Com dois anos de vigência do CPC, muitos temas ainda suscitam dúvidas.
Alguns são relevantíssimos e de ordem prática, entre eles a possibilidade de interpretação extensiva das hipóteses de agravo de instrumento (art. 1.015)1 e a discussão sobre a amplitude do julgamento estendido, se limitada ou não ao objeto da divergência (art. 942).2 Outros são igualmente importantes, mas possuem viés mais acadêmico.3
A proposta deste artigo é examinar uma questão relacionada ao julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356) – providência que tem cabimento quando um ou mais dos pedidos formulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso ou estiver em condições de imediato julgamento –, que não foi regulada pelo CPC e pode dar azo a uma indesejada "preclusão-surpresa".
Como se sabe, todas as decisões interlocutórias não agraváveis de plano (rol do art. 1.015) devem ser suscitadas em preliminar de apelação ou em contrarrazões (art. 1.009, § 1º). Não há que se falar em preclusão imediata. Por sua vez, na hipótese de julgamento antecipado parcial do mérito, o recurso cabível é o agravo de instrumento (art. 356, § 3º), que, se não interposto, acarreta o trânsito em julgado do decisum, com formação de coisa julgada material (art. 356, § 3º º).
O problema é que o CPC não especifica se, no aludido agravo de instrumento, o recorrente também precisa atacar as decisões interlocutórias anteriores, sob pena de preclusão.
A matéria ainda não foi consolidada pelos tribunais e na doutrina o assunto é polêmico. Há quem entenda que o recorrente deve impugnar todas as interlocutórias anteriores4 e também quem defenda a necessidade de impugnação apenas das interlocutórias prejudiciais e/ou relacionadas à parcela do mérito julgado.5
Pois bem, delimitado o tema, podemos avançar e tecer algumas considerações.
Sem dúvida, a "solução" mais simples seria impor às partes o ônus de atacar, indistintamente, todas as decisões interlocutórias anteriores. Isso eliminaria eventuais incertezas sobre quais seriam as decisões prejudiciais e/ou relacionadas à parcela de mérito decidida, evitando, assim, uma possível "preclusão-surpresa" na fase de apelação.
Porém, tal encaminhamento afetaria completamente a sistemática idealizada pelo legislador, que diferiu para a fase de apelação a análise das interlocutórias não agraváveis de plano. Além disso, antecipar a recorribilidade de todas as decisões interlocutórias poderia retardar o próprio andamento do feito em primeiro grau, já que, com muitos temas pendentes no tribunal, a tendência é que se aguarde o desenrolar do recurso.
Nesse sentido, a melhor orientação é "obrigar"6 o recorrente a atacar todas as decisões interlocutórias anteriores que tenham relação com a parcela do mérito julgado, não apenas as prejudiciais imediatamente lógicas (como, por exemplo, o indeferimento de uma prova que conduz à improcedência de um dos pedidos), mas também aquelas que podem repercutir na decisão parcial de mérito (como, por exemplo, a decisão que altera o valor atribuído à causa).
Imagine-se, por exemplo, uma decisão proferida no início do processo majorando o valor da causa (hipótese fora do rol do art. 1.015). Posteriormente, em decisão interlocutória parcial de mérito, o juiz julga improcedente um dos pedidos autorais, condenando o demandante ao pagamento de honorários advocatícios de dez por cento sobre o valor da causa. Transitada em julgado a decisão interlocutória, o réu executa e levanta a verba sucumbencial.
Nesse exemplo ilustrativo, se não fosse possível discutir desde logo o valor da causa, poderia ocorrer de o tribunal, futuramente, reduzir ou majorar o respectivo montante, afetando e atingindo diretamente o título transitado em julgado. Assim, "ou se haveria de entender que a decisão parcial não faria coisa julgada enquanto não escoado o prazo para a interposição de apelação contra a sentença", ou, então, que a apelação, nesse caso, "seria instrumento de desfazimento da coisa julgada, pois, acolhida a impugnação contra a decisão anterior, a decisão parcial seria desfeita".7
Nessa linha de raciocínio, pensamos, ainda, que, quando a decisão interlocutória anterior se conectar tanto à parcela do objeto litigioso julgado (art. 356) quanto à parcela que será examinada na futura sentença, a parte deve agravar desde logo, à luz dos princípios da boa-fé (art. 5º), da cooperação (art. 6º)8 e da eficiência processual (art. 8º), permitindo que o tema já esteja dirimido quando o apelo for apreciado. Com isso, minimiza-se o risco de decisões conflitantes e não se cria, por via oblíqua, uma "condicionante" à eficácia da futura sentença.
