Diversas são as ações que têm surgido em face de construtoras, incorporadoras e instituições financeiras que operam o programa do Governo Federal "Minha Casa Minha Vida" (neste texto, levamos em consideração a maior delas, qual seja, a Caixa Econômica Federal), discutindo os comumente chamados "juros de obra" ou "taxa de evolução de obra".
Nessas ações, de modo geral, os mutuários (beneficiário do programa social) pretendem a restituição em dobro de valores pagos a casa bancária no período de obras, ou seja, período anterior a entrega das chaves do imóvel.
Neste ponto, necessários esclarecimentos acerca de um dos modelos de negócio utilizados na realização e comercialização das unidades habitacionais capitaneadas pelo programa do Governo Federal "Minha Casa Minha Vida", especialmente nas operações que tem como agente financeiro a Caixa Econômica Federal.
Nesse modelo de negócio de que trata o presente artigo, a Caixa Econômica Federal se responsabiliza, desde o início das obras, pelo aporte do capital necessário para desenvolvimento das mesmas. Não há obtenção de crédito imobiliário pelas incorporadoras/construtoras do empreendimento residencial popular, de modo que as construtoras que realizam as obras recebem um valor fechado final, de acordo com as medições mensais de obras efetivamente realizadas no período.
Durante esse período anterior a entrega das chaves, o mutuário paga a Caixa Econômica Federal somente os encargos contratuais, não havendo pagamento ou batimento do valor do principal.
Essas questões – encargos devidos e não abatimento do principal no período de obras – devem estar claras no contrato de financiamento com pacto de alienação fiduciária, até para que, de acordo com as previsões protecionistas dos consumidores, não seja alegada nenhuma nulidade ou ausência de informação que possa gerar direito a indenização aos mutuários.
Após a fase de construção, então, passam os mutuários a realizar o pagamento à Caixa Econômica Federal das parcelas mensais, devidamente ajustadas nos termos do contrato, pelo período que tiverem negociado no momento da assinatura do mesmo. Ou seja, inicia-se, após a entrega das chaves, o período de pagamento do principal, assim considerado o valor que efetivamente é objeto do contrato de mútuo bancário.
Este modelo de negócio vem sendo largamente utilizado em todo o território nacional, sem representar nenhuma abusividade ou ilegalidade em detrimento dos consumidores, posto que, pelo seu caráter social, não são cobradas taxas extras ao contrato (como se alega em muitas dessas ações judiciais), mas unicamente a remuneração do crédito disponibilizado pelo agente financeiro ao beneficiário do programa.
Os encargos previstos no contrato para o período de construção representam pura e simples remuneração de capital, visto que, como a obra já vem sendo paga pelo agente financeiro mesmo antes do período de amortização do principal, é perfeitamente plausível que à época em que isso passe a acontecer – após a entrega dos imóveis – o capital inicialmente disponibilizado pela Caixa Econômica Federal, por exemplo, coincida com o real valor pago pelos adquirentes.
Esses contratos, ao preverem essa separação dos momentos de obra e forma de cobrança, cumprem fielmente o dever de informação ao consumidor, tendo em vista esclarecer de maneira suficientemente objetiva a incidência e forma de cobrança de remuneração do capital, calculado sobre o saldo devedor, especialmente durante o período de obras.
A jurisprudência é pacífica exatamente neste sentido, e corrobora o entendimento da legalidade da cobrança de encargos do mútuo bancário antes da entrega das chaves:
RECURSO ESPECIAL. JUROS COMPENSATÓRIOS. CLÁUSULA CONTRATUAL QUE PREVÊ SUA INCIDÊNCIA PARA ANTES DA ENTREGA DAS CHAVES DO IMÓVEL ADQUIRIDO. LEGALIDADE.
