Ao contrário dos teóricos mais tradicionais da ciência jurídica, que delimitam seu universo epistemológico a partir de uma lógica formal e descritiva (citam-se como célebres expoentes Hans Kelsen e Hart), Ricardo Lorenzetti dedica-se, em sua obra, a estudar como o direito afeta a sociedade, dando enfoque na sua aplicação traduzida na decisão judicial.
Salientamos que não é adequado qualificar uma corrente de pensamento una sob a nomenclatura "teoria crítica do direito", pois que esta suposta vertente carrega uma gama extremamente diversificada de autores, com ideias muito diferentes entre si. Pode-se, todavia, com as devidas ressalvas, alegar que o referido jurista tece uma teoria crítica do direito na medida em que vai além da lógica descritiva supracitada.
Para Hans Kelsen (1998, p.245-250), apenas o ato cognoscitivo do intérprete concerne à ciência jurídica, ao contrário do ato volitivo inserido na decisão judicial. O juiz, ao verificar os diversos sentidos extraídos da "moldura", a qual é constituída a partir na norma analisada (ato cognoscitivo), elege aquele que julgar mais adequado (ato de vontade), escolha esta que passa a recair sobre a esfera política.
Importante frisar que Kelsen chega a reconhecer, o que será melhor examinado a diante, que o juiz tem a prerrogativa formal de decidir contra legem.
Lorenzetti, por outro lado, preocupa-se em demonstrar, por meio da obra ora debatida ("Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito"), a importância que a decisão judicial carrega no âmbito da ciência do direito. Julga essencial, conforme veremos, o estabelecimento de critérios de correção aptos a limitar a interpretação subjetiva do julgador.
Interessante observar, nesta toada, que o autor reconhece expressamente a presença de valores e paradigmas políticos na seara da decisão judicial, mas, diferentemente de Kelsen, preocupa-se em examinar tais paradigmas, abarcando-os no leque de fundamentos de sua teoria. Será exposta, neste sentido, qual a relevância que Lorenzetti atribui ao que denomina como pluralismo de valores.
O autor divide sua obra em quatro partes. Na primeira, descreve o cenário jurídico, político e econômico que embasa e justifica suas ideias. Na segunda, expõe os elementos normativos do sistema jurídico. É a partir da terceira parte que passa a discorrer a respeito da decisão judicial em si, acrescentando, na quarta parte, quais os paradigmas políticos que estão presentes na sociedade da qual pertence o julgador (o que será explanado no momento oportuno).
Examinadas as principais ideias traçadas por Lorenzetti em seu livro, ao menos para os fins de nossa pesquisa, verificar-se-á qual relação que pode ser estabelecida entre suas conclusões e a Teoria do estado de exceção. Neste momento, serão trazidos à colação os conceitos trabalhados por Giorgio Agamben, Carl Schimitt e Pedro Estevam Alves Pinto Serrano.
2. Análise dos pontos principais da obra
2.1 A realidade social a partir de Lorenzetti.
Na primeira parte do livro, Lorenzetti revela qual o cenário político, jurídico, e econômico característico da contemporaneidade. Fornece grande parte dos exemplos a partir de sua visão como jurista argentino. Todavia, as tendências por ele descritas podem ser observadas em diversos países, sobretudo os latino-americanos. Deste modo, afirma-se que suas observações são extremamente pertinentes para a compreensão do contexto brasileiro atual.
O autor afirma que vivenciamos uma era de descodificação, repleta de leis especiais esparsas, o que torna o papel do intérprete do direito ainda mais significativo. Foi surgindo, gradativamente, a presença de microssistemas jurídicos, fenômeno este que chama de Big Bang legislativo, esclarecendo que:
"O Código, que divide sua vida com os outros códigos, com microssistemas jurídicos, e com subsistemas, perdeu sua centralidade, a qual se desloca progressivamente. As bases axiomáticas para o raciocínio jurídico estão situadas em um sistema que vai além do Código e que deve ser descoberto pelo intérprete mediante um processo de identificação de fontes e normas fundamentais. A explosão produziu um fracionamento da ordem, similar ao planetário. Criaram-se microssistemas jurídicos, que, assim como os planetas, giram com autonomia própria, sua vida é singular." (LORENZETTI, 2010, p.44).
