A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, assegura: "(…) aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".
Para manutenção de um privilégio temporário, é essencial que as criações industriais cumpram no mercado a sua função social, sob pena de atentar contra a livre concorrência e os legítimos interesses da sociedade.
"Diversamente do que ocorre com a propriedade móvel dos bens físicos, a propriedade sobre a marca perece se não se faz uso dela no mercado. Ou seja, a falta de exercício de uma faculdade inerente ao direito, após certo prazo, leva à extinção da propriedade".1
Nos casos relacionados à marca, a lei (9.279/96) assegura a proteção àquele que primeiro levou a registro um signo para identificar um produto ou serviço. Com a aquisição desse direito de propriedade, a legislação exige que, após o seu registro, a marca seja usada de fato pelo seu titular.
"Usar, no sentido que o direito de propriedade industrial empresta a esse verbo é projetar a marca para o mundo, para que ela, antes mera potencialidade, passe a exercer a função a que se destina.2"
Dentre os requisitos para configurar o uso legítimo de um signo como marca, leciona Denis Borges Barbosa3 que: (i) o uso deve ser conforme o registrado, ou com modificações que não alterem seu caráter original do certificado do registro; (ii) tenha função distintiva, concomitante, ou não, com o uso comunicativo ou persuasório, sendo aquele que se destina a garantir a criação ou continuidade da reputação relativa ao produto ou serviço (a imagem-de-marca); (iii) uso substancial ou não casual nos negócios próprio do titular do nome.
Assim, a falta de uso de um registro de marca – como marca – por um período igual ou superior a 5 (cinco) anos, faz com que o signo perca a sua função social, tornando-se um sinal distintivo inerte4.
"Assim sendo, têm razão os apelados, pois a aposição do signo em mera seção de uma revista, por si só, não seria apto a distinguir efetivamente um produto, não sendo, assim, demonstração de efetivo uso da marca. Tal discussão, aliás, não pode desviar o foco de atenção quanto ao fato basilar da falta de prova do uso da marca, qualquer quer fosse a sua forma, durante o período investigado, já acima identificado…" (TRF2, AC 200251014902870, Primeira Turma Especializada, Desembargadora, Márcia Helena Nunes, DJ, 08 de abril de 2008).
Então, dentro dos institutos previstos em lei para a decretação da perda de direito, o instrumento da caducidade se torna um dos principais meios de 'defesa' por parte de terceiros que se interessem por tal sinal sem a devida utência.
Com a instauração desse procedimento, por um titular de pedido de registro de marca com legítimo interesse, o titular do registro inviabilizador, concedido há mais de 5 (cinco) anos, será intimado para comprovar o uso do sinal para manutenção do seu registro.
"Necessário, portanto, se torna que o interessado ao requerer o pedido de caducidade do registro de uma marca tenha a obrigação de comprovar o seu legitimo interesse. Este poderá ser alicerçado pelo requerimento do pedido de registo de marca igual ou semelhante, para os mesmos produtos, mercadorias ou serviços e bem assim para os pertencentes a gênero de atividade afim."5
Faz-se imperioso ressaltar que, ao contrário das legislações anteriores que previam a caducidade ex offício e/ou que obrigava a demonstração pelo Requerente da caducidade de que o signo impugnado não se encontrava em uso, o incumbit probatio, na atual legislação, recai sobre o titular do registro que teve o procedimento de caducidade instaurado.
Dentre as causas consideradas como legítimas para a instauração de um procedimento de caducidade, o Manual de Marcas6, editado pelo INPI, dispõe: a) Marca registrada idêntica ou semelhante para assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins; b) Pedido de registro de marca idêntica ou semelhante para assinalar produtos idênticos ou afins ainda pendentes de decisão final; c) Direito de personalidade; d) Direitos autorais; e) Outros direitos que caracterizem a atuação do requerente em segmento mercadológico idêntico ou afim aos produtos e serviços assinalados pela marca caducanda.
Outro fator que demonstra o legítimo interesse para a instauração de um pedido de caducidade ocorre quando um registro já existente provoca o indeferimento de um pedido posterior de registro de marca feito por outrem. Desta forma, com sua pretensão negada, e vindo o seu titular a ter conhecimento da falta de uso ou paralisação do uso do dito registro anterior, o mesmo estará legitimado para requerer a instauração do procedimento de caducidade concomitante ao recurso contra a decisão de indeferimento.
Com o pedido de caducidade, o exame de mérito do recurso ficará condicionado ao exame do requerimento de caducidade.
"O mesmo interesse poderá também ser demonstrado se um registro existente provocar o indeferimento de um pedido de registro de marca, posteriormente requerido de natureza igual ou semelhante, para os mesmos ou similares produtos, mercadorias ou serviços. Neste caso e se a colidência entre as marcas para distinguir os mesmos ou semelhantes produtos, mercadorias ou afins for flagrante, não restará dúvida de que a concessão do pedido de registro denegado, estará condicionada à declaração de caducidade do registro que lhe é anterior".
