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Princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de concorrência, atividades econômicas¹ reguladas pela União Federal: inconstitucionalidade material e formal da lei estadual paranaense 18.822/16²

O tema da intervenção do Estado na economia está adstrito, imbricado com o regime constitucional da ordem econômica, notadamente com os princípios das liberdades de iniciativa e de concorrência.

23/3/2018

1. A Constituição de 1988, no capítulo referente aos princípios gerais da atividade econômica, reforça, no parágrafo único do artigo. 170, a proteção ao princípio da livre iniciativa (já contemplado, como fundamento da República Federativa do Brasil, no artigo 1º) e também prevê, expressamente, a necessidade de observância do princípio da livre concorrência.

2. Ainda que o texto constitucional não afaste, de forma integral, a possibilidade de intervenção estatal na economia, a atuação interventiva do Estado (administrador/legislador) não pode ensejar o esvaziamento dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, tampouco ser levada a efeito sem observar a distribuição constitucional de competências na Federação brasileira e, por conseguinte, a exigência da reserva de lei editada pelo ente federativo competente.

3. De mais a mais, a propósito dos limites da atividade interventiva do Estado em relação às atividades econômicas, não se pode olvidar que o Excelso Pretório consolidou o entendimento de que "a intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica", como se pode observar nos seguintes excertos do v. acórdão:

"o texto constitucional de 1988 é claro ao autorizar a intervenção estatal na economia, por meio da regulamentação e da regulação de setores econômicos. Entretanto, o exercício de tal prerrogativa deve-se ajustar aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica, nos termos do art. 170 da Constituição.

Assim, a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção estatal na economia (...) não autoriza a violação ao princípio da livre iniciativa, fundamento da República (art. 1º) e da Ordem Econômica (art. 170, caput)

No caso, a fixação de preços a serem praticados pela recorrente, por parte do Estado, em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor constitui-se em sério empecilho ao livre exercício da atividade econômica, em desrespeito ao princípio da liberdade de iniciativa. (...)

No voto do E. Ministro Joaquim Barbosa: "o controle de preços é forma de intervenção do Estado na economia e somente pode ser considerado lícito se praticado em caráter de excepcionalidade, uma vez que a atuação do Estado está limitada pelos princípios da liberdade de iniciativa e de concorrência (art. 170, caput e IV, da Constituição de 1988 e art. 157, I e V, da Constituição de 1967/1969). Não pode o governo suprimir integralmente a liberdade de concorrência e de iniciativa dos particulares sem que haja razoabilidade nessa medida, vale dizer, sem que ela decorra de uma situação de anormalidade econômica tal que seja imprescindível impor restrição tão radical e, por fim, desde que os preços fixados não sejam inferiores aos custos de produção. (...) Verifica-se, portanto, que, quando o governo federal interveio na economia sucroalcooleira para regular a concorrência e fixar os preços finais de venda dos produtos, o fez de maneira desarrazoada, porque impôs aos produtos preços menores que aqueles necessários ao custeio da produção" (RE 422.941 – Rel. E. Ministro Carlos Velloso DJ 24.03.2006)

Como se vê, o tema da intervenção do Estado na economia está adstrito, imbricado com o regime constitucional da ordem econômica, notadamente com os princípios das liberdades de iniciativa e de concorrência.

4. A respeito desses princípios constitucionais, Eros Grau ensina que:

"Inúmeros sentidos, de toda sorte, podem ser divisados no princípio, em sua dupla face, ou seja, enquanto liberdade de comércio e indústria e enquanto liberdade de concorrência. A este critério classificatório acoplando-se outro, que leva à distinção entre liberdade pública e liberdade privada, poderemos ter equacionado o seguinte quadro de exposição de tais sentidos: a) liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio econômico): a.1) faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado – liberdade pública; a.2.) não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei – liberdade pública; b) liberdade de concorrência: b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal – liberdade privada; b.2.) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade privada; b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes – liberdade pública."3

De outro viés, o princípio da livre concorrência (art. 170, inciso IV, da Constituição), associado e, de certa forma, decorrente do princípio da liberdade de iniciativa, supõe o livre jogo das forças do mercado na busca da clientela. Supõe, igualmente, como lembra Eros Roberto Grau, "desigualdade ao final da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal"4. Supõe, além disso, repressão ao abuso do poder econômico (art. 173, § 4º, da Constituição e lei 8.884, de 11 de junho de 1994), exatamente para impedir o domínio dos mercados ou outras manifestações disfuncionais e restabelecer, até onde isso for possível, em um contexto de economia industrial e de acumulação do capital, a concorrência livre (não mais a liberdade de concorrência, mas já, insiste-se, a concorrência livre).

A proteção da livre concorrência decorre da compreensão de que a livre iniciativa, na acepção de liberdade de iniciativa empresarial, pressupõe não apenas a ideia de liberdade para acessar o mercado, mas também a livre concorrência, entendida esta como liberdade para exercer a luta econômica sem (i) a interferência do Estado e (ii) sem os obstáculos impostos pelos outros agentes econômicos.

Marçal Justen Filho5, destaca que "a deficiência na concorrência caracteriza-se quando não existe disputa suficiente e equilibrada no mercado, o que impede que a concorrência econômica produza seus efeitos positivos."

5. Considerando o acima exposto e as premissas estabelecidas, constata-se que a lei paranaense 18.822/16 padece de vício de inconstitucionalidade material, decorrente da violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa e liberdade concorrência. Está a se falar da obrigação inconstitucional prevista no artigo 1º6, da referida lei estadual.

Ora, o vício material de inconstitucionalidade, nesse dispositivo, é, data venia, evidente e inadmissível, vez que não há liberdade de iniciativa ou livre concorrência sem a possibilidade de adoção de estratégias econômicas de promoções com segmentação e/ou redução de preços para determinados clientes novos devidamente identificados. Estratégias essas que, em verdade, correspondem à essência do mercado efetivamente disputado/não cartelizado, do mercado em que há concorrência elevada e no qual os destinatários dos produtos e serviços são significativamente beneficiados pelos efeitos positivos da disputa concorrencial.

Deveras, obstar condutas promocionais destinadas a atrair novos clientes, tal como se constata na lei estadual acima referida, acarreta o aniquilamento, a um só tempo, da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, prejudicando, outrossim, os destinatários das referidas promoções que, certamente, se essas não existissem, não se interessariam em contratar os serviços ou adquirir os produtos. Prejudicando, ainda, o aquecimento/incremento das atividades econômicas e, em última análise, implicando a estagnação da arrecadação pública e do nível de emprego mormente em períodos de crise econômica.

6. Por melhores que tenham sido os propósitos do legislador paranaense, por mais que tenha agido orientado pela boa fé e com a mais sincera das intenções, não há como negar que acabou por resvalar para o sítio da hostilidade à Constituição, ostentando sua providência interventiva, por deficiente apreciação das condições jurídicas e fáticas subjacentes ao problema, condição de manifesta e insanável inconstitucionalidade material.

7. Não bastasse o vício de inconstitucionalidade material acima evidenciado, a referida lei estadual incorre, também, em inconstitucionalidade formal, à medida em que viola a competência regulatória conferida à União Federal.

A propósito, não se olvide que a Constituição de 1988 adota, como princípio fundamental da República, a forma federativa de Estado. A federação, como princípio estruturante que é, encontra-se inclusive protegida no rol das cláusulas pétreas, especificamente por meio do art. 60, § 4°, I, da lei fundamental. Isto implica dizer que, na República brasileira, tem-se a convivência de diversas ordens jurídicas que, em campos próprios, atuam com relativa autonomia de governo, legislação, administração, finanças e tributos etc. Não se podendo falar em hierarquia, nem superioridade entre lei federal e lei estadual/lei municipal.

Por esta razão é que uma das notas características da federação é a existência de diversos ordenamentos jurídicos vigentes, concomitante, sobre um mesmo território7. E, nesta seara, é Hans Kelsen8 quem assevera que, em toda federação, haverá, pelo menos, a existência de três ordens jurídicas: uma nacional, uma federal e outras locais. A primeira, reporta-se à ordem jurídica geral e as outras, a ordens jurídicas parciais.

A CF de 1988, nessa esteira, adota sistema de repartição de competências inspirado, simultaneamente, nos modelos alemão e americano. Todavia, "o sistema de partilha de competências [no Brasil], como um todo, mais se aproxima do sistema alemão, com a previsão das competências legislativas e não legislativas da União em artigos distintos; com a separação, também, das competências comuns legislativas e não legislativas; com a previsão de delegação de competências legislativas da União aos Estados por lei federal; com a repartição vertical da competência legislativa concorrente cabendo as normas gerais à União e a legislação suplementar aos Estados"9.

8. Pois bem, no caso em tela, a lei estadual 18.822/16, em seu artigo 2º10, contempla, na abrangência de sua incidência, atividades econômicas cuja competência regulatória é da União Federal, tais como: serviços de telecomunicações (telefonia, TV a cabo, internet), energia elétrica, instituições privadas de ensino superior, não restando, por conseguinte, dúvidas quanto à existência de inconstitucionalidade formal.

9. Deste modo, é possível afirmar que a lei estadual em análise padece, a um só tempo, do vício formal e material de inconstitucionalidade, não sendo possível invocá-la com o intuito de impor óbice, por exemplo, (i) ao livre jogo das forças do mercado na busca da clientela e (ii) a estratégicas da iniciativa privada para combater a crise econômica, para incrementar e aquecer as atividades econômicas.

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1 No presente estudo, a expressão atividades econômicas é utilizada no sentido amplo, abrangendo as chamadas atividades econômicas em sentido estrito e os serviços públicos.

2 Texto de autoria da sócia do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, Dra. Melina Breckenfeld Reck.

3 GRAU, Eros Roberto. In: Comentários à Constituição do Brasil. Coord. CANOTILHO, J. J. Gomes. MENDES, Gilmar Ferreira. SARLET, Ingo Wolfgang. STRECK, Lênio Luiz. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1787.

4 GRAU, op. cit., p. 244.

5 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 7ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 663.

6 "Art. 1º - Obriga fornecedores de serviços prestados de forma contínua a conceder a seus clientes preexistentes os mesmos benefícios de promoções posteriormente realizadas."

7 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, 19ª ed., São Paulo : Malheiros, 2001, p. 479.

8 Hans Kelsen. Teoria pura do Direito, 2ª ed., Coimbra: Martins Fontes, 1987, p. 328 e ss.

9 ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2ª ED, São Paulo: Atlas. 2000, p. 81.

10 Art. 2º - Para os efeitos desta Lei, enquadram-se na classificação de prestadores de serviços contínuos:
I – prestadoras de serviço telefônico, energia elétrica, água, gás e outros serviços essenciais;
II – operadores de TV por assinatura

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*Melina Breckenfeld Reck é sócia do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.

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