No tempo da globalização, da internet, do fim das ideologias, do diálogo entre o relativismo e a busca da verdade, a proposta de esboçar uma revisitação de alguns pensamentos romanos é uma escolha que concorre e que persegue valores precisos e tem finalidade, ousadamente, no sentido de conteúdo, de memória cultural e até economia, porque, quanto a esta última, trata de tentar reproduzir e comparar valores absolutos (éticos e estéticos) da Roma antiga com usos e costumes contemporâneos (este esboço introdutório tem como fonte um texto de Bruno Forte1).
Pois bem, partindo do que Fustel de Coulanges, com raro brilho, conseguiu enfeixar em "A Cidade Antiga"2, em memoráveis estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma, escolhemos citações e locuções daquela fonte e que, a nosso único juízo, poderiam vingar no mundo globalizado.
1 – Da história!
"Cursus Honorum"3, a saber, a tradução sem rigor: "Caminho dos homens, carreira de honra". Na Roma antiga, essa carreira de honras era regulamentada.
A ordem das "magistraturas" (dos que tinham a função de aplicar a lei), com suas funções repartidas em diversas gamas de atividades, sempre relacionadas com a administração da lei. Dois exemplos: o questeur cuida das investigações criminais e financeiras; o censeur, inspetor de impostos, avalia as fortunas (faz o censo), para cobrar impostos.
Difícil não é enxergar que, já em tempos passados, ocupar cargos de honra, além do destaque social, poderia levar o honrado a muitos ganhos extras.
2 – Dentro da religião, do seu universo, destaco "Credo quia absurdum"4: "eu creio ainda que absurdo".
O "Creio" é a primeira palavra de oração que manifesta a fé cristã, posteriormente usada com o sentido de aceitação.
Mas, se a expressão "ainda que absurdo" parece um contrassenso em latim, a frase explica a fé, fora de toda razão. Ela levou Pascal a reinterpreta-la, dando-lhe este sentido: "Eu creio, porque seria absurdo não crer".
3 – Do universo da filosofia: "Stultorum numerus est infinitus"5 e "Homo homini lupus"6.
Da primeira: "o universo de imbecis é infinito", hoje valeria para representar o que somos quando votamos em quem nos dirige; enquanto que: "o homem é um lobo para o homem", expressão que teve magistrais interpretações de Erasmo, Sêneca, Montaigne e Rabelais. O exemplo de Cabral e seu carro forte, girando com dinheiro pelas ruas do Rio de Janeiro, em um "footing" macabro, amolda-se a expressão.
4 – Da lógica clássica: "Contra principia negantem non est disputandum"7 sendo: "inútil discutir se não se concorda sobre os princípios" e "pro domo (sua)"8 ou: "para sua casa, para sua própria causa".
Confronto as duas expressões para o Brasil contemporâneo e concluo: os magistrados, os procuradores e desses ocupantes de altos cargos no sistema de distribuição da justiça não querem discutir princípios de moralidade pública para um país que, até agora, não deu certo. E porquê? Pro domo (sua)! Defendem seus vergonhosos privilégios!
5 – E da justiça romana?
Duas pérolas: "Contra factum non datur argumentum"9: "contra um fato não há argumento" e "corruptissima re publica plurimae"10: "as leis em grande número são (produto) de um Estado muito corrompido".
De Elisabeth Daumesnil, "o princípio do direito ressalta a importância de prova material ou factual. É o que se consagra de facto (de fato) que tem valor imediato. Homens de importância e juristas de grande qualidade, os romanos, não obstante serem pessoas de argúcia, não saberiam ir, por meio de palavras, contra aquilo que era provado de fato.
Mas, para o pobre asno dos "animais doentes com peste" (La Fontaine), o fato é qu'il broute e os hipócritas que aparecem ainda pior, condenando-os sem vergonha.
Partindo de Tácito, o excelso historiador romano, que evocou o fim da república, sendo uma das causas o excesso de leis, pois é conhecido o aforisma "quanto mais leis tem o Estado, pior é", lembro que "corruptíssima" é superlativo. E, ao leitor do Migalhas, não necessita cogitar que, sendo o outro superlativo "plurime" a consciência romana viu, na inflação legislativa, a que foi carimbada pelo Papa Gregório I (VI século) com sua aproximação do profano político ao moral: "Corruptio optimi pessima est", ou "corrupção no que tem de melhor é o pior".
Ao leitor: será que devemos dormir com o anátema: "Do país que não deu certo?"
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1 FORTE, Bruno. Piccola Introduzione alla Vita Cristiana. Biblioteca universale cristiana, Editrice San Paolo: Milão, 2012.
2 COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2011. 528 p.
3 Les 100 citations et locutions pour ne pas perdre son latin. Le Figaro Littéraire: Paris, 2015. Pag. 14
4 Pag. 22, idem
5 Pag. 40, idem
6 Pag. 50, idem
7 pag. 76, idem
8 pag. 77, idem
9 pag. 90, idem
10 pag. 99, idem
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