"Nestas condições, não temos dúvida em afirmar que o requerimento do pedido de caducidade do registro de uma marca só poderá ser alicerçado pela prévia comprovação da existência de um pedido de registro de marca." 7
O ato de instauração de um procedimento de caducidade atribui dúvida quanto ao preenchimento da função social de um registro de marca e condiciona a análise do mérito do pedido de registro à decisão do procedimento de caducidade.
"É de notar-se que, também para o caso das marcas, seu uso social inclui um compromisso necessário com a utilidade (uso efetivo do direito, ou, não ocorrendo, a caducidade que lança o signo na res nullius), com veracidade e licitude, sem falar de seus pressupostos de aquisição: a distinguibilidade e a chamada novidade relativa.8 "
O Tribunal Regional Federal da 2º Região, em recente decisão, considerou que ao INPI compete o dever de respeitar o curso lógico do procedimento administrativo previsto na lei 9.279/96.
"Portanto, considerando que os processos administrativos de concessão são nulos, vez que não observaram ao seu curso lógico, correta a sentença que determinou a decretação de nulidade dos atos administrativos de concessão dos registros nºs 822.015.285 e 822.015.293 da marca WILSON da SADIA S.A., atual BRF.
Com efeito, tendo em vista que são marcas idênticas que pertencem ao mesmo segmento mercadológico de produtos alimentícios, cuja anterioridade determina a propriedade da marca, em razão da colidência descrita no art. 124, XIX, da LPI, não se pode desconsiderar a ordem de análise dos pedidos.
Por isso, o INPI deve, em primeiro lugar, apreciar os requerimentos de extinção dos registros nºs 002.632.675 e 813.083.788, por caducidade; em segundo lugar, analisar o recurso interposto pela autora do indeferimento do registro nº 821.737.791; somente, então, analisar os pedidos de registros nº 822.015.285 e 822.015.293, da ré, tal como determinado na sentença.
Cabe, ainda, registrar que o argumento da apelante de que possui prioridade em relação à marca WILSON, pois seu registro mais antigo, de nº 002.632.675, foi depositado em 29/08/1951, não prospera, na medida que há processo administrativo discutindo a caducidade deste registro. Ademais, nesta ação está em questão a regularidade formal na análise dos processos administrativos que concederam as marcas da ré.
Por fim, tendo em vista que restaram comprovados, não apenas a probabilidade, mas o direito do autor, e o perigo de dano, requisitos do art. 300 do CPC de 2015, mantenho a tutela de urgência de natureza antecipada concedida na sentença. Ante o exposto, nego provimento à apelação.9"
Quando instaurado um pedido de caducidade, a ordem cronológica do exame de um pedido de registro, oposição e/ou recurso administrativo deve ficar condicionado à decisão do incidente para não beneficiar pedidos posteriormente depositados, alterando a ordem de preferência ao registro daquele signo por um legitimado.
A não observância do procedimento administrativo infringe, também, o disposto nos artigos 2º e parágrafo único, Incisos VIII e IX; 3º, I; 48 da lei 9784/99.
Artigo 2º - A administração pública obedecerá dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único – Nos processos administrativos serão observados, entre outros os critérios de:
(…)
VIII – observância das finalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX – a adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados.
Art. 3º O Administrado tem os seguintes direitos perante a administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações. Art. 48. A administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.
Isso porque, o examinador de marcas, em sua atividade funcional, não pode, discricionariamente, afastar-se do mandamento da legislação que determina que o pedido de caducidade é uma das formas de perda de direito e de extinção de registro.
Assim, a não observância de uma causa extintiva de um direito de propriedade, prevista na Legislação 9.279/96, artigos 142 e 143, viciará o ato administrativo de nulidade,
sujeitando-se à modificação judicial e responsabilização civil e criminal do administrador10,11.
Além de ferir o princípio da legalidade, o ato administrativo praticado pelo administrador público, sem observação do procedimento administrativo, fere o princípio da finalidade própria de todas as leis.
"Há desvio de poder e em consequência nulidade do ato, por violação da finalidade legal, tanto nos casos em que a atuação administrativa é estranha a qualquer finalidade pública, quanto naqueles em que o fim perseguido, se bem de interesse público, não é o fim preciso que a lei assinalava para tal ato". 12
Logo, o mínimo que o administrado espera é que, com a instauração de um procedimento administrativo, a administração pública obedeça às regras impostas pela lei, cumprindo, portanto, o interesse social.
Os atos administrativos só existirão e poderão ser exercidos na intensidade e na proporcionalidade da legalidade que estão vinculados para manutenção da segurança jurídica.
Assim, preleciona José dos Santos Carvalho Filho in "Processo Administrativo Federal – Comentários à lei 9.784 de 29/1/1999", Editora Lúmen Juris, 2005, p. 217: "Qualquer que seja a conduta administrativa, comissiva ou omissiva, em desacordo com a lei ou com o ato normativo pertinente, é possível ao interessado pleitear seja restaurada a legalidade, inclusive junto ao Poder Judiciário. Se existe omissão por parte do administrador, é lícito ao juiz, havendo ação com esse pedido, proferir sentença de conteúdo mandamental, sendo determinado ao agente omisso que cumpra a obrigação de fazer."
Em casos de equívocos cometidos pela administração pública, compete à Justiça Federal a análise das consequências do ato para restabelecer a ordem, evitando assim vícios insanáveis.
"É função do Poder Judiciário intervir na Administração Pública quando da emanação de decisões eivadas de vícios insanáveis, zelando pela legalidade de que devem ser investidos todos os atos administrativos, conforme dispõe o art. 37, CF, bem como pelos princípios de razoabilidade e proporcionalidade, conforme art. 2º da lei 9.784/99, regente do processo administrativo no âmbito federal".
"Sabe-se que o processo administrativo nada mais é do que a junção de sucessivos atos administrativos, cujo procedimento, apesar de pautado na margem de discricionariedade que a Administração tem para atuar, deve ser regular e estar em conformidade com a legalidade constitucionalmente apregoada".
"Assim, o processo administrativo em comento é nulo, por restarem infringidas diversas disposições legais e constitucionais assecuratórias do contraditório, da ampla defesa e da segurança jurídica do administrado, como a legalidade, a finalidade, a motivação, a razoabilidade e proporcionalidade de que devem se revestir os atos da Administração Pública".
(TRF-2 - REO: 201051510592330, Relator: Desembargador Federal ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES, Data de Julgamento: 21/05/2013, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA).
Por existir uma prioridade ao registro nos processos administrativos de marca, verifica- se que é de extrema importância que os administrados, por meio de seus mandatários, realizem o acompanhamento dos procedimentos administrativos, praticados pela Autarquia Federal, no sentido de sanar vícios cometidos pela Administração Pública no exercício da sua função institucional.
Diante do exposto, no caso apresentado quanto à caducidade e em outros casos, verifica-se que, quando a Autarquia Federal não respeita o cronograma decorrente dos pedidos de registro de marca e os procedimentos administrativos de perda de direito, ferem o princípio da legalidade, da finalidade e da segurança jurídica, atribuindo ao Poder Judiciário – quando devidamente provocado – a tarefa de anular ou sanear tal vilipêndio à isonomia e ao devido processo legal.
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1 Barbosa, Denis Borges - Novos estudos em Propriedade Intelectual 2011-2013 Volume I - Edição IBPI. pág. 28.
2 IDS – INSTITUTO DANNEMANN SIEMSEN DE ESTUDOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL – Comentários à Lei da Propriedade
Industrial, Editora Renovar, pág. 290.
3 Barbosa, Denis Borges - Novos estudos em Propriedade Intelectual 2011-2013 Volume I - Edição IBPI. pág. 28-37.
4 SOARES, José Carlos Tinoco – Caducidade do Registro de Marca – Editora RT – REVISTA DOS TRIBUNAIS – PÁG. 25 -“Como a finalidade precípua da marca de indústria, de comércio ou de serviço é a sua efetiva utilização em distinguindo e assinalando produtos, mercadorias ou serviços, é indispensável que esse direito seja exercido para que não pereça. Em sendo exercido é primordial que o uso seja regular, uniforme e de maneira efetiva”.
5 SOARES, José Carlos Tinoco – Caducidade do Registro de Marca – Editora RT – Revista dos Tribunais – pág. 15.
6 INPI (clique aqui)
7 SOARES, José Carlos Tinoco – Caducidade do Registro de Marca – Editora RT – Revista dos Tribunais – pág. 15.
8 Tratado da propriedade intelectual, Lumen Juris, 2010 (os três primeiros volumes, vol. I, cap.II (base constitucionais da propriedade intelectual), [7]§3.8 – Quais são os fins sociais da marca.
9 (TRF-2 - AC: 08114655220104025101 RJ 0811465-52.2010.4.02.5101, Relator: ANTONIO IVAN ATHIÉ, Data de Julgamento: 12/06/2017, 1ª TURMA ESPECIALIZADA)
10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: RT, 1996, p. 82 - “A legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.”
11 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 57 - “O
princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que ocupa a cúspide até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no direito brasileiro”.
12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 57.
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*Fábio Rodrigues Guimarães é especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio e sócio do escritório Denis Borges Barbosa Advogados.