Neste contexto, há uma crise no conceito global de cidadão/povo (Lorenzetti, 2010, p.52-53). Há o indivíduo consumidor, trabalhador, empresário etc. Nesta sociedade de conflitos ultra especializados, o papel do intérprete se torna fundamental, pois, em um sistema aberto desta maneira, qualquer argumentação parece legítima. O autor reconhece, contudo, ser extremamente difícil, neste cenário, encontrar critérios objetivos de validação do discurso (LORENZETTI, 2010, p.68).
Como menciona Lorenzetti, os juristas tornam-se, a cada dia, propagadores de verdades parciais, e utilizam o texto normativo cada vez mais como mero instrumento para fundamentar uma decisão que, na realidade, há havia sido tomada.
Uma ideia do autor que merece destaque refere-se à sua concepção a respeito da mídia e como esta se relaciona com a sociedade contemporânea por ele descrita. Conforme menciona:
"O debate midiático, naturalmente, não busca a diferença senão promover informação e entretenimento, e, por isso apresenta um cenário de posições que giram ao decorrer do tempo sem prevalecer de modo definitivo. Isso faz parecer que convence mais quem atua melhor, e não tem quem argumentos mais convincentes. A necessidade de informar de modo urgente abrevia os argumentos, e, para o interesse do público acentuam-se os aspectos emotivos, de modo que, para manter permanentemente a atenção, a mídia fica obrigada a consultar estatisticamente as opiniões." (LORENZETTI, 2010, p..54).
Percebe-se que o Lorenzentti inclui, dentre os principais fatores que afetam a realidade jurídica, esta esfera de comunicação social. É notório que diversos julgamentos que presenciamos no cotidiano, principalmente no âmbito do processo penal, são altamente influenciados pelos veículos de comunicação em massa. Em várias ocasiões, a decisão judicial decorre mais intensamente do apelo popular que recai sobre o caso do que dos métodos hermenêuticos da ciência jurídica em si. Tal situação é, a nosso ver, uma das principais brechas que se abre na atualidade para a suspensão autoritária do ordenamento jurídico por parte do Estado em pleno regime "democrático" (medidas de exceção).
Pode-se traçar, no que tange este aspecto trabalhado pelo autor, um paralelo com o pensamento de Niklas Luhmann, a respeito da sociedade como autopoiese. O Direito é um dos sistemas da sociedade que, apesar de realizar conexões com os demais, como o da moral, da comunicação social e midiática, da economia e da política (realizando um acoplamento estrutural), se mantêm autônomo em relação a estes. Contém, assim, códigos e critérios próprios (Guerra Filho, 2009, p. 219).
Apesar da influência mútua entre tais sistemas, não pode a racionalidade particular de um deles substituir de modo absoluto a de outro, gerando, assim, uma corrupção sistêmica. Portanto, a lógica jurídica não pode ser confundida com a da comunicação social e da mídia.1 Essa situação compromete seriamente o Estado democrático de direito (Serrano, 2015, p.367).
Anote-se que esta interferência indevida é um dos grandes aspectos que obstaculiza o combate de decisões de cunho predominantemente subjetivo. Jaz aí a importância de se construir uma matriz estratégica para a interpretação e aplicação do direito, por maiores que sejam as dificuldades para tanto.
Analisada a realidade social sob o prisma de Lorenzetti, passemos a elencar quais são os componentes, segundo o autor, que compõe o sistema normativo.
2.2 Descrição do sistema jurídico na obra.
O autor sustenta na segunda parte, basicamente, que o ordenamento jurídico tem como fundamento último uma regra de reconhecimento pautada na aceitação geral primordial da comunidade. Nota-se, neste trecho, uma forte influência do positivista britânico Herbert Hart2.
Em outras palavras, defende que toda a unidade lógica e formal do sistema jurídico advém da regra de reconhecimento, apesar de afirmar que a coerência material só pode ser revelada por meio dos princípios jurídicos. Ressalta que este estudo do ordenamento é importante na medida em que elucida quais são os limites dos argumentos e das fundamentações jurídicas (LORENZETTI, 2010, p.71-73).
Lorenzetti propõe, logo em seguida, um caminho a ser obedecido pelo juiz. Em primeiro lugar, deve-se aplicar um raciocínio formal de fundamentação, utilizando-se de métodos dedutivos para que a solução seja encontrada. Apenas e tão somente se estas operações silogísticas não renderem qualquer resultado, deve-se recorrer aos critérios de validade material, ou seja, os princípios e valores:
"Em conformidade com as proposições admitidas anteriormente, quem toma uma decisão, como ocorre no caso de um juiz, deve: partir do nível mais baixo possível, ou seja, da validade formal, e dentro dela seguir a escala de justificação hierárquica – contrário, estaria falhando contra a lei; daí, se a solução não for encontrada, poderá recorrer aos critérios de validade material, ou seja, princípios e valores; o critério material se aplica para preenchimento dos espaços de indeterminação, e para a inconstitucionalidade das leis (...)" (LORENZETTI, 2010, p.75).