De qualquer modo, independentemente da interpretação que se adote, uma coisa é certa: enquanto o tema não for pacificado pelos tribunais, não se pode aceitar uma eventual "preclusão-surpresa". É o que pode acontecer se a parte recorrer apenas da decisão parcial de mérito e o tribunal entender, futuramente, que as prejudiciais lógicas deveriam ter sido impugnadas à época da interposição do agravo de instrumento. Ou, ainda, se a parte recorrer da decisão parcial de mérito e de todas as interlocutórias prejudiciais, e o tribunal alegar que as demais interlocutórias estariam preclusas, por não terem sido suscitadas no momento próprio.
Ora, assim como é vedada a prolação de decisão-surpresa, não se pode aceitar a tese de "preclusão-surpresa".
Nesse contexto, a recomendação – ao menos nesse momento de indefinição jurisprudencial – é que a parte recorra de tudo, isto é, de todas as interlocutórias anteriores à decisão parcial de mérito (art. 356), sejam prejudiciais lógicas ou não, minimizando-se, assim, as chances de uma desagregável surpresa no futuro.
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1 Recentemente, o STJ afetou o REsp 1.704.520/MT pela sistemática dos repetitivos e irá “definir a natureza do rol do art. 1.015 do CPC/15 e verificar a possibilidade de sua interpretação extensiva, para admitir a interposição de agravo de instrumento contra decisão interlocutória que verse sobre hipóteses não expressamente versadas nos incisos do referido dispositivo do Novo CPC”.
2 Para José Rogerio Cruz e Tucci, “ampliado o julgamento, com a convocação de outros desembargadores, estes devem proferir voto apenas e tão-somente nos limites da devolutividade, ensejada pela nova técnica contemplada pelo CPC, que se circunscreve ao dissenso estabelecido pelos votos já proferidos”. (CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites da devolução da matéria objeto da divergência no julgamento estendido). Por sua vez, Leonardo Carneiro da Cunha aponta que os “novos julgadores, convocados para que o julgamento tenha prosseguimento, não estão limitados a decidir sobre o ponto divergente. O julgamento está em aberto, não se tendo encerrado. Quem já votou pode alterar seu voto e quem foi convocado pode decidir sobre tudo que está pendente de deliberação definitiva.” (CUNHA, Leonardo Carneiro da. O julgamento ampliado do colegiado em caso de divergência (CPC, art. 942) e as repercussões práticas da definição de sua natureza jurídica. Disponível em clique aqui. Acesso em 11.03.18).
3 Como, por exemplo, a possibilidade de instauração de IRDR nas cortes superiores. Na visão de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha: “não há nada que impeça a instauração de IRDR em tribunal superior. É bem verdade que, no STJ, há o recurso especial repetitivo e, no STF, há o recurso extraordinário repetitivo e o recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, mas é possível haver IRDR em causas originárias e em outros tipos de recursos no âmbito dos tribunais superiores”. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 630. No mesmo sentido YARSHELL, Flávio Luiz. Incidente de resolução de demandas repetitivas nos tribunais superiores? Disponível em clique aqui. Acesso em 11.03.18. Em sentido contrário, a manifestação do Ministro Marco Aurélio Bellizze no CC 144.433/GO (ainda não concluído). Informação disponível em clique aqui. Acesso em 10.03.18.
4 UZEDA, Carolina. Interesse Recursal. Dissertação de mestrado defendida no último 6 de dezembro de 2017, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, p. 177-179. Texto gentilmente cedido pela autora para os estudos do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC).
5 Nesse sentido LEMOS, Vinicius Silva. O agravo de instrumento contra decisão parcial de mérito. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 259, set./2016, p.294; MOUZALAS, Rinaldo; ALBUQUERQUE, João Otávio Terceiro Neto B. de. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 260, out./2016, p. 219/220. Nessa mesma linha o Enunciado nº 611 do FPPC.
6 Usamos o verbo “obrigar” porque não é possível extrair essa exigência diretamente do texto do CPC.
7 DIDIER Jr., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. CPC-2015. O problema das decisões interlocutórias não agraváveis anteriores e o agravo de instrumento contra decisão parcial. Disponível em https://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-188/. Acesso em 10.03.18.
8 Para uma análise mais vertical do tema, ver o nosso MAZZOLA, Marcelo. Tutela Jurisdicional Colaborativa: a cooperação como fundamento autônomo de impugnação. CRV: Curitiba, 2017.
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*Marcelo Mazzola é sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados.