A taxa de sobrestadia de contêineres, conhecida como demurrage, assombra diferentes intervenientes no comércio exterior. Ela, que incide quando extrapolado o freetime acertado entre consignatário e transportador, é cobrada por dia e ultrapassa, muitas vezes, o valor da própria operação.
Não é incomum, principalmente levando em consideração a imprevisibilidade na fiscalização realizada pela Aduana brasileira, que o importador atrase a devolução do contêiner, fazendo surgir uma dívida de demurrage, que acaba por se alastrar no tempo, perfazendo um montante incompatível com qualquer critério de razoabilidade e proporcionalidade.
Diferente do frete marítimo, que permite ao transportador bloquear a entrega da carga ao consignatário, a taxa de sobrestadia inadimplida pelo importador não é motivo suficiente para o bloqueio. Na prática, o importador paga o frete ao armador (ou agente de carga), desembaraça a mercadoria e, posteriormente, quita a taxa de sobrestadia gerada.
Essa sistemática, não é difícil perceber, gera um volume relevante de inadimplência em relação às dívidas de demurrage, já que o seu pagamento não é essencial para a conclusão do processo de importação. Uma prova contundente deste cenário é a quantidade de ações de cobrança em trâmite com o objetivo de reaver estes valores.
Um dos problemas relacionados a estas ações diz respeito ao entendimento do Poder Judiciário acerca da responsabilidade solidária do despachante aduaneiro em relação às taxas de sobrestadia geradas nas operações de importação.
Vale lembrar que o despachante aduaneiro é um prestador de serviços, que, em nome do seu cliente - o importador ou o exportador - realiza os atos necessários para o regular desembaraço das mercadorias. Além de registrar a declaração de importação no Siscomex, o despachante aduaneiro assume, ainda, a responsabilidade de conferir a carga e recebê-la do armador, tudo, repita-se, na qualidade de representante do importador.
Pois bem. É importante destacar o porque da posição do Judiciário. É praxe no comércio exterior que os armadores exijam, sob pena de não entregar a mercadoria transportada, a assinatura de um documento chamado de "Termo de Responsabilidade para Devolução de Contêineres". No referido termo, que pode ser interpretado como um aditivo contratual do conhecimento de embarque (contrato de transporte marítimo), o importador (geralmente representado pelo despachante aduaneiro) anui com as tarifas de demurrage praticadas pelo armador.
Visando diminuir a enorme inadimplência em relação à taxa de sobrestadia, os armadores passaram a incluir no "Termo de Responsabilidade para Devolução de Contêineres" uma cláusula responsabilizando solidariamente o despachante aduaneiro que assina o documento na qualidade de representante do importador. Além disso, não raramente, os termos ainda preveem o deslocamento do foro para a comarca de Santos/SP.
Importante destacar que o despachante aduaneiro na relação com os armadores é um player vulnerável, já que se posiciona como intermediário na relação entre importador e transportador. Em suma, do despachante aduaneiro é esperado celeridade e eficiência, enquanto que o transportador impõe, podemos afirmar, a assinatura do termo de responsabilidade acima citado para a entrega dos documentos originais de transporte, que voltaram a ser de apresentação obrigatória após recentes mudanças legislativas realizadas pela Receita Federal do Brasil.
Ora, por mais absurda que pareça, a previsão contratual de tornar o despachante aduaneiro responsável solidário pelo pagamento da demurrage foi considerada legítima pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, atualmente, possui entendimento uníssono no sentido de responsabilizar solidariamente o despachante aduaneiro que assinou o aditivo contratual no momento de entrega da mercadoria transportada¹.
Nesse contexto, deve ser analisada a natureza do termo assinado, levando em consideração o momento da sua assinatura. Tem-se, claramente, um contrato de adesão, já que não há espaço para o importador, representado pelo despachante aduaneiro, discutir qualquer cláusula do referido termo. Isso porque, a liberação da mercadoria transportada pelo armador depende da assinatura deste documento, fazendo com que uma das partes da relação (o armador) tenha força suficiente para impor todas as cláusulas do contrato, sem qualquer discussão.
A delicada situação em que ocorre a assinatura do "Termo de Responsabilidade para Devolução de Contêineres" explica a existência de cláusulas absurdas, tais como a responsabilidade solidária do despachante aduaneiro, as altas tarifas cobradas pelo armador a título de taxa de sobrestadia, bem como o deslocamento do foro para Santos/SP.
Especificamente em relação à responsabilidade solidária do despachante aduaneiro, tem-se uma situação, diga-se, contraditória. É importante lembrar que o despachante aduaneiro, como mero prestador de serviços, não possui legitimidade para dispor das mercadorias de propriedade do importador. Assim, é impossível, sem a concordância do seu cliente, que o despachante aduaneiro desove a mercadoria e devolva a unidade de carga ao armador. Sequer legitimidade para tal pleito possui o despachante.
Por tal razão, e levando em consideração a natureza indenizatória da taxa de sobrestadia, que tem por objetivo compensar o armador pelos prejuízos decorrentes do atraso na devolução do contêiner, foge à lógica imputar o pagamento da referida taxa ao despachante aduaneiro, já que o mesmo não dá causa ao atraso, tampouco pode, à revelia do importador, devolver a unidade de carga ao armador.
Nos casos em que o importador simplesmente não devolve o contêiner, o problema é ainda maior. O entendimento judicial acerca do tema fez nascer decisões inexequíveis, como a intimação do despachante aduaneiro para devolver o contêiner ao armador, sob pena de multa diária. Muitas vezes, o despachante aduaneiro sequer possui a informação acerca da localização do contêiner.
A questão é ainda mais grave, vale destacar, já que em razão da prática nas atividades de despacho aduaneiro, circulam na conta bancária do despachante valores de propriedade de terceiros, especificamente para fins quitação dos tributos aduaneiros e demais despesas relacionadas às atividades de comércio exterior. Isso faz com que a responsabilização de um despachante aduaneiro por uma dívida de demurrage culmine no bloqueio de ativos de terceiros, tornando a situação muito mais séria, já que perpassa a questão meramente patrimonial, podendo causar implicações penais ao prestador de serviços.
A situação criada pelos armadores e, surpreendentemente, confirmada pelo Poder Judiciário, distorce a lógica na relação contratual entre importadores e donos de navios, pois transfere o risco da operação a um mero prestador de serviços, que não foi o responsável por contratar o transporte marítimo, tampouco possui capacidade financeira condizente com a operação realizada, já que a sua remuneração, por vezes, é ínfima, se levado em consideração o valor total negociado no transação internacional.
Não há, portanto, explicação jurídica plausível para a responsabilização do despachante aduaneiro por dívidas de demurrage geradas em operações de comércio exterior, e este entendimento, hoje consolidado no Tribunal de Justiça de São Paulo - que em razão da cláusula de eleição de foro, concentra quase todas as ações de cobrança sobre este tema em trâmite no Brasil – precisa ser modificado, sob pena de tornar inviável a atuação dos despachantes aduaneiros.
Preocupados com o cenário exposto acima, a ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários publicou, em dezembro de 2017, a resolução ANTAQ 18/17, para dispor sobre os direitos e responsabilidades dos transportadores, agentes intermediários e usuários do transporte aquaviário.
Uma relevante novidade trazida pela nova regra foi a vedação expressa à cobrança de valores a terceiros estranhos à relação jurídica de transporte - o que retira, pelo menos teoricamente, a possibilidade de cobrança de demurrage aos despachantes aduaneiros.
Além disso, a nova regulação determina ser obrigatório informar ao usuário, ainda na proposta comercial enviada, os valores que incidirão a título de demurrage, bem como o período de free-time concedido pelo armador. Este período se iniciará, obrigatoriamente, um dia após a descarga do contêiner na instalação portuária, evitando a continuidade da prática de alguns armadores que iniciam a cobrança de demurrage assim que o contêiner sai do navio.
A resolução ANTAQ 18/17 combate, ainda, outras condutas dos armadores, como a utilização de taxa de câmbio diferente daquela fornecida pelo Banco Central do Brasil para fins de conversão do valor aduaneiro para Real, disponível no SISCOMEX. Agora, a prática constitui infração de natureza média, punida com multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Assim, importante esclarecer que, apesar do avanço normativo, é necessário que a Agência Reguladora passe a fiscalizar a adoção das novas regras e sancione, de maneira firme, aqueles transportadores que resistirem. Do mesmo modo, é de se esperar que o Poder Judiciário, principalmente o Tribunal de Justiça de São Paulo, adeque os seus julgados à nova realidade, modificando o entendimento hoje consolidado sobre a responsabilidade solidária dos despachantes aduaneiros por dívidas de demurrage contraídas por seus clientes.
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1 TJ/SP; Apelação 4015277-97.2013.8.26.0562; Relator (a): Matheus Fontes; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/02/2018; Data de Registro: 15/02/2018; TJ/SP; Apelação 1028496-29.2016.8.26.0562; Relator (a): Tavares de Almeida; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 11ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/10/2017; Data de Registro: 27/10/2017
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*Melissa Carneiro Leão de Amorim é advogada do escritório Severien, Andrade e Alencar Advogados.
*Luciano Bushatsky Andrade de Alencar é advogado e sócio do escritório Severien, Andrade e Alencar Advogados.