Destacou-se por garantir efetivo acesso universal à justiça a um grupo de extrema vulnerabilidade (mulheres pobres e presidiárias, que recomendam cuidados especiais por estarem em estado gravídico), por meio da coletivização de um instrumento processual tipicamente individual, permitindo o seu manuseio por ator com representatividade adequada (um dos legitimados listados no art. 12, da lei 13.300/16).
O voto do min. Ricardo Lewandowski também se sobressaiu por rememorar um problema crônico da nossa justiça, que a cada ano se torna pior: o gigantesco volume de processos em andamento.
Os números são assustadores. O Poder Judiciário atualmente conta com cerca de 18.000 magistrados, espalhados por 16.000 unidades judiciárias, e que são responsáveis atualmente pelo processamento e julgamento de 109 milhões de processos. Para dar vazão a tamanho volume de litígios em andamento, seriam necessários 30 meses de trabalho ininterrupto, sem que nenhuma nova causa fosse ajuizada.
Uma das soluções para parte (considerável) desse problema, segundo os fundamentos do voto vencedor do ministro Lewandowski, é prestigiar instrumentos de natureza abrangente para dar solução a demandas massificadas, relacionadas aos interesses coletivos lato sensu. Ademais de garantir segurança à prestação da tutela jurisdicional, garantindo que os conflitos envolvendo pessoas inseridas em um mesmo contexto fático e jurídico recebam uma mesma solução judicial, o fortalecimento dos processos metaindividuais racionaliza a utilização dos recursos do Poder Judiciário.
É economicamente inviável o processamento e julgamento por juízos distintos de milhares de ações individuais para analisar a ilegalidade da cobrança de uma tarifa telefônica, assim como não soa razoável existirem mais de 100 ações coletivas discutindo a privatização de uma empresa pública. As consequências desse desperdício de recursos do Poder Judiciário e da própria atividade jurisdicional vêm sendo notadas por todos nós, a cada juntada de petição nos vetustos autos físicos e nas intermináveis filas ''da conclusão'' ou ''da datilografia''.
As chamadas ''tutela de direitos coletivos lato sensu'' e ''pacificação coletiva de direitos individuais'' - conforme classificação muito utilizada pelo saudoso ministro Teori Zavascki - não são novidades no processo brasileiro. A primeira surgiu timidamente na acção popular das Ordenações Manuelinas e Filipinas, e nas Constituições de 1824, 1934 e 1946, firmando-se com a entrada em vigor das leis 4.717/65 e 7.347/85. A segunda adveio inicialmente pela lei 7.913/89, que regulamentou a defesa dos investidores do mercado de valores mobiliários e vislumbra a possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil pública para evitar prejuízos ou obter o ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado, mas foi consagrada com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), que inaugurou o modelo estrutural e principiológico para a tutela metaindividual. Mais recentemente, inseriram-se técnicas de julgamento de demandas e recursos repetitivos ou potencialmente repetitivos que, conquanto não se confundam com o processo coletivo, atuam de forma complementar.
Considerado pela doutrina como um dos mais completos e avançados modelos de processo coletivo, que serviu inclusive de inspiração para outros países latino-americanos, a tutela supraindividual brasileira sofreu uma série de revezes.
Em primeiro lugar, vieram as empreitadas legislativas de iniciativa do Poder Executivo, que, receoso com os impactos das ações coletivas versando questões tributárias e previdenciárias, excluiu tais matérias da tutela metaindividual (MP 2.180-35/01). Em seguida, vieram as restrições territoriais aos efeitos da coisa julgada e aos limites subjetivos da res judicata de ações propostas por associações (lei 9.494/97).
O Poder Legislativo também se mostrou omisso ao não analisar propostas importantes, como o PL 5.139/09, da Câmara dos Deputados e a proposição legislativa 282, do Senado Federal, ambos voltados a atualizar o instrumentário metaindividual. Da mesma forma, o processo legislativo do PL 8.058/14, que visa a regulamentar o controle jurisdicional de políticas públicas, parece estar abandonado na Câmara dos Deputados.
Por fim, por ocasião dos debates nas comissões responsáveis pelo atual Código de Processo Civil, vimos com pesar todas as investidas da advocacia contra o incidente de coletivização das ações individuais, que culminou com o veto presidencial e impediu que o sistema processual brasileiro possuísse uma técnica preventiva ao ajuizamento descontrolado de ações individuais potencialmente repetitivas.
O próprio STF tem sua parcela de responsabilidade pelo enfraquecimento da tutela coletiva. A despeito de defender em outras oportunidades que, ''tanto quanto possível, considerado o direito posto, deve ser estimulado o surgimento de macroprocesso, evitando-se a proliferação de causas decorrentes da atuação individual'' (STF, RE 441.318/DF, rel. min. Marco Aurélio, DJ 24/02/06), julgamentos realizados recentemente têm mostrado uma prelação do Excelso Pretório à fragmentação da tutela supraindividual.
Com efeito, por ocasião dos julgamentos de dois recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida (RE 573.232/SC e RE 612.043/PR, ambos de relatoria do min. Marco Aurélio, e com votos dissidentes do min. Lewandowski), o STF decidiu que as balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, são definidas pela representação no processo de conhecimento, presente a autorização expressa dos associados e a lista destes juntada à inicial. Segundo o entendimento da Corte, as associações atuam exclusivamente em defesa de seus associados, seja por determinação constitucional (art. 5º, XXI, CF/1988), seja por força de seus estatutos, de modo que a coisa julgada deveria afetar somente esse universo limitado de pessoas.
Como consequência, autorizou-se o surgimento de múltiplas demandas coletivas com o mesmo objeto, cada qual ajuizada por uma associação distinta, representando um punhado de indivíduos, incrementando o congestionamento judiciário e o risco de julgamentos conflitantes entre ações similares.
Fortalecer os instrumentos de solução abrangente de conflitos, tal como defende o ilustre min. Lewandowski, para fins de desafogar o Poder Judiciário, pressupõe uma série de alterações estruturais em nosso sistema. Coletivizar as ações individuais, tal como proposto pelo STF por ocasião do julgamento do HC 143.641, é apenas uma das soluções que podem ser adotadas.
Prestigiar a tutela metaindividual significa, dentre outras coisas, criar varas especializadas nesse processo tipicamente estratégico; estabelecer regras de litispendência entre ações coletivas e individuais, modificando a regra do art. 104, CDC, inclusive com a suspensão obrigatória das lides individuais, tal como já vem ocorrendo de forma rarefeita (vide STJ, REsp 1.110.549/RS, rel. min. Sidnei Beneti, DJe 14/12/09; REsp 1.353.801/RS, rel. min. Mauro Campbell Marques, DJe 23/08/13; e MC 25.323/SP, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 18/12/15); e potencializar a julgada coletiva, para que ela seja formada independente do desfecho da lide (excetuando-se, evidentemente, a hipótese de improcedência por ausência de provas).
Ouso ir além. Robustecer a tutela coletiva recomenda repensar o acesso à justiça das chamadas ações pseudoindividuais, nas quais um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos, em litisconsórcio ativo facultativo, ajuíza ação, versando mesma relação plurilateral e incindível, cuja solução judicial deve ser necessariamente uniforme para todos, quer em razão de disposição legal, quer por força do vínculo jurídico discutido. Controle de políticas públicas, discussões acerca da ilegalidade na cobrança de determinada tarifa e sobre regras de cobertura em contratos de seguro saúde são apenas alguns dos temas presentes em milhares de ações individuais que entulham o Poder Judiciário, e que deveriam ser tratados adequadamente em ações coletivas, propostas por legitimados detentores de representatividade adequada.
A adoção dessas medidas, evidentemente, não depende apenas de iniciativas legislativas, que, no atual (e conturbado) cenário político brasileiro, não virão a curto ou médio prazo. Como o próprio min. Lewandowski salientou no voto proferido no HC 143.641, as Cortes de Vértice brasileiras precisam avocar para si a responsabilidade pela otimização da prestação da tutela jurisdicional, extraindo interpretações que engrandeçam a tutela coletiva e, principalmente, que tornem sem efeito todos os expedientes contra ela adotados pelos Poderes Executivo e Legislativo.
Caso contrário, muito em breve seremos surpreendidos com algumas novas centenas de milhões de processos em andamento, que poderão levar à completa paralização do Poder Judiciário. Estamos chegando a um momento em que o maior inimigo do Direito não será o tempo, como diria Carnelutti, mas sim a nossa própria incapacidade em adotar medidas que desafoguem a Justiça, por meio do aprimoramento do processo coletivo.
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*Diego Santiago y Caldo é mestrando em direito processual pela USP e advogado da banca Pacífico, Advogados Associados.