No último lustro, face à heterodoxia que dominou pequena, porém, robusta, parte do Poder Judiciário e do MP, está a se considerar a possibilidade de o magistrado responsável pela execução provisória de pena privativa liberdade de cidadãos intramuros com o beneplácito às avessas do somatório de penas, mesmo em havendo apenas duas prisões cautelares, e isso pouco tem sido deblaterado por juristas, advogados e/ou operadores do Direito de modo geral, seja em razão do desconhecimento das regras atinentes à Lei de Execuções Penais, seja ao calar do próprio segregado intramuros, cuja voz não ecoa na "sociedade civil organizada", já por demais assoberbada com seus televisores e suas rotinas mundanas de rede.
Quando um magistrado decide pela unificação das penas, "em somatório", no atinente a títulos executivos oriundos de sentenças – ou acórdãos de colegiados - penais condenatórias sem trânsito em julgado, seguindo anseio, via de regra, do MP, tal decisum estaria a considerar, de duas, uma hipótese a seguir: 1) a existência de uma prisão provisória apenas a manter o Executado sob custódia; ou 2) título executivo penal definitivo.
Porém, o que está a ser verificado paulatinamente por poucos atentos a tal questão, é o somatório de penas de pessoas detidas em razão a dois decretos – ou mais! - de prisões cautelares (preventivas, em decorrência de sentenças condenatórias recorridas etc.)
Todavia, malgrado quem o revés pense e/ou o decida e/ou o incentive, tal compreensão não fere apenas e tão-somente as leis em vigor ou a Carta Maior - esta última lugubremente mais conhecida ultimamente como "televisor de cachorro", mormente nos últimos tempos -, mas até mesmo a lógica espaciotemporal pelo Eterno criada para nos testar.
Para melhor compreensão, imagine uma lide onde sobre um cidadão pairam duas prisões preventivas: uma decretada na primavera do ano de 2015, e outra, sem que fosse a anterior revogada ou cassada, mas serenamente mantida, decretada pela mesma Autoridade, durante o solstício de inverno de 2016.... A primeira, digamos, para salvaguardar o cumprimento de uma reclusão cominada em seis anos e número "X" de meses de reclusão; e a segunda, em sete cabalísticos anos exatos de reclusão. Para facilitar, reflita que, porventura, a mesma Autoridade que decretara a primeira prisão preventiva não estivesse satisfeita com seu próprio labor e, também tivesse optado por decretar – claro, a pedido do parquet... – a segunda prisão preventiva, cumprida esta dentro dos horrores de uma penitenciária de passos perdidos, para a "garantia da ordem pública".
Supõe-se, para melhor esclarecimento, que a segunda prisão cautelar tivesse sido decretada nitidamente para que se mantivesse um cidadão qualquer preso "cautelarmente", porém, de modo indefinido. Pois bem, além de teratologia prática, haveria a óbvia violação de inúmeros princípios e garantias constitucionais, dentre os quais 1) a intranscendência da pena (art. 5º, XLV), eis que, ao se manter desnecessariamente um cidadão preso, está toda sua família sendo penalizada por algo que nem sequer é definitivo e tampouco adequado, face a humilhações diversas, a pecha de ser parente de "bandido", revistas íntimas vexatórias, bloqueio de contas bancárias que deixam seus dependentes sem recursos, sofrimentos psicológicos etc.; 2) a individualização da pena (art. 5º, XLVI), pelo fato de que há até mesmo indevido espiar do processo de execução penal por uma dezena de cangaceiros rebeldes – ignorando dois espias contrários àquela dezena (vide Torá, Antigo Testamento, Zôhar etc. para maiores detalhes) -, eis que, ao se tornar detento duplo, deixou tal réu de ser cidadão jurisdicionado para ser número torturado de estatística débeis e perniciosas, como se houvesse um desesperado afã de convencer à população – leiga, evidentemente – de que o "combate a" qualquer coisa fosse uma escusa para a inobservância de quaisquer limites e parâmetros legais; 3) a proibição de penas desumanas, cruéis e infamantes (art. 5º, XLVIII), que dispensa maiores comentários; e 4) o princípio da inocência, imbricados que estão, ainda, à dignidade da pessoa humana, aos limites ius puniendi do Estado, à proporcionalidade, à intervenção mínima (nulla poena sine necessitate).