1. A Segunda Seção, por ocasião do julgamento do EREsp 670.117/PB, concluiu que "não se considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves, que, ademais, confere maior transparência ao contrato e vem ao encontro do direito à informação do consumidor (art. 6º, III, do CDC), abrindo a possibilidade de correção de eventuais abusos " (EREsp 670.117/PB, rel. min. Sidnei Beneti, rel. p/ acórdão ministro. Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJe 26/11/12). 2. Recurso especial provido. (STJ -REsp 1333410/SP, rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, julgado em 8/8/16 DJe de 12/8/16)
AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL - JUROS COMPENSATÓRIOS - JUROS NO PÉ - COBRANÇA ANTES DA ENTREGA DO IMÓVEL - POSSIBILIDADE - PRECEDENTE DA SEGUNDA SEÇÃO - DECISÃO AGRAVADA RECONSIDERADA
- PROVIMENTO. 1.- Quanto aos juros compensatórios denominados 'Juros no pé', aplica-se a jurisprudência firmada pela 2ª Seção, harmonizando o entendimento de suas Turmas, no sentido de que 'não considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves, que, ademais, confere maior transparência ao contrato e vem ao encontro do direito à informação do consumidor (art. 6º, III, do CDC), abrindo a possibilidade de correção de eventuais abusos' (EREsp 670117/PB, rel. min. SIDNEI BENETI, rel. p/ acórdão min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, SEGUNDA SEÇÃO, DJe 26/11/12). 2.- Agravo Regimental provido, reconhecida a legalidade da cláusula do contrato de promessa de compra e venda de imóvel que previu a cobrança de juros compensatórios de 1% (um por cento) a partir da assinatura do contrato. (STJ - AgRg no Ag 1.384.004/RJ, rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/4/14, DJe de 25/6/14)
"A cobrança de juros na fase de construção está prevista expressamente no contrato firmado. Assim, tendo sido livremente pactuada, cabia ao mutuário apelante demonstrar eventual abusividade na sua cobrança, ônus do qual não se desincumbiu. Precedente." (TRF-3, 1ª Turma, Apelação Cível 0004772- 82.2012.4.03.6105/SP, relator des. Federal Hélio Nogueira, j. em 22.11.16)
"Acrescento que a correção monetária além de contratualmente prevista visa à justa reposição do valor de compra da moeda e não tem caráter punitivo. No mais, embora os Autores afirmem que a taxa de construção não está contratualmente prevista e que não tinham ciência do seu pagamento, é certo que há previsão da sua incidência no contrato de mútuo firmado com a CEF. (...) Ora, se a vendedora se obrigou a entregar o imóvel em certo prazo, todos os pagamentos de "taxa de construção" arcados pelos compradores durante a fase de construção são devidos, razão pela qual o valor pago pelos compradores, indicado na petição inicial, é devido nos termos do contrato firmado com a instituição financeira, podendo ser discutido apenas quando caracterizada a mora da construtora. (...) Assim, sequer há que se falar em dano moral, eis que não houve cobrança indevida de valor a gerar eventual abalo a honra dos compradores." (TJ/SP, 7ª Câmara de Direito Privado, apelação 1001942-02.2014.8.26.0506, des. Relator Luis Antônio Costa, j. em 17.2.16)
APELAÇÃO - PROCESSUAL CIVIL - CONTRATO PARTICULAR FIRMADO EXCLUSIVAMENTE COM A CONSTRUTORA - INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA APRECIAÇÃO - PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA - ENCARGOS CONTRATUAIS DURANTE A FASE DA OBRA - PREVISÃO - LEGALIDADE.
I - Não se vislumbra a ocorrência de cerceamento de defesa no presente processo, tampouco necessidade de inversão do ônus da prova. A questão relativa ao abuso na cobrança dos encargos contratuais é matéria exclusivamente de direito, bastando, porquanto, a mera interpretação das cláusulas do contrato firmado entre as partes para se apurar eventuais ilegalidades. II - Ao contrário do alegado pela apelante, o compromisso particular de adesão com promessa de compra e venda de fração ideal de terreno e promessa de contratação de financiamento para construção de imóvel na planta, acostado às fls. 43/51, não foi firmado com a Caixa Econômica Federal, razão pela qual agiu acertadamente o MM. Juízo a quo que entendeu não possuir competência para decidir sobre relações entre particulares, da qual não participou a CEF. III - A parte autora celebrou com a instituição financeira um contrato de financiamento com a compra do terreno (de propriedade da construtora), bem como a construção do imóvel, no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida (fls. 53/85). IV - Conforme consta da cláusula sétima do contrato avençado, o mutuário é responsável, na fase de construção, pelos encargos relativos a juros e atualização monetária, à taxa prevista no item "c", desse instrumento, incidentes sobre o saldo devedor apurado no mês e, após a fase de construção, pela prestação composta de amortização e juros (A + J), à taxa prevista no item "c", taxa de administração e comissão pecuniária FGHAB. V - Como bem pontuou o Magistrado de primeiro grau, da leitura do contrato firmado pelas partes, claro está que o contrato possui duas fases distintas, a saber: fase de construção e fase de amortização, iniciando-se esta ao término da primeira (cláusula sétima - fls. 61/62), dispondo a construtora "de até 60 dias após a data de conclusão das obras para efetiva entrega das chaves do imóvel ao mutuário/devedores (...)" - (parágrafo segundo da cláusula quinta - fl. 60). Só por isso, cai por terra a assertiva da parte autora de que pagou "taxa obra". Na verdade, o que a parte autora pagou, por primeiro, foram as parcelas devidas durante a execução da obra, não sendo possível, nesta fase contratual, amortizar o débito por ela obtido com o financiamento. VI - Entendimento jurisprudencial no sentido da legalidade da exigência de pagamento de juros compensatórios antes da entrega das chaves do imóvel. VII - O prazo de entrega a ser considerado para se dar início à fase de amortização é aquele previsto no cronograma físico-financeiro, de acordo com item B4 do instrumento (fl. 54) e não outro pactuado sem a interveniência da CEF, entre a requerente e a construtora, inexistindo, portanto, prova de qualquer conduta ilícita praticada pela CEF. VIII - Mantida a condenação em honorários advocatícios no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), eis que arbitrados de acordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. IX - apelação desprovida. (TRF-3, 2ª Turma, Apelação Cível 0000339- 12.2015.4.03.6111, rel. desembargador Federal Cotrim Guimarães, j. em 6.9.16)
