Ao longo dos últimos anos inúmeras empresas foram autuadas pelos Estados com a exigência de diferença de alíquota de ICMS (interna x interestadual), a partir da constatação de que não haveria prova de que as mercadorias transpuseram a fronteira do território estadual, ainda que o transporte fosse de responsabilidade do comprador.
A pretensão fiscal, acolhida em alguns precedentes judiciais, fundamenta-se na alegação de que a incidência da alíquota interestadual, inferior à interna, dependeria da prova de que o bem saiu do Estado de origem, não sendo viável ao vendedor alegar que a operação foi realizada sob a cláusula FOB e, além disso, tratando-se de infração tributária prevaleceria a responsabilidade objetiva do art. 136 do CTN.
As empresas autuadas, de seu turno, alegam que, independentemente da discussão atinente à cláusula FOB, tendo sido a venda realizada de boa-fé a quem se encontrava regular nos registros públicos pertinentes, não poderiam ser responsabilizadas pelo desvio no local de entrega cometido pelo comprador, a quem incumbiria responder pessoal e exclusivamente pela infração tributária (o que foi acolhido no julgamento, dentre outros, dos RESPs 1.305.856 e 1.574.489).
Em boa hora sobreveio o julgamento recentemente realizado pela 1ª Seção do STJ (ERESP 1.657.359) no qual prevaleceu, por unanimidade, a segunda posição, tendo sido fixada a tese de que a responsabilização do vendedor depende de prova, a ser feita pelo Fisco, de que tenha participado intencionalmente da infração, incumbindo às instâncias de origem verificar a matéria de fato envolvida.
A decisão é relevante não apenas porque influencia a situação específica dos inúmeros contribuintes autuados por conta de uma infração que, na realidade, foi cometida por outros, mas, em especial, porque segue a linha adotada há anos pelo próprio STJ de proteger o contribuinte que age de boa-fé.
Há muito tempo aquela Corte Superior definiu, em hipóteses semelhantes, que o contribuinte que adota as cautelas comerciais antes de contratar uma compra ou venda não pode ser penalizado pela constatação, em momento posterior, de que o terceiro descumpriu o contrato, cometeu ilícito fiscal (e às vezes até mesmo criminal) ou veio a ter sua "inidoneidade" formalmente declarada.
Nesse sentido, em matéria de operação realizada com contribuinte posteriormente declarado inidôneo, a 1ª Seção já havia definido a questão por meio de recurso repetitivo (RESP 1.148.444), que deu origem à Súmula n. 509 ("É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda").
A questão específica da venda interestadual, por outro lado, vai muito além da discussão acerca da cláusula FOB. Não se questiona que, como qualquer outra convenção particular, não é oponível ao Fisco (art. 123 do CTN), ao menos não para, por si só, definir ou alterar a sujeição passiva. O ponto não é esse.
Discute-se que, se o comprador ficou responsável pelo transporte do bem para seu estabelecimento situado em outro Estado, não se pode exigir do vendedor que comprove a entrega física naquele local, até porque se trata de prova materialmente impossível de realizar. O vendedor não tem como seguir o bem nem evitar que o comprador, intencionalmente, desvie o local de entrega.
A esse respeito já advertira o Exmo. Min. Milton Luiz Pereira, no passado, a propósito da isenção de ICMS condicionada à utilização do insumo pelo adquirente em determinada finalidade, que "órfã de lei, constitui delírio a exigência de perene fiscalização, pelo vendedor da destinação final da mercadoria" (RESP 34.347-5), o que parece evidente em razão de a atividade de fiscalização ser privativa da Administração, carecendo ao particular o exercício do poder de polícia.
Além do mais, punir o vendedor por ato ilícito do qual não participou, cometido exclusivamente por terceiro, implicaria criar no âmbito tributário uma espécie de "Teoria do Risco Integral", que não tem previsão no CTN ou na LC 87/96, que regula o ICMS em âmbito nacional, sendo vedado aos Estados a criação de responsabilidade tributária fora das hipóteses previstas em lei complementar nacional (art. 146, III da CF/88).
O particular, portanto, deve comprovar que se utilizou dos meios disponíveis para verificar, previamente às operações interestaduais, que se cercou das cautelas comerciais de praxe. Se o cadastro do comprador está ativo e habilitado junto à Receita Federal e à Secretaria Estadual da Fazenda, não há motivo para desconfiar de seu endereço ou de sua capacidade operacional. Se a mercadoria foi paga pelo próprio comprador, não há razão para desconfiar da origem dos recursos. Se a documentação de transporte estiver em ordem, não há óbice à entrega do bem ao transportador contratado e enviado pelo comprador. Incumbe ao Fisco comprovar que o vendedor, de algum modo, teria participado da infração. Somente nessa hipótese tem cabimento a imposição de responsabilidade.
Se, após a tradição, procedeu o adquirente a nova venda do bem no mesmo Estado, trata-se de operação lícita, prevista na legislação e que caracteriza novo fato gerador do ICMS (LC 87/96, art. 12, IV), cabendo-lhe recolher a diferença de ICMS daí decorrente. O vendedor original somente poderá ser solidariamente responsabilizado se comprovada sua participação intencional em eventual infração.
Em suma, com o julgamento do ERESP 1.657.359 ratificou a Primeira Seção do STJ (que reúne as duas Turmas de Direito Público competentes para o exame do tema), por unanimidade e em boa hora, o entendimento de que incumbe ao Fisco comprovar a participação do contribuinte em eventual ato infracional, sendo-lhe vedador atribuir a responsabilidade por ilícito imputável unicamente a terceiro.
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*Luis Henrique da Costa Pires é advogado no escritório Dias de Souza Advogados Associados.