O princípio da presunção de inocência, como se sabe, está estabelecido no art. 5º, inciso LVII, de nossa Constituição Federal, e é resultado da externalização de norma de intenção protetiva do legislador, por prever que ninguém deverá ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Suas origens remetem à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do séc. XVIII, que, em seu art. 9º, previa: "Tout homme étant présumé innocent jusqu’a ce qu’il ait été déclaré coupable; s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur Qui ne serait nécessaire pour s’assurer de as personne, doit être sévèrement reprimée par la loi" 1; e, posteriormente, à Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, em 1948, que dizia: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa".2
Na doutrina brasileira, juristas como Aury Lopes Jr.3 e André Nicolitt4, defendem que a presunção da inocência trata-se de "princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia)", e que "embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, no curso do processo deve ele ser tratado como inocente, não podendo ver-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo".
Seja como for, o que se pretende esclarecer de maneira muito breve, é que a intenção da redação de referida norma foi, precisamente, justa e razoável, na medida em que pensada para impedir a prisão do indivíduo, sem a sólida certeza de sua condenação – o que, de certa forma, poderia levar o Estado a incorrer em tremenda injustiça, caso, após o término do processo, se concluísse pela inocência do acusado.
Contudo, muito embora a Constituição tenha consagrado este princípio como um dos basilares do processo penal brasileiro, dizer que ninguém deverá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não significa dizer que medidas acautelatórias, tais como as prisões cautelares (preventivas, temporárias ou em flagrante), não poderão ser tomadas, durante o processo penal, para o fim de este assegurar. Afinal, para toda regra há – pelo menos – uma exceção.
Neste sentido, diz-se que o princípio da presunção de inocência, aqui, influi na medida em que, ainda que aplicada alguma modalidade de prisão cautelar, como regra, o acusado poderá responder em liberdade (devendo esta ser conquistada por fiança, para os crimes afiançáveis, ou por habeas corpus, para os crimes inafiançáveis – vide disposição do art. 5º, incisos XLII, XLII e XLIV, da CF/88).
E então, sabendo-se disso, é que se passa a analisar decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, em julgamento do Habeas Corpus 126.292/SP, de relatoria do Exmo. min. Teori Zavascki.
Na ocasião, por 6 votos a 5, o Plenário do STF firmou o entendimento de que, confirmadas as condenações criminais pelas decisões de segundo grau (isto é, aquelas proferidas pelos Tribunais, onde questões de fato e de direito, analisadas pelo juiz de primeiro grau, já foram revistas por um colegiado) poder-se-á, desde logo, executar a pena de prisão, não sendo necessário, portanto, aguardar a interposição e tramitação dos recursos destinados aos Tribunais Superiores.
Encontra-se aqui, porém, um pequeno problema de compatibilização com a norma fundamental disposta no art. 5.º, LVII da CF, acima referida. Ora, pois, veja-se que, enquanto o constituinte estabeleceu a impossibilidade de condenação antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória (que só ocorreria após tramitação dos últimos recursos perante a Instância Especial), o Supremo decidiu por caminho absolutamente oposto, viabilizando, logo após as decisões de segunda instância, a prisão do acusado – e formando, portanto, o que se poderia chamar de execução provisória de pena.
Como bem se sabe, existe, na seara do Direito Civil, a chamada execução provisória de sentença, cujas disposições estão alocadas no art. 520 I a IV, do Código de Processo Civil de 2015 (antigo art. 475-O, I a III, do CPC/73), e que resume-se na possibilidade de, vez sendo recebido o recurso de impugnação à determinado título sem efeito suspensivo, executar-se desde logo a sentença em primeiro grau.
Contudo, para tanto, o decreto-lei 13.105/16 define, no inciso IV do artigo 520, a necessidade de a parte vencedora em primeiro grau caucionar sua adversária, de forma que, se a sentença impugnada vier a ser revertida com a apreciação do recurso em segundo grau, esta última tenha garantido, de uma forma ou de outra, o recebimento de seu crédito.
Tragamos, agora, este entendimento para a esfera do Direito Penal. É sabido que, tanto a execução provisória de sentença, quanto a execução provisória de pena, são fundadas, em linhas gerais, sob o mesmo procedimento: a execução de uma decisão antes do trânsito em julgado de todos os recursos a ela inerentes.
Ocorre que, enquanto na esfera Cível há a possibilidade de caução como garantia à parte vencida em primeiro grau, da reversão do resultado proferido na sentença, pergunta-se: em se tratando do direito à liberdade – que, lembremos, é fundamental e indisponível –, qual seria a caução a ser garantida àquele que, após ter sua pena provisoriamente executada, obtiver resultados favoráveis à sua defesa, através de recursos interpostos perante a Instância Especial? Qual seria a caução que, neste caso, compensaria todo o tempo que ao indivíduo lhe foi privado em liberdade? Bens materiais, por certo, não são suficientes, como outrora se expôs.
Nessa linha de raciocínio, portanto, quer-se dizer que todos os dispositivos acima mencionados, em consonância com o art. 283 do Código de Processo Penal, somado ao 107 da lei de Execuções Penais (7.210/84), existem para completar a noção da presunção de inocência, prevista no art. 5º da Constituição. É, em verdade, todo um sistema – constitucional e infraconstitucional –, que aponta para a liberdade, de modo a ter o próprio legislador consignado expressamente em diversos diplomas que, privação de liberdade, somente em caso de prisão cautelar, com a devida presença dos requisitos e fundamentos legais.
E, se assim o fez, como compatibilizar a execução provisória de pena com o princípio da presunção de inocência? Tremenda contradição.
Isto porque, como já restou afirmado, têm-se, de um lado, norma constitucional expressa, vedando a execução provisória da pena, e, de outro, a Suprema Corte do País, por julgamento de 6 votos a 5, permitindo tal execução, sob o fundamento de que os tribunais locais são a última instância que analisa provas de materialidade e autoria, e que, portanto, a presunção de inocência ali se encerraria.
Ora, pois, data máxima venia ao entendimento do Supremo, não podemos concordar com o arguido pela maioria de nossos ministros. E isto porque, a norma constitucional é clara e não comporta interpretação, sob pena de, intentando conciliar a presunção de inocência com a execução provisória de pena, extrapolarmos os limites da hermenêutica de interpretação e reescrevermos a norma jurídica, dando-lhe sentido diverso do que o estabelecido pelo constituinte originário.
Por fim, colacione-se singulares dizeres do exmo. min. Marco Aurélio de Mello, quando de seu voto na MC na ADC 43/DF, que corroboram nosso posicionamento: "(…) a literalidade do preceito não deixa margem para dúvidas: a culpa é pressuposto da reprimenda, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior. O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender." 5
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1 Em tradução literal: Todo homem será presumido inocente até que tenha sido declarado culpado (…). Disponível em: clique aqui.
2 Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Art. 11. Disponível em: clique aqui.
3 JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 8 ed. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 177.
4 NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 61.
5 MC na ADC 43/DF, proposta pelo Partido Ecológico Nacional – PEN, objetivando assentar a harmonia do art. 283 do CPP, com a Carta Federal. Disponível em: clique aqui.
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