"No que corresponde ao pagamento da taxa de construção, a apelante também pagara diretamente à Caixa Econômica Federal a verba referida, bastando simples análise do documento de pág. 97, havendo expressa manifestação da vontade, logo, também não se verifica nenhuma onerosidade excessiva, mas, ao contrário, deve sobressair o que fora avençado, que também não afronta a relação de consumo existente." (TJ/SP, 4ª Câmara de Direito Privado, apelação 1006898-75.2014.8.26.0566, des. relator Natan Zelinschi de Arruda, j. em 30.7.15)
Nas ações judiciais em que se enfrentam tais contratos e pedidos dos mutuários, a jurisprudência, ademais, vem caminhando para a consolidação do entendimento de que, somente após eventual atraso pela construtora do período de obras contratualmente previsto, passa a ser indevida a cobrança de juros:
"Embora a taxa de obra seja devida à Caixa Econômica Federal, o fim de seu pagamento estava condicionado ao término das obras, obrigação da vendedora (item II da cláusula 7ª - fls. 135). Se a vendedora se obrigou a entregar o imóvel em certo prazo, todos os pagamentos de "juros de obra" arcados pelos compradores após esse prazo devem-se unicamente ao atraso da vendedora, restando correto, portanto, que os ressarça aos compradores, por força do art. 389 CC, devendo reembolsar os compradores pelos juros de obra pagos após o atraso. No tocante à correção do saldo devedor há que se consignar que se trata de mera reposição do valor de compra da moeda, justificando, portanto, sua incidência. Nesse ponto a sentença merece ser reformada, eis que consignou a não incidência do INCC durante o período de atraso. Ocorre que, a atualização monetária não tem caráter punitivo e visa à justa reposição do valor de compra da moeda, não estando atrelada a mora. Destarte, o valor devido deve ser reajustado, periodicamente, de acordo com os índices disponíveis e contratados. Vale anotar que a utilização do índice setorial é critério justo e que ampara as pretensões de construtora e dos compradores porque não causa distorções, vez que a variação reflete a efetiva alteração dos preços da construção civil." (TJ-SP, 7ª Câmara de Direito Privado, apelação 1000725- 30.2014.8.26.0309, rel. des. Luiz Antonio Costa, j. em 3.10.16)
"Juros contratuais de fase de obra. Cobrança que não é abusiva ou ilegal. Ilegalidade da cobrança repassada aos consumidores depois do prazo firmado para a entrega do bem. Ré que deve reembolsar os valores pagos pelos autores a partir da data de 1/4/11. Sentença mantida" (TJ/SP, 9ª Câmara de Direito Privado, apelação 1011161-48.2014.8.26.0309, des. rel. Edson Luiz de Queiróz, j. em 8.5.18)
APELAÇÃO - COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Declaração de inexigibilidade com restituição de valores - Juros bancários do financiamento da obra – Restituição indevida – Inconformismo do autor afastado - Não há ilegalidade na cobrança de juros inerentes à fase de obras, quando imputados ao consumidor no período da construção de imóvel adquirido na planta e financiado pela modalidade crédito associativo – Construtora que demonstra que as cobranças referem-se ao mencionado encargo inadimplido, relativo ao contrato de financiamento firmado pelo adquirente – Sentença mantida – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
"Com efeito, os juros de financiamento, denominado juros de obra ou taxa de evolução da obra, dizem respeito a encargos bancários do contrato de financiamento atinentes à quitação da parcela final do preço pactuado. E o pagamento deste encargo se dá na fase de obras, sendo que tal cobrança do adquirente do imóvel, a princípio, não é ilegal desde que não ultrapasse o período de construção do imóvel. No específico caso em exame, não restou demonstrado que o autor teve que suportar o pagamento desse encargo por período superior ao previsto a justificar o ressarcimento pela ré." (TJ/SP, 8ª Câmara de Direito Privado, apelação 1004597-23.2017.8.26.0576, des. rel. Alexandre Coelho, j. em 17.4.18)
Esse, aliás, foi o entendimento pacificado pelo TJ/SP, ao julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 0023203-35.2016.8.26.0000, no qual foi fixada a seguinte tese jurídica, nos termos do acórdão registrado sob 2017.0000664200:
TEMA 06: É ilícito o repasse dos juros de obra ou juros de evolução da obra, após o prazo ajustado no contrato para entrega das chaves de unidade autônoma, incluído o período de tolerância.
Para finalizar, pontua-se que, em casos nos quais o beneficiário do financiamento bancário seja a própria construtora ou incorporadora do imóvel– modelo de negócio distinto do que se enfrenta aqui – situações em que os compradores realizam, até a entrega das chaves, o pagamento diretamente a tal construtora, algumas decisões judiciais se posicionam no sentido de que a construtora não poderia repassar os encargos do período de obra aos consumidores, pois o financiamento bancário estaria sendo concedido em favor e em benefício daquela.
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*Juliana Maria Raffo Montero é advogada do escritório Bentivegna+Ribeiro Advogados Associados.