Este artigo se propõe a enfrentar um tema bastante relevante em economias expostas a um significativo risco inflacionário, em especial aquelas cujo passado recente de inflação elevada tornam o fato algo previsível, mesmo quando não atual, e que consiste no modo de alocação dos riscos de variação