Tem se tornado prática corriqueira nas querelas criminais a abstenção intencional de alguns juízes em enfrentar os argumentos lançados pela defesa. Confesso que já estive perante magistrados que, honrando a toga que lhes fora posta e a Constituição que juraram defender, procuraram honrosamente dizer as razões da tese do advogado do Acusado estar errada. E é assim que deveria ser. Entretanto, cresce o número de ocorrências onde as razões da defesa têm sido relegado ao canto da sala do esquecimento.
Digo isso porque é dialeticamente que se desenvolve o contencioso criminal, eis que a proposta do Ministério Público é condenar (pois em sua fala inicial, na denúncia, pede a condenação), ao que a defesa deverá pleitear a absolvição, atenuação de pena ou nulidade, tendo o juiz, por fim, a honrosa e constitucional tarefa de conjugar ambas as proposições e expor ao mundo os motivos pelos quais um está certo e o outro, errado (segundo as provas e princípios constitucionais adotados).
Nesse ponto, são vários os argumentos políticos, jurídicos e sociais que fizeram a Constituinte aprovar a inclusão do texto do art. 93, IX, da CF, que obriga ao Judiciário fundamentar todas as suas decisões, sob pena de nulidade. Nesse dever avulta, por meio da motivação, o respeito ao contraditório.
Segundo COLESANTI, citado por GOMES FILHO1 , "a garantia da motivação representa a última manifestação do contraditório, pois o dever de enunciar os motivos do provimento traduz-se, para o juiz, na obrigação de levar em conta os resultados do contraditório e, ao mesmo tempo, demonstrar que o iter de formação do provimento de desenvolveu-se à luz da participação dos interessados" (grifou-se).
Como última manifestação do contraditório, portanto, a decisão judicial precisa albergar esta garantia constitucional. E só o fará através da devida motivação, mas não qualquer uma, "pois a estrutura dialética do processo não se esgota com a mera participação dos interessados em contraditório", implicando, sobretudo, "a relevância dessa participação para o autor do provimento; seus resultados podem até ser desatendidos, mas jamais ignorados!" (grifou-se)2
Conclui-se a partir disso que não enfrentar o argumento da defesa, mesmo numa decisão motivada, é ignorá-lo, e ignorá-lo implica em atender à sedução do decisionismo, que é a expressão indubitável do desprezo à participação dos atores processuais na construção da decisão.
Veja-se, porém, que a maior parte da jurisprudência tem tratado com parcimônia esta questão, muito a favor da acusação, afirmando que não é nula a decisão pelo não enfrentamento da tese de defesa, quando, reflexamente, "esta restar afastada pelo acolhimento da outra tese, que, em um raciocínio lógico, seja com ela incompatível". Por todos, o recente julgado abaixo:
RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO, RESISTÊNCIA, PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO E RESTRITO. PRELIMINAR. AUSÊNCIA DE ANÁLISE DE TESE DEFENSIVA. INOCORRÊNCIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA OU IMPRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. DECOTE DA QUALIFICADORA. IMPROCEDÊNCIA. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INAPLICABILIDADE. DIREITO DE AGUARDAR O JULGAMENTO EM LIBERDADE. DESCABIMENTO. RECURSOS DESPROVIDOS. 1- Não se anula decisão por não enfrentamento de tese da defesa, quando reflexamente, essa restar afastada pelo acolhimento de outra tese, que, em um raciocínio lógico, seja com ela incompatível. 2- Existindo indícios suficientes de participação dos réus no delito de homicídio qualificado, não se vislumbrando hipótese de causa de isenção de pena ou exclusão do crime, é de rigor a manutenção da decisão de pronúncia, ficando o exame mais acurado do conjunto probatório a cargo do Conselho de Sentença. 3- Na fase de pronúncia, o decote das qualificadoras só é possível se manifestamente improcedentes, descabidas e sem qualquer apoio no processo, o que não é o caso dos autos. 4- Não há que se aplicar o princípio da consunção quanto não é possível aferir, com segurança, que as armas de fogo foram utilizadas apenas como crime meio para a consumação do crime fim, devendo tal questão ser apreciada pelo Tribunal do Júri. 5- Restando, suficientemente, fundamentado o indeferimento do pedido para aguardar em liberdade o julgamento pelo Tribunal do Júri na r. decisão de pronúncia, inviável a concessão da liberdade. (TJ-MG; RSE 1.0351.16.005207-9/001; Rel. Des. Eduardo Machado; Julg. 01/08/2017; DJEMG 09/08/2017) (grifou-se)
Esse processo dialógico a ser feito para que sistematicamente se considere a tese defensiva rechaçada não chega ao mesmo resultado em todos os casos. Por isso mesmo esparsas decisões dos tribunais têm reconhecido a nulidade da decisão quando da ausência de análise da tese de defesa:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA. PRONÚNCIA. NÃO ENFRENTAMENTO DE TESE DEFENSIVA. NULIDADE. DECISÃO DESCONSTITUÍDA. O não enfrentamento de tese defensiva inequivocamente gera para o acusado a perda de uma chance de obter um provimento jurisdicional favorável, e justamente nesse ponto está a evidência do prejuízo, a impor a desconstituição do julgado. No caso, a defesa suscitou a tese de ausência de animus necandi. O não enfrentamento de tal tese na decisão de pronúncia constitui inequívoca nulidade. Decisão desconstituída. Mérito prejudicado. Decisão desconstituída, de ofício. Mérito prejudicado. (TJ-RS; RSE 0159713-11.2017.8.21.7000; Porto Alegre; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des. Sérgio Miguel Achutti Blattes; Julg. 05/07/2017; DJERS 12/07/2017) (grifou-se)Apesar da divergência na jurisprudência a favor da acusação, propõe-se como paradigma a ser seguido a decisão acima, eis que o juízo, ao decidir, refuta uma das hipóteses que lhe foram apresentadas: ou a da acusação, ou a da defesa. Se rechaça uma, não fundamentadamente, ou acolhe outra, também não fundamentadamente, abre portas à íntima convicção, lugar de habitação do arbítrio judicial.
FERRAJOLI fala sobre o princípio da possiblidade de refutação e traça a necessidade do rechaço às contra hipóteses: “O princípio da possibilidade de refutação, ao não estar garantido por poderes de defesa comparáveis aos poderes da acusação e ao não estar estabelecido normativamente o valor dirimente das contraprovas e das contra hipóteses não refutadas, converteu-se igualmente em um princípio genérico de presença das razões do acusado” (grifou-se).
Acrescenta ainda o ítalo mestre que a motivação do juiz, assim, "é uma justificação adequada da condenação só se, além de apoiar a hipótese acusatória com uma pluralidade de confirmações não contraditadas por qualquer contraprova, também estiver em condições de desmentir com adequadas contraprovas todas as contra hipóteses formuladas e formuláveis" .
É dizer, a presença das razões do Acusado no processo não basta para se assegurar a garantia da devida motivação. É necessário o enfrentamento da argumentação da defesa, sob pena de se tomar a atuação do Ministério Público e as provas por ele apresentadas como o único vetor pelo qual se guia o julgador no momento de decidir!
A defesa e sua argumentação não são meros adereços do processo, mas sim a face dialética que precisa passar pelo crivo do enfrentamento epistemológico na decisão judicial.
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1 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 84.
2 Idem, 84-85.
3 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 147.
4 FERRAJOLI, 2014, p. 145.
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*Jimmy Deyglisson é advogado criminalista e vice-presidente da ABRACRIM-MA.