Dá-se sequência ao primeiro texto, publicado neste “Migalhas” no dia 17 deste mês, agora com a inestimável participação da colega Rachel Sztajn para acrescentar outros elementos àquele, no mesmo diapasão de que não lemos o projeto e mesmo assim não gostamos dele.
Fala-se em nova codificação no campo do Direito Comercial e a esse respeito nota-se que os autores se encontram desligados do que acontece no mundo aí fora, e não é de hoje. Isto porque o grande jurista italiano Natalino Irti (que esteve por duas ou três vezes fazendo palestras na Faculdade de Direito da USP) escreveu um precioso livro intitulado "L’Età dela Decodificazione", publicado pela Giuffrè em 1989, o qual deve ser considerado juntamente com outro texto do mesmo autor, L’Ordine Giuridico del Mercato (Ed. Laterza, 1998).
Na primeira das obras acima citadas Irti defende a ideia de que os Códigos do passado devem ser preteridos, dando-se prevalência a normas especiais, modelando-se microssistemas, os quais devem ter por eixo as Constituições. Afirma que o mundo do passado não pode ser exumado e os poderes dos tempos modernos não se deixam prender dentro de Códigos os quais se tornam somente guardadores de valores antigos.
Isto porque, continua, o mundo da segurança que teve lugar na metade dos anos 1800 até a época da Primeira Grande Guerra não mais se repetiu, tendo dado lugar a uma mudança profunda na estrutura da sociedade. Passou a ter prevalência o indivíduo que, com sua capacidade assume empreendimentos e corre o risco do sucesso ou do insucesso da sua iniciativa. A função do direito no mundo passado era a de fornecer instrumentos aptos à prover rigorosa garantia dos valores então dominantes. Com a superação daquela ordem jurídica a segurança não guarda mais relação com um fim, mas com as regras do jogo, ou seja, as condições pelas quais cada um pode contar sobre um determinado comportamento de terceiro ou buscar o poder coercitivo do Estado. As instituições sociais, tal como discutido por Douglas North, se fazem presentes com mais força.
Na forma acima, o antigo mundo da segurança era aquele dos Códigos, que traduziam os valores do liberalismo, considerada a imutabilidade das instituições com o caráter fundamental de uma legislação civil. O Código conservava a função de um estatuto orgânico da vida privada e das liberdades civis. Enquanto isso, as leis especiais eram dedicadas aos mesmos institutos ou consistiam em tímidas exceções à disciplina do código.
Ora, parece que somente os idealizadores dos projetos de Código Comercial e os sempre desligados legisladores (ou ligados demais, como pode até acontecer em virtude de alguma captura) não notam que o foco da atividade mercantil tornou-se mais complexo. Por exemplo, há juristas que sabem muito bem que o regime da autonomia da vontade própria dos velhos Códigos cedeu lugar à autonomia privada. E essa realidade traz implicações profundas na atuação dos empresários, os quais buscam liberdade no exercício de atividade econômica licita e não uma tutela asfixiante a cargo de um código que a cerceia em cada momento, tal como se viu com a intromissão de malfadada função social do contrato no Código Civil de 2002 e até mesmo a função social da propriedade na Constituição de 1988, que levou Fabio Comparato a buscar explicá-la associando-a aos meios de produção.
Em obra paralela e não menos importante Natalino Irti derrubou décadas de uma noção inadequada sobre o mercado para demonstrar que ele é um lugar artificial e não natural e, que, precisamente, essa artificialidade do mercado tem por base institutos jurídicos como propriedade e contratos sem os quais, decisões que criem riqueza, dá forma à economia de mercado e em que decisões politicas a caracterizam, como mercantil, coletivista ou mista. Dessa maneira são as decisões políticas, mutáveis por natureza, que fazem com que os diversos regimes da economia sejam marcados pela historicidade e não porque possuem um caráter absoluto e definitivo.
Veja-se o clássico exemplo das feiras medievais na Europa. Eram verdadeiros mercados internacionais para os quais acorriam comerciantes e banqueiros de diferentes cidades, autorizados pelo senhor feudal a atuar naquele território. Como poderiam, livremente fazer os seus negócios naquelas regiões se não lhes houvesse sido franqueado criar normas disciplinadoras da atividade, normas essas respeitadas pelos integrantes da classe mercantil? Isto somente se explica pela resposta dada por Irti. Não foram aqueles mercados o resultado progressivo de práticas mercantis soltas no espaço. Não, estas eram respaldadas aprioristicamente por um regime jurídico que dava cobertura aos agentes, regime esse predisposto pelos próprios interessados. Corporações de artes e ofícios avaliavam os agentes econômicos e aplicavam as sanções se e quando ocorressem desvios que comprometessem o regular funcionamento dos mercados (feiras)
Depois de tanto tempo, diante das mudanças substanciais verificadas nos mercados locais, nacionais e internacionais, a ideia de se reviverem códigos não é somente ultrapassada, que sob o argumento de dar mais garantia (estabilidade?) às relações mercantis/empresariais, induz supor que ela não passa de uma estultice legislativa claramente evidente, ser fruto posição intervencionista. Onde a autonomia privada de se cada operação estiver predeterminada no Código? E os usos e costumes devem ser ignorados restringindo a inventividade das pessoas? Não vamos entrar no terreno pessoal.
No tocante a instituições nosso país mostra hoje um panorama extremamente negativo. A maioria delas tem existência meramente nominal. O Executivo desgoverna, o Legislativo vai atrás de cargos e o Judiciário legisla para resolver questões que o Congresso deixa de lado. No plano do direito algumas instituições existem e elas, precisamente, dizem respeito a microssistemas que se encontram estabilizados (alguns mais do que outros), entre eles destacam-se o do sistema financeiro nacional, o do mercado de valores mobiliários (de capitais), direito concorrencial, propriedade intelectual, Seguros privados, etc. E mesmo assim requerem constante aperfeiçoamento, a exemplo do microssistema de falência e de recuperação de empresas.
Esse último tem na lei 11.101/05 a sua matriz, que se dizia ter acertado o passo do problema da insolvência empresarial, a partir da construção de um modelo moderno e eficiente. Mas desde alguns anos iniciativas de mudança desse modelo têm se multiplicado em termos de projetos de lei que transitam pelos corredores da Câmara e do Senado e até mesmo o governo federal meteu o bedelho no assunto, tendo dado à luz a mais uma versão. Cabe então uma perguntar, teria sido mal elaborada a lei atual a ponto de necessitar de correção, passado tão pouco tempo? Sabemos que tanto na física, como no direito impera a relatividade e isto nos leva a constatar que treze anos de vida para uma lei que se propunha ser eficaz e moderna é muito pouco tempo, considerada a necessidade de sua modificação com o fim de ajustar as suas normas ao substrato econômico-financeiro-tecnológico da cadeia produtiva. Contudo o que se lê e ouve desconsidera efeitos sobre a cadeia produtiva que prazos longos podem ocasionar.
Ora, se uma lei tão debatida na sua gestação como foi a LRE tão cedo necessita ser atualizada e corrigida, o que não dizer de um Código que ameaça englobar uma multidão de objetos do Direito Comercial?
Ainda mais, quem garante que na profusão dos seus dispositivos tal código não encerre contradições internas que geram conflitos, o que aconteceu com o Código Civil vigente na parte em que trata do aval (declaração individual de garantia) no embate com a parte do direito de família que exige outorga do cônjuge? Ora, se a serpente tem um corpo muito longo, ela corre o risco de picar a própria cauda, perdida em suas múltiplas voltas.
Também não lemos e não gostamos (no escuro) do tratamento dado às sociedades limitadas. Isto porque, desde que feitos mínimos ajustes, o seu modelo ideal ainda é o do texto de 1919, de natureza contratual, uma lei enxuta e bela, míseros dezenove artigos, indevidamente exterminada pelo Código Civil em sua sanha pantagruélica. Mas, como sempre, o legislador costuma considerar o empresário pequeno e médio - aquele que seria o destinatário principal do uso de tal tipo societário - um completo ignorante de forma a necessitar de proteção legislativa imposta de cima para baixo, a pretexto da alegada hipossuficiência.
Volta a nossa discussão a um ponto que foi abordado no primeiro texto, qual seja o da adoção de uma lei de introdução ao Direito Comercial, a partir de uma visão sistêmica. Para tal fim deveria ser aproveitada a lição de Canaris1, no sentido de que deve ser buscada a identificação de uma unidade de objetos desse ramo do direito, mediante a recondução da multiplicidade do singular a alguns princípios constitutivos, caminhando dos valores singulares na direção dos valores fundamentais mais profundos, chegando-se assim aos princípios gerais do Direito Comercial. Se esse objetivo globalizante podia entender-se como factível no mundo da segurança do qual falamos no início desse texto (que permitiria a regência da matéria comercial dentro de um código geral), isto não mais é possível, tal como destacou sabiamente Natalino Irti. Mas organizar um sistema de Direito Comercial sob uma lei geral coordenadora dos diversos microssistemas que dele fazem parte, isto sim não somente é possível, mas é obrigatório, deixando-se aqui um repto para o legislador.
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1 Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, 3ª ed., Fundação Caloueste Gulbenkian, Lisboa, pp. 76 e 77.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
*Rachel Sztajn é professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e advogada em São Paulo.