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Abuso sexual: ação e reação!

O crime de abuso sexual contra a criança é odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.

1/8/2006

 

Abuso sexual: ação e reação!

 

Tânia da Silva Pereira*

 

O crime de abuso sexual contra a criança é odioso sob todos os aspectos, especialmente quando cometido dentro do próprio lar (como acontece na maioria das vezes) e nem sempre tem merecido o repúdio da sociedade, seja no particular, seja através de suas instâncias representativas.

 

Esse tipo de crime, tenha ele, em qual dosagem for, o seu ingrediente patológico, tão antigo quanto o próprio homem, com seus desvios inescrutáveis – e nem por isso menos culpáveis e puníveis – deveria ser hoje uma excrescência quase residual no avanço da civilização, sob os aspectos fundamentais da moral e da ética. Pois ocorre o contrário, contradizendo, aliás, os mais elementares preceitos da cultura moderna, ou como preferem alguns, pós-moderna e ultrapassando até mesmo o que deveria pertencer ao terreno da ficção em suas incursões na sordidez humana: está em plena e febril atividade no mundo atual o que os corações mais cândidos ou singelos devem resistir a acreditar como real - um movimento com nome e digital: o “backlash”.

 

Trata-se da mobilização de recursos humanos e financeiros com o objetivo de desacreditar as vítimas de violência intrafamiliar, seus terapeutas, quem quer que tente proteger as vítimas, e, sobretudo, elas próprias, as crianças pequenas abusadas, assim como seus advogados e peritos. Por absurdo que pareça, que não se subestime o poder crescente dessa maré do mal. Não estamos diante de um fenômeno localizado, transitório e frágil. Muito ao contrário. E é contra ele que os cidadãos de todos os continentes, não se excluindo obviamente os brasileiros de bem, devem se mobilizar antes que esse trabalho deletério contamine definitivamente o ser humano de amanhã. (Depois de amanhã pode ser tarde demais).

 

O “backlash” surgiu na década de 80 no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Na Argentina obteve um maior impulso a partir do ano 2000, por iniciativa do advogado e ex-juiz Eduardo Cárdenas, ao denunciar em um periódico jurídico – <_st13a_personname productid="La Ley" w:st="on">La Ley - “uma verdadeira indústria de denúncias de abuso sexual” em nome de uma suposta “defesa da unidade familiar”. Com forte influência nos Tribunais argentinos, o referido advogado fez graves acusações a colegas e especialistas, atacando também a credibilidade do trabalho desenvolvido por instituições públicas. Diante deste movimento, segundo Virginia Berlinerblau “disfarçado de boas intenções”, foi encaminhado importante documento à Subsecretaria de Direitos Humanos daquele pais assinado por uma centena de profissionais de instituições públicas e privadas, advertindo para uma “escalada que põe obstáculos ao processo de visualização da violência doméstica”.

 

Nesta mesma linha de orientação, também no Brasil, um grupo de advogados e especialistas passou a atuar, sobretudo <_st13a_personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São Paulo e no Rio de Janeiro; eles se utilizam de questionáveis mecanismos para desmontar os serviços criados com o objetivo de apurar e atender situações de abuso e violência intrafamiliar, buscando invalidar as denúncias, invertendo o sentido da conduta abusiva e atribuindo culpa a quem denuncia ou protege a vítima. Magistrados e Promotores, acusados de “parcialidade”, e profissionais responsáveis (advogados, psicólogos, assistentes sociais e médicos) têm sido denunciados em seus órgãos de classe visando intimidá-los ou impedi-los de atuar em situações de abuso sexual.

 

Tais considerações não devem ameaçar as iniciativas de manutenção e consolidação de um “trabalho em rede” que integre os vários equipamentos sociais. Essa integração não pode ser interpretada como um conluio entre profissionais que investem sua atuação na apuração da verdade e na proteção das vítimas.

 

O papel da polícia é importante na medida em que existam equipes especializadas em entrevistas de revelação, sobretudo com jovens e crianças e as respectivas famílias. O desenvolvimento de programas permanentes especializados multidisciplinares deve abranger a formação jurídica e técnica relacionada com o abuso sexual. A definição de um modelo de intervenção criminal e a identificação de estratégias e táticas de investigação eficazes são apenas uma parte dos desafios. A participação de peritos qualificados para expressarem a opinião quanto à confiabilidade dos depoimentos da criança representa apoio significativo.