Encerra-se nossa sucinta exposição da segunda parte da obra com algumas considerações do autor a respeito dos direitos fundamentais. Segundo afirma, estes têm um caráter fundante do sistema. Não possuem um fundamento transcendental ou imutável, atrelado à essência humana, mas embasam-se em modelos constituídos a partir de consensos que originaram a sociedade atual. Isto significa que os direitos fundamentais podem variar de acordo com o contexto histórico, pois nada mais são do que construções políticas (LORENZETTI, 2010, p.99-121).
Neste ponto, pondera-se que o autor se aproxima consideravelmente do pensamento de Norberto Bobbio em "A era dos direitos". Vide o seguinte trecho do livro:
"(...) os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas etc. (...) o que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas." (BOBBIO, 2004, p.18).
Conclui Lorenzetti, em virtude destes apontamentos, que o conteúdo mínimo dos direitos fundamentais - os quais são parte integrante da própria estrutura básica da sociedade - independe da aceitação das maiorias. Tais direitos, portanto, também resguardam as minorias.
2.3 A teoria da decisão judicial propriamente dita.
É na terceira parte da obra que o autor debruça-se com mais afinco sobre o tema da decisão judicial em si. Faz-se a observação de que a quarta parte, "Relação dos paradigmas da decisão", é voltada à classificação de alguns paradigmas políticos que circundam o órgão aplicador do direito. Não daremos, todavia, grande enfoque neste trecho (de enumeração dos paradigmas). O que nos interessa para o presente estudo é compreender o que são tais paradigmas e como estes interferem no processo de formação da decisão judicial.
Em concordância com o que expusemos anteriormente, o autor combate de modo ferrenho a ideia de discricionariedade pura por parte do juiz. As razões da decisão judicial devem ser extremamente transparentes aos cidadãos em geral. Lorenzetti (2010, p.157) não se autodenomina como excessivamente racionalista, pois esclarece que o raciocínio silogístico (utilização de critérios de validade formal, conforme mencionado nos tópicos anteriores) é insuficiente. Além dos critérios de validade material já citados (os princípios e os valores), o autor reconhece a existência de elementos políticos que compõe a criação da decisão. Estes, todavia, jamais podem permanecer ocultos no debate, sendo a principal função do juiz atingir uma harmonização entre eles.
Vejamos.
Pelo entendimento do autor, o método dedutivo é a regra e a argumentação é exceção. Neste contexto, faz-se necessário o desenvolvimento de uma matriz estratégica interpretação, conforme mencionado anteriormente.
Esta se dá em diferentes graus: a) Os casos fáceis podem ser resolvidos pela mera dedução ou raciocínio silogístico; b) Os casos difíceis exigem argumentação jurídica, o que acarreta a utilização de princípios para informar a discricionariedade; c) Análise dos paradigmas, que são guias políticos que requerem compatibilização dos diferentes modelos que embasam a ordem social vigente.
Em maiores detalhes, argui-se que os casos difíceis - cujas soluções não conseguem ser alcançadas pela simples aplicação dos critérios de validade formal - são aqueles nos quais não é possível determinar qual é a norma aplicável ao fato (subsunção do fato à norma), ou quando há dificuldade de interpretação da norma aplicável. Também podem ser considerados como casos difíceis aqueles em que surge a necessidade de afastamento da norma aplicável devido a vício de inconstitucionalidade.
Frisa-se que o autor propõe, mesmo nos casos fáceis, que podem resolvidos por dedução, um procedimento a ser seguido. Em primeiro lugar, a solução encontrada deve ser controlada com os precedentes jurisprudenciais sobre o tema. Se houver divergência, há o ônus argumentativo para justificar a mudança. Depois, deve haver um controle de coerência e, por fim, uma análise consequencialista (averiguação das consequências gerais da decisão, a qual pode contar com o auxílio de mecanismos da ciência econômica, com as devidas ressalvas).
Sustenta Lorenzetti que a decisão tomada em respeito a todos os cuidados acima descritos é mais suscetível de ser debatida no campo da democracia deliberativa. Porém, ainda que todos os métodos propostos sejam supostamente seguidos, podem ser obscurecidos pela utilização de paradigmas, que nada mais traduzem, a nosso ver, do que a pré-compreensão ideológica do intérprete e aplicador.3
Nestes casos de intensa discricionariedade, estes paradigmas devem ser postos explicitamente no debate, para que o juiz proceda à devida harmonização. Importante destacar a afirmação do autor de que, caso haja dúvida numa hipótese de colisão de direitos fundamentais, deve-se privilegiar sempre a solução mais permissiva, que favoreça a liberdade e autonomia.
Faz-se, ainda, um adendo final de que suas ideias a respeito da resolução de conflitos entre regras e princípios se aproximam muito da teoria de Robert Alexy (2015, p.90-105), segundo a qual os princípios são mandamentos de otimização, normas de razão prima facie (cuja colisão se resolve por ponderação) e regras são normas de razões definitivas (cujo conflito se resolve pela invalidade da outra regra ou da inserção de uma cláusula de exceção).
Examinemos, enfim, como a referida harmonização de paradigmas pode ser concretizada.
2.4 A operacionalização adequada dos paradigmas
Conforme descrito acima, entendemos que o conceito do autor de "paradigma" reflete a pré-compreensão do aplicador do direito, ou seja, sua visão ideológica, o modo com que enxerga o contexto no qual está inserido, seus valores sociais etc. O grande problema trabalhado pelo autor é o emprego desses paradigmas de modo pouco transparente. Explica que:
"Quem somente se baseia em paradigmas dá preeminência ao contexto sobre a norma. O procedimento habitual é subsumir uma expressão legal em um contexto que lhe fá sentido, e que não é o ordenamento, senão o modelo de decisão adotado pelo intérprete de antemão. Isso é possível em um sistema aberto, onde existem vocábulos que podem ser interpretados em sentidos muito diferentes (...) Um primeiro problema é que, frente a um mesmo caso, os juristas têm distintos enfoques se adotam diferentes modelos. Por exemplo, quem é protecionista decidirá de modo diferente de quem é consequencialista; quem tem uma visão baseada no acesso aos bens será permeável a decisões que serão rechaçadas por quem o ignore. A questão é que o jurista se transformou em um militante de verdades parciais, que não logra compreender a globalidade." (LORENZETTI, 2010, p.227).
Outra dificuldade enfrentada pelo jurista é a expansão inadequada de determinados paradigmas a outros campos com os quais não nutre qualquer relação de pertinência. Toma-se como exemplo a aplicação de princípios próprios do direito civil à esfera penal.
Neste cenário conflituoso, é necessário, com o intuito de limitar a interpretação hermética ou subjetiva, pensar o modelo jurídico de modo analítico, considerando, e não desprezando, suas contradições internas. Nota-se que é justamente neste aspecto que o autor rompe com os dogmas estritamente positivistas.
Em conformidade com que adiantamos no tópico acima, Lorenzetti elenca uma séria de classificações de paradigmas, das quais abriremos mão de detalhar. Contudo, percebe-se ser possível sua divisão em dois grandes grupos: os de cunho mais protetivo e coletivo e os de caráter mais garantista e individualista.
Assim, propõe o autor que os paradigmas devem ser trazidos de modo claro ao debate. Feito isso, deve o juiz apontar para qual tensão o paradigma eleito provoca em relação a outro paradigma com o qual conflita. Por fim, ambos devem ser harmonizados, levando-se em conta a democracia deliberativa.
Mas como proceder esta harmonização?
Segundo Lorenzetti, este processo deve ser norteado, sempre, pelo metavalor do pluralismo de valores contido na sociedade. A função da lei constitucional em um regime democrático é justamente realizar condições para a melhor possibilidade de convívio social. O juiz sempre deve considerar que sua tarefa é buscar uma comunidade mais inclusiva, superando a dialética amigo - inimigo.
Mais uma vez, o autor demonstra sua preocupação quanto à tutela dos direitos das minorias, ao afirmar que o juiz deve localizar quais são os consensos majoritários da sociedade e limitá-los nas hipóteses em que os mesmos venham a agredir direitos fundamentais (LORENZETTI, 2010, p.227-229).
Vistos os pontos mais pertinentes da obra para nosso estudo, passemos ao estabelecimento de uma relação entre a teoria de Ricardo Luis Lorenzetti com a ideia de Estado de exceção.
3. A interpretação hermética como ferramenta da exceção
Primeiramente, deve-se explicitar o que compreendemos pelo termo "exceção" no âmbito da ciência jurídica e política. A palavra nos remete, inevitavelmente, a estados autoritários, nos quais a suspensão de direitos e garantias fundamentais é institucionalizada (sob o argumento da provisoriedade). Todavia, pondera-se que grande parte dos governos deste feitio, principalmente os do mundo ocidental, sucumbiu ao término da Guerra Fria e à globalização.
Não raro, entretanto, nos depararmos com graves afrontas praticadas pelo Poder Público contra direitos fundamentais assegurados na legislação destes mesmos países, regidos, supostamente, por um regime democrático. É justamente este fenômeno, que se opera por meio da máscara da democracia, que constitui a "exceção", considerada para os fins deste trabalho.
Ao contrário do que muitos propagam, consideramos tal fenômeno como uma verdadeira patologia da democracia representativa contemporânea. Não se trata apenas de uma disfunção ocasional, mas sim de uma técnica de governo constantemente empregada, ideia esta corroborada por Giorgio Agamben, que se refere à exceção como uma situação permanente:
"De fato, a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento, que hoje se limita, com frequência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decreto com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum. A Primeira Guerra Mundial – e os anos seguintes – aparece, nessa perspectiva, como o laboratório em que se experimentaram se aperfeiçoaram os mecanismos e dispositivos funcionais do estado de exceção como paradigma de governo. Uma das características essenciais do estado de exceção - a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo." (AGAMBEN, 2007, p.19).
A ditadura militar brasileira de 1964, a chilena de 1973, a argentina de 1966, dentre tantas outras que ocorreram na segunda metade do século XX na América Latina, eram governos de exceção, os quais, conforme dissemos, praticamente se encerraram a partir da década de 1980. Persistiram, isto sim, medidas de exceção, camufladas pela "aparência da democracia."
As medidas de exceção sempre carregam uma pretensão política, a qual reputa determinado indivíduo ou grupo de indivíduos como um "inimigo" contra a estabilidade e coesão social daquela comunidade. O inimigo, alvo da medida de exceção, é considerado como desprovido de sua essência humana, o que "justifica" a suspensão de seus direitos elementares.
Tais ideias são corroboradas pelo Professor Pedro Estevam Serrano em sua obra "Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção". Segundo o jurista (2016, p.166), um dos autores que melhor expôs os fundamentos da exceção é o alemão Carl Schimitt,4 o qual concebe a noção de soberania a partir da exceção. Soberano é aquele que a declara, por assim dizer, pois o poder do líder político se traduz na possibilidade de suspensão dos direitos fundamentais dos inimigos. Nas palavras de Serrano:
"Os principais pilares do Estado autoritário Schmittiano são, portanto, a existência de um inimigo- razão para se instaurar a exceção por meio da soberania – e a suspensão dos direitos pela necessidade de confrontar o inimigo que representa uma ameaça ao Estado/soberania. A expressão “Estado de exceção” teve origem no dispositivo da Constituição democrática de Weimar, cuja indeterminação conceitual foi utilizada por Hitler para buscar legitimidade, quando da instauração de sua ditadura após o incêndio de Reichestag."(SERRANO, 2016, p.166).
Salienta-se, também, como bem explana Giorgio Agamben (apud Serrano, 2016, p.32), que o estado de exceção não equivale a um direito especial, como os institutos do estado de sítio ou estado de defesa previstos na Constituição de 1988. Estes casos constituem uma exceção meramente aparente, pois contam com uma regulamentação legítima. A exceção verdadeira (da qual estamos efetivamente tratando) ocorre quando, em decorrência de uma decisão do soberano, suspende-se a ordem jurídica vigente e seus direitos correlatos, em prol de uma vontade de caráter eminentemente político.
Dentre as ideias expostas por Pedro Estevam Serrano, dá-se destaque o argumento de que a jurisdição, na atualidade, é uma das principais fontes das medidas de exceção, ainda mais na era do notório "ativismo judicial" (2016, p.104 -142) Diversas decisões, motivadas por ideais políticos e midiáticos, são proferidas de modo inteiramente contraditório aos padrões constitucionais. O judiciário nunca o faz de modo expresso, todavia. Utiliza-se, muitas vezes, de uma roupagem "técnica" para tanto, como, por exemplo, a referência geral a princípios e postulados como o da proporcionalidade e razoabilidade, sem qualquer fundamentação efetiva.
Interessante observar que a concepção de Kelsen sobre a decisão judicial (como ato político de vontade) se aproxima, de modo extremamente irônico, ao decisionismo Schmittiano. Isto porque Kelsen (1998, p.245-250), no oitavo capítulo de sua "Teoria Pura do Direito", reconhece expressamente a prerrogativa do órgão aplicador de direito de julgar contra legem. Este pode optar, portanto, por uma solução que se encontra fora da moldura normativa identificada pelo ato cognoscitivo.
Nota-se que, neste ponto específico, Kelsen acaba por admitir, indiretamente, a constituição de uma medida de exceção no grau de jurisdição. Deste modo, argui-se que ausência plena de qualquer controle da subjetividade do julgador dá margem à suspensão de direitos de uma pessoa ou de um grupo, suspensão esta travestida de "decisão judicial". Não se pode ignorar que há diversos valores ideológicos na sociedade e que estes afetam os órgãos aplicadores do Direito. Tendo esta premissa bem consolidada na ciência jurídica, abrem-se caminhos mais promissores para o controle democrático das decisões judiciais.
4. Conclusões
Por tudo o que foi exposto até presente momento, pondera-se que as críticas tecidas por Lorenzetti quanto à interpretação hermética e o ocultamento dos diversos paradigmas coincide com a revelação de que as medidas de exceção ocorrem com muita frequência no âmbito do Judiciário.
Retomando algumas ideias desenvolvidas até aqui, Lorenzetti combate a discricionariedade pura da decisão judicial, afirmando que se deve constituir uma estratégia hermenêutica que considere os paradigmas que permeiam a sociedade contemporânea.
Não se está aqui a pregar a ingenuidade de que é possível o estabelecimento de critérios perfeitamente objetivos e seguros, capazes de limitar tal discricionariedade. O Direito, por ser uma construção social, aplicada e interpretada por homens, sempre será afetado por um grau de subjetivismo inerente à condição humana. Todavia, não se pode defender, sob qualquer pretexto formal ou material, a liberdade plena da esfera jurisdicional.
O reconhecimento da diversidade de valores políticos, econômicos, sociais, morais e culturais que compõe a coletividade é imprescindível para a ciência jurídica. O Judiciário tem como principal intuito equilibrá-los e harmonizá-los, em prol da construção de uma sociedade pluralista e inclusiva.
Decisões judiciais imbuídas de paradigmas ocultos representam um dos instrumentos mais fortes de execução das medidas de exceção na democracia contemporânea.
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1 O objetivo desta observação não o de rejeitar a ideia de interdisciplinaridade. O que se está defendendo é a troca entre os diversos fenômenos sociais, preservando, todavia, o núcleo essencial e particular de cada um deles.
2 Para maiores aprofundamentos, verificar a seguinte obra:HART, Herbert. L. A. O conceito de direito. 5a ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2007.
3 Ricardo Marcondes Martins (2011, pp. 52-53), explana que há uma importante diferenciação entre uma “ideologia do texto normativo” e uma “ideologia do intérprete”. Baseia-se o autor nas ideias de Friedrich Muller, que distingue “pré-compreensão jurídica” de “pré-compreensão geral”. Esta deve ser analisada com muita cautela, pois se refere a preconceitos subjetivos, que variam de acordo com cada leitor e intérprete. A primeira diz respeito a um conjunto de premissas necessárias para guiar a interpretação mais adequada do texto normativo que se aplicará. Estamos nos referindo, no presente texto, à pré-compreensão no sentido geral.
4 É importante ressaltar que as bases da teoria de Schmitt giram em torno da legitimação dos governos de exceção, como o nazista. O autor não se refere expressamente às medidas de exceção por nós mencionadas, mas seus argumentos também são extremamente pertinentes para compreendê-las, pois trata-se da mesma questão de suspensão do ordenamento jurídico em razão de uma decisão de caráter político.
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AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. [Trad. Iraci D. Poleti]. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2007.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais [trad. Virgílio Afonso da Silva]. São Paulo: Malheiros, 2015.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos [trad. Carlos Nelson Coutinho]. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, 10ª edição.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, 2ª edição.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito [tradução João Baptista Machado]. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito [trad. Bruno Miragem]. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação Administrativa à Luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011.
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. A justiça na sociedade do espetáculo. São Paulo: Alameda, 2015.
SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016.
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*Isabella Martinho Eid é mestranda em Direito Administrativo pela PUC-SP e bacharel em Direito pela mesma Universidade, tendo graduado-se com menção honrosa. Advogada.