Não há que se falar, ademais, em aplicação da regra do somatório de penas quando estas não estão açambarcadas por decisões condenatórias transitadas em julgado, salvo se se desconsiderar não "apenas” os princípios sobreditos, como mandamentos de otimização da prestação jurisdicional, mas também as regras do arcabouço processual penal neste País ainda positivado, e, ao que se parece, não revogado implicitamente por concessionárias de radio e tele-difusão e/ou por diplomáticas redes "sociais", com seus cientistas de plantão.
Em recente tomada de decisão de remédio constitucional sobre isso, o ministro Félix Fischer, do STJ, pontifica não serem sentenças condenatórias normas que comutassem as prisões preventivas em natureza diversa, mesmo em havendo execução provisória. Esta se dá por segurança do Estado e do intramuros, despido que está do seu direito à liberdade por decisões não julgadas em último grau jurisdicional. Logo, repisa-se: o próprio STJ, através de relatoria do ministro Félix Fischer, deixa isso bem claro quando do julgamento do HC 83.001 – PR , in verbis: "Ora, tratando-se de prisão cautelar, fundada na necessidade, não existe propriamente o exaurimento de seu cumprimento (...) ou, em última análise, somente quando do trânsito em julgado, é que a prisão cautelar se converte em prisão para fins de cumprimento de pena."
Ademais, se se estivesse a subentender ser crível a aplicação das penas em somatória de imediato, ao contrário do que já bem explicitou o STJ, também ter-se-ia de se subentender que está a se falar de penas em execuções definitivas, e não provisórias, ou, em último esforço, que o apenado intramuros tem dois corpos a serem custodiados pela pretensão punitiva estatal. Ademais, oportuno assertoar estar a sentença penal condenatória, enquanto sua eficácia plena estiver pendente de recurso, decisão, ou seja, suspensa por qualquer motivo processual cognitivo, não estará, pois, apta à execução definitiva, porquanto, em havendo redução das penas, ou, ainda mais grave, absolvições, não haveria como se devolver o bem jurídico maior do cidadão, qual seja: o gozo da vida através de seu inato direito à liberdade antanho cerceado.
A jurisprudência do STJ, aliás, é farta em clarificar que a unificação de penas, por seu somatório há de se iniciar quando do "trânsito em julgado da superveniente sentença condenatória" (cf. HC 210.637/MA, 6ª T., relª Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, j. 6.3.2012), bem como respeitada doutrina, consoante, e. g., lição do desembargador Álvaro Mayrink da Costa, que lembra "a questão da inconstitucionalidade da resolução 133 do CNJ, de 20 de abril de 2010, diante do que dispõe o art. 22, I, da Carta Política ('Compete privativamente à União legislar sobre: direito [...] penal, processual [...]'), ainda está pendente de decisão na Corte Suprema. No que concerne à progressão de regime, sem a exigibilidade do trânsito em julgado, há duas súmulas do STF: a) 716 ('Admite-se a progressão do regime de pena ou a aplicação imediata antes do trânsito em julgado da sentença condenatória'); b) 717 ('Não impede a progressão de regime da execução da pena, fixada na sentença, não transitada em julgado, a fato de o réu se encontrar em prisão especial')". (In: Execução Penal. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2017, 2ª tiragem, p. 146, g/n)
Outrossim, o deferimento de somatório de penas privativas de liberdade, malgrado assim seja eventual entendimento de determinado Juízo da Execução, estar-se-ia a se desviar da análise de sua função exclusivamente prognóstica da lide - jamais diagnóstica! -, arvorando-se em estranha diagnose cognitvo-executória, aparentemente em pressuposto (pois se presume sua boa-fé) de que as penas impostas aos cidadãos não têm natureza cautelar, mas definitiva. Haveria, portanto, flagrante excesso de execução, em parte, provocado pelo esfacelamento institucional ao qual assistimos passivamente a agigantar-se neste último lustro: um lustro para macular deveras nossa história….
_________________
*José Cláudio Marques Barboza Júnior é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.