 

A baixa efetividade dos meios probatórios tem acarretado a impunidade de suspeitos. Cabe lembrar que não são incomuns as hipóteses em que os magistrados, em nome de efetivo cuidado, mantêm uma visitação assistida por uma pessoa da confiança do genitor denunciante. Na maioria das vezes o acusado se afasta sem se interessar em conviver naquelas condições, o que induz a suspeita de suas efetivas intenções.

 

A ocorrência rotineira destes casos contra crianças e adolescentes permanece como uma questão que a maioria das pessoas prefere ignorar. Difícil de ser investigado, o abuso sexual manifesta-se como crime secreto ou prática oculta, contra vítimas que são sempre contrárias a relatá-lo ou praticamente incapazes de fazê-lo. Em geral, a vítima é a única testemunha e as evidências físicas de abuso sexual existem apenas em uma pequena porcentagem de casos. Esses fatores atropelam as investigações em todos os seus níveis — desde a sua denúncia até o julgamento.

 

Não é raro e representa uma experiência freqüentemente traumática proceder-se a uma “acareação” entre a criança e o acusado, sobretudo quando este é um membro da família. Nesses casos, a criança pode sentir uma culpa adicional caso ele seja condenado. Sentimentos conflitantes para com o acusado são, em geral, uma causa significante do trauma experimentado pela criança abusada sexualmente.

 

Diante da freqüente dificuldade de revelação do abuso, sobretudo no Judiciário, destaque-se a iniciativa do Tribunal do Rio Grande do Sul ao implantar um sistema identificado como “Depoimento sem danos” por iniciativa da Desembargadora Maria Berenice Dias. Em ambiente adequadamente equipado, a vítima é ouvida por um psicólogo ou assistente social. O depoimento é acompanhado por vídeo, na sala de audiência, pelo juiz, pelo representante do Ministério Público, pelo réu e seu defensor, que dirigem as perguntas, por meio de uma escuta, a quem está ouvindo a vítima e insere o questionamento durante a conversa. O DVD com o depoimento é anexado ao processo. Assim, a vítima é ouvida uma única vez e seu depoimento pode ser assistido inclusive no Tribunal quando do julgamento de um eventual recurso.

 

Dentre os “mitos e realidades” que envolvem esse tipo de violência devemos distinguir situações controversas que devem merecer atenção dos especialistas e do Sistema de Justiça: os crimes são praticados em todos os níveis socioeconômicos, religiosos e étnicos. A maioria das vezes são pessoas aparentemente normais e queridas pelas crianças ou adolescentes. A maioria dos agressores é heterossexual e mantém relações sexuais com adultos; pessoas estranhas são responsáveis por pequeno percentual dos casos registrados; diante da afirmação comum de que a criança que é abusada mente e inventa, documento oficial de orientação aos professores afirma que “apenas 6% dos casos são fictícios e, nessas situações, trata-se, em geral, de crianças maiores que objetivam alguma vantagem”.

 

Estes e demais aspectos do problema refletem destacada importância nos estudos e programas de atendimento às situações de abuso sexual. Estes últimos devem trabalhar, inclusive, com projetos de esclarecimento no sentido de se orientar os responsáveis em face de sinais transmitidos por crianças e jovens acerca do que lhes sucede. Da mesma forma é flagrante a enorme dependência das mulheres aos seus maridos ou companheiros e, na maioria das vezes, se negam a crer na possibilidade de que o mesmo possa cometer tal ato ou mesmo se sentem impotentes para enfrentá-lo.

 

Uma atuação interinstitucional é necessária. Devem ser priorizados a promoção, apoio e estímulo a programas de capacitação de recursos humanos, aplicáveis à função de agentes governamentais e não governamentais, que trabalhem especificamente com crianças e adolescentes, sempre com vistas à atuação multidisciplinar.

 

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*Advogada e Professora de Direito da UERJ e da PUC/Rio. Diretora da Comissão Nacional para Infância e Juventude do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família



 

 

 

 

 

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