, a segurança nacional e especialmente a proteção do meio ambiente, através de seus órgãos competentes. (...). Assim, o poder de polícia, na esfera ambiental, é exercido pelos órgãos do SISNAMA". (SIRVINSKAS. Luis Paulo, Manual de Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo : Saraiva. p. 312).

 

13 - Notadamente para a questão ambiental, os incisos III, IV, VI e VI, muito embora há ligação direta ou indireta com todos os demais.

 

14 - Trata-se de competência comum.

 

15 - Art. 24, caput da CF/88

 

16 - Art. 30, I e II da CF/88

 

17 - Art. 37, caput da CF/88

 

18 - Art. 225, caput da CF/88

 

19 - Cabe notar que a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/81, em seu artigo 6º, na constituição do SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente, integrou os órgãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsável pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, reforçando a tese adotada da ação inteligente, integral e integrada de todos componentes do Poder Público.

 

 

20 - Importante ressaltar que a Constituição faz tão somente a previsão da imunidade tributária entre os entes federativos, cujo instituto não se estende, não se aplica a aplicação de sanções, a exemplo de multas (punição).

 

21 - In, Direito Ambiental Brasileiro, 21ª ed., São Paulo : Malheiros, p. 387/388.

22 - Op. Cit., p. 97.

 

23 - Art. 70 da lei 9.605/98

 

24 - Art. 11, II da lei 8.429/98

25 - "Uma das principais atribuições do Direito Ambiental é a de fixar parâmetros normativos capazes de estabelecer um patamar mínimo de salubridade ambiental. A obediência e o respeito de tais patamares é o que significa a ordem pública do meio ambiente. A ordem publica do meio ambiente é o cumprimento e a manutenção de tais padrões. Se os níveis ambientais legalmente estabelecidos estiverem sendo observados, a ordem pública ambiental estará sendo cumprida. A polícia do meio ambiente, no intuito de assegurar a obediência às normas ambientais, poderá agir preventivamente ou repressivamente. A atuação preventiva ou repressiva faz-se mediante a utilização de medidas de polícia ambiental." (ANTUES. Paulo de Bessa, Direito Ambiental. 6ª ed. Rio de Janeiro : Lúmen Júris. p 126).}

__________

*Rodrigo Jorge Moraes é advogado. Mestre e Doutorando pela PUC-SP. Professor de Direito Ambiental do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental da PUC/SP – COGEAE. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Processual Ambiental do IDP-SP. Especialista em direito processual civil pela PUC/SP - COGEAE. Especialista e direito ambiental pela USP – CEDA 10. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB. Diretor do MDA – Movimento de Defesa da Advocacia.

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