Antes de entrar no cerne do assunto, é pertinente fazer o seguinte questionamento: Se o seu carro, celular, dinheiro, ou seja, se os seus bens materiais possuem valor jurídico, o seu tempo, que é bem essencial e inseparável de qualquer cidadão, não teria a mesma proteção?
Como sabido e ressabido, responsabilidade civil nada mais é que o dever de reparar os danos provocados numa situação onde determinado indivíduo sofre danos e prejuízos que geram efeitos jurídicos como consequência de atos ilícitos praticados por outrem.
Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa (2004):
"A responsabilidade civil leva em conta, primordialmente, o dano, o prejuízo, o desiquilíbrio patrimonial, embora em sede de dano exclusivamente moral, o que se tem em mira é a dor psíquica ou o desconforto comportamental da vítima".1 (Grifei)
E esse dever de reparação de danos causados, sejam eles extrapatrimoniais ou materiais, que estão previstos no Código Civil e também no Código de Defesa do Consumidor, possuem um caráter cíclico e mutante, sendo elas modificadas de acordo com a evolução e alternâncias da sociedade.
Seguindo esse viés, a reparação civil na modalidade extrapatrimonial, notoriamente conhecida como dano moral, vem apresentando consideráveis inovações, sendo que, dentre elas, a que está em proeminência refere-se ao dano imaterial pela perda do tempo útil.
Ora, o tempo é utilidade/serventia a todos os seres humanos e, por ser único, incalculável e irrecuperável, acaba sendo considerado algo precioso. Assim, depois de incidido o tempo, o mesmo nunca poderá ser readquirido e restaurado por parte do lesado, não sendo lícito e nem mesmo justo, portanto, o seu desaproveito e desprezo por conveniência (dolo/negligência) de um terceiro.
É certo que aqueles aborrecimentos mínimos e eventuais que são surgidos corriqueiramente em desfavor de um cidadão e/ou consumidor, praticado por determinada pessoa ou prestadora de serviço, é circunstância que não deve gerar ressarcimento por dano moral, pois configura mero dissabor. No entanto, em determinadas situações, o consumidor ao buscar solucionar determinados empecilhos advindos da relação de consumo, é colocado, na grande maioria das vezes, em situação de longa espera que pode persistir por horas, dias, semanas, meses e até mesmo anos.
Nesse viés, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já pacificou o entendimento de que não podem ser entendidos como meros dissabores ou incômodos do cotidiano o esgotamento e o desgaste suportados por consumidores, como por exemplo, nas centrais de atendimento do call center, quando "percorrem típica via crucis para tratar de assuntos comuns às partes, ou quando são obrigados, em sucessivas e incansáveis ligações, a tentar desfazer erros cometidos pelos próprios fornecedores, quase sempre por cobranças abusiva e/ou manutenção de serviços precários ou que sequer foram solicitados". 2
Até porque, é insuportável e intolerável à corriqueira e abusiva prática comercial das fornecedoras de serviço que, em prejuízo da tranquilidade e dos direitos do consumidor, visando qualquer lucro possível, deixam de prestar serviços de qualidade, passando a se procurar tão-somente na capitação de novos clientes, fugindo do escopo de sua principal atividade comercial que é prestação de serviços com qualidade e zelo.
Em recente julgamento, o Superior Tribunal de Justiça confirmou acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no seguinte sentido:
"a situação fática de injustificado óbice à fruição de propriedade e de demasiada perda de tempo útil por consumidor na busca da solução extrajudicial e judicial de controvérsia motivada por conduta ilícita do fornecedor extrapola o mero dissabor e resulta em efetivo dano moral." 3
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina segue esse mesmo entendimento:
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. NÃO FORNECIMENTO DE BOLETOS AO DEVEDOR. CONSUMIDOR QUE SOFRE TRANSTORNOS TODOS OS MESES PARA OBTER A SEGUNDA VIA. PERDA DE TEMPO ÚTIL. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INSURGÊNCIA DA RÉ. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE ATO ILÍCITO. ABALO ANÍMICO. DEMANDANTE QUE POR OITO MESES TENTOU SOLUCIONAR O PROBLEMA E NÃO FOI ATENDIDO. DESCASO DA RÉ. DANO MORAL CONFIGURADO. CASO CONCRETO QUE TRANSBORDOU O MERO ABORRECIMENTO. VERBA INDENIZATÓRIA. PEDIDO DE MINORAÇÃO. VALOR ARBITRADO QUE SE MOSTRA ADEQUADO ÀS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO. QUANTUM MANTIDO. JUROS DE MORA. FIXAÇÃO DESDE O EVENTO DANOSO. RELAÇÃO CONTRATUAL. FLUÊNCIA DEVE TER COMO MARCO INICIAL A DATA DA CITAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO." 4
Ressalta-se ainda que o Tribunal de Justiça Catarinense, em outro julgado, resume com precisão a realidade da grande maioria dos atendimentos prestado pelas empresas/fornecedoras de serviços aos consumidores:
"Os contratempos naturais e até mesmo singelos desencontros de nossas relações em sociedade, de forma esporádica e avulsa, não podem ser comparados a práticas rotineiras de empresas que tratam as pessoas como cidadãos de segunda classe, economizando em capacitação de atendentes e em tecnologia, que juntos poderiam ser tão eficientes para resolver problemas como o são para oferecer e vender produtos e serviços. Para isso, as linhas estão sempre disponíveis, os sistemas estão sempre no ar e o atendimento tem início, meio e fim, numa única ligação. Quando, todavia, se quer exercer algum direito legítimo que possa de alguma forma contrariar os interesses do fornecedor, a regra é que os caminhos sejam tortuosos e turbulentos, fazendo da eficiência e satisfação do usuário uma espécie de loteria." 5
O renomado civilista Pablo Stolze Gagliano, citando a doutrina de Marcos Dessaune, alude diversas situações que demonstram abusos de direitos praticados pelo fornecedor em detrimento do Consumidor que, por sua vez, se vê obrigado a perder grande parte do seu valioso tempo para que um serviço seja prestado de forma efetiva e perfeita:
"Mesmo que o Código de Defesa do Consumidor (lei 8,078/90) preconize que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo devam ter padrões adequados de qualidade, de segurança, de durabilidade e de desempenho – para que sejam úteis e não causem riscos ou danos ao consumidor – e também proíba, por outro lado, quaisquer práticas abusivas, ainda são 'normais' em nosso País situações nocivas como:
- Enfrentar uma fila demorada na agencia bancária em que, dos 10 guichês existentes, só há dois ou três abertos para atendimento ao público;
- Ter que retornar à loja (quando ao se é direcionado à assistência técnica autorizada ou ao fabricante) para reclamar de um produto eletroeletrônico que já apresenta problema alguns dias ou semanas depois de comprado;
(...)
- Telefonar insistentemente para o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) de uma empresa, contando a mesma história várias vezes, para tentar cancelar um serviço indesejado ou uma cobrança indevida, ou mesmo pra pedir novas providências acerca de um produto ou serviço defeituoso renitente, mas repetidamente negligenciado;
(...)
- Levar repetidas vezes à oficina, por causa de um vício reincidente, um veículo que frequentemente sai de lá não só com o problema original intacto, mas também com outro problema que não existia antes;
- Ter a obrigação de chegar com a devida antecedência ao aeroporto e depois descobrir que precisará ficar uma, duas, três, quatro horas aguardando desconfortavelmente pelo voo que está atrasado, algumas vezes até dentro do avião – cansado, com calor e com fome – sem obter da empresa responsável informações precisas sobre o problema, tampouco a assistência material que a ela compete." 6
Conforme entendimentos jurisprudenciais e doutrinário acima citados, é possível constatar que em situações de desgastes que geram o esgotamento emocional dos consumidores por culpa exclusiva dos fornecedores, que os forçam a permanecer longos e constantes perídios para tentar desfazer erros cometidos pelos próprios prestadores de serviço, como por exemplo em atendimento nas Call Centers, filas de bancos/lotéricas, levar repetidas vezes o produto para a manutenção, situações estas que se repetem dia após dia, configura apropriação/extorsão indevida e ilícita do tempo livre, dando ensejo a indenização por danos morais.
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1 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 4ª Ed. Vol.4, 2004. São Paulo: Editora Atlas. p. 24.
2 TJSC, Apelação Cível n. 0300406-51.2014.8.24.0021, de Cunha Porã, rel. Des. Luiz Fernando Boller, Primeira Câmara de Direito Público, j. 16-05-2017.
3 BRASIL, STJ. REsp 1641832, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, julgado em 14-3-2017.
4 TJSC, Apelação Cível n. 0301383-15.2015.8.24.0019, de Concórdia, rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 06-06-2017.
5 TJSC, Apelação Cível n. 0000777-12.2012.8.24.0069, de Sombrio, rel. Des. Paulo Henrique Moritz Martins da Silva, Primeira Câmara de Direito Público, j. 27-06-2017.
6 DESSAUNE, Marcos. Desvio Produtivo do Consumidor – O Prejuízo do Tempo Desperdiçado. São Paulo: RT, 2011, págs. 47-48, in: STOLZE, Pablo. Responsabilidade civil pela perda do tempo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3540, 11 mar. 2013. Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2018.
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*Paulo Henrique de Moraes Júnior é advogado atuante nas áreas: civil, processual civil, consumidor e imobiliário.