Imagine a cena: a mãe ouve o filho chamar o pai, ex-marido dela, de cunhado.
Deu nó? Parece filme, não? Filme daqueles feitos por cineastas que retratam dramas existenciais e familiares, como os dirigidos por Woody Allen? Pois na cena descrita, Woody Allen é um dos protagonistas, e o episódio é real.
A mãe em questão é a atriz Mia Farrow, que viveu 12 anos com Allen e teve – com ele –três filhos, sendo dois adotivos e um biológico. É o filho biológico, Ronan Farrow, o autor da frase – uma flecha certeira, pode-se dizer –, que ficou famosa em 2012 no Dia dos Pais, nos Estados Unidos. Foi no twitter, para muita gente ver, que ele comemorou a data postando para o pai: "Feliz dia do Cunhado".
Vamos aos fatos. Antes de viver 12 anos com Allen, Mia Farrow foi casada com o cantor Frank Sinatra e com o pianista e maestro André Previn. Ao longo dos três casamentos, ela teve dez filhos adotivos e quatro filhos biológicos. Fazendo as contas, dá para perceber que quando Allen entrou para a família, a casa já estava cheia.
Talvez por isso morassem em casas separadas. Entre as duas residências havia uma distância considerável: o Central Park, em Nova York. Ao longo da carreira, Farrow trabalhou em 34 filmes, sendo 12 deles dirigidos por Allen. Em meio ao burburinho de filhos e filmagens, a atriz se deparou com fotos de uma de suas filhas com Previn, clicadas no apartamento de Allen. A moça Soon-Yi Previn, então com 21 anos, estava nua nas fotos.
Crônicas acerca desse verdadeiro escândalo no mundo artístico, ocorrido em 1992, dão conta de que ainda houve uma reunião familiar na casa de Farrow para se avaliar a situação. Nesse encontro, Allen admitiu o relacionamento e ficou decidida a mudança da garota para o apartamento de Allen. Na época e com os nervos à flor da pele, o casal brigou na justiça e foram feitas as mais variadas acusações. Farrow quis piorar a situação de Allen, acusando-o de abuso sexual em relação a uma das meninas adotadas pelo casal. Allen, por sua vez, ameaçou pegar a guarda dos três filhos.
No final das contas, nunca ficou provado que Allen tenha abusado sexualmente de sua filha. Tampouco obteve a guarda das crianças. Mas com Soon-Yi ele está casado até hoje e tem duas filhas adotivas, Bechet e Manzie Tio. O filho Ronan, atualmente com 30 anos – na época do imbróglio tinha apenas cinco - não se conforma. Para ele, obviamente, o pai casou com a irmã e essa escolha é considerada por ele uma "transgressão moral". As filhas de Allen, por exemplo, são ao mesmo tempo irmãs e sobrinhas de Ronan. Mia, por sua vez, diz que há muito tempo não considera mais Soon-Yi como sua filha.
Se é difícil para o núcleo familiar elaborar uma situação dessas, tampouco a lei, pelo menos no Brasil, permitiria legalizar o relacionamento de Allen com Soon Yi. Aqui, eles não poderiam casar-se ou mesmo oficializar união estável. Padrastos e madrastas – não inventaram ainda nomes melhores para eles – são considerados parentes com afinidade em linha reta; têm com seus enteados o mesmo grau de parentesco de sogros e sogras com seus genros e noras.
Ocorre, então, que pessoas com esse grau de parentesco – e com os chamados parentes colaterais até terceiro grau - não podem se casar, nem mesmo legalizar união estável, de acordo com as leis vigentes no nosso país. E o que pouca gente sabe é que relações de parentesco não se extinguem a partir do divórcio ou da dissolução da união estável. Ou seja, de nada adiantaria Allen separar-se de Farrow para, posteriormente, casar-se com Soon-Yi. Uma vez enteada, para sempre enteada. Assim como não é permitido a uma nora ou genro casar-se com ex-sogro ou ex-sogra. Os parentes mais próximos possíveis de relacionamentos formais – casamento ou união estável – são os primos, denominados pela lei de "parentes colaterais de quarto grau".
Desde 1988, as leis brasileiras entendem a família como o núcleo que se firma a partir de laços afetivos. Permeando as atuais configurações familiares, está o conceito de sócioafetividade, que vem, ao longo dos anos, transformando alguns aspectos do Direito de Família. Por exemplo, desde 1997, enteados e enteadas equiparam-se aos filhos para fins previdenciários. Mais recentemente, passou a ser permitido aos enteados requerer mudança em registros de nascimento para fazer constar o nome do padrasto ou madrasta. Tal iniciativa ganha força quando há total afastamento do pai ou da mãe biológicos. Na verdade, fazer constar o sobrenome confirma o forte laço de afetividade e, justamente, a responsabilidade que surge a partir desse vínculo.
Em recente decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, os cartórios de registro civil poderão adotar novos modelos de certidões de nascimento, casamento e óbito. Essas alterações visam facilitar registros de paternidade e maternidade de filhos não biológicos entre outras medidas.
A principal novidade é a que permite a inclusão de nomes de pais sócioafetivos na Certidão de Nascimento sem a necessidade de recorrer ao Judiciário. Assim, para que um padrasto, madrasta ou novo companheiro de um dos pais da criança conste no documento como pai ou mãe, basta que o responsável legal por ela manifeste esse desejo no cartório. No caso de filhos a partir dos 12 anos de idade é necessário seu consentimento.
Observamos que, certamente, a medida tomada pelo CNJ visou a facilitação legal dos vínculos de amor e afeto criados ao longo da vida entre pais e mães sócioafetivos e a criança. Entretanto há necessidade de se esclarecer que a partir da decisão de incluir a paternidade ou a maternidade sócioafetiva na Certidão de Nascimento da criança ou adolescente, este terá todos os direitos patrimoniais e sucessórios de um herdeiro necessário.
Antigamente, quando o mundo girava mais lento e as pessoas namoravam de fato, costumava-se observar os parentes; e, não à toa, aos enamorados se dizia: cuidado, casa-se com toda a família!
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*Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP, do IBDFAM- Instituto Brasileiro de Direito de Famíia, e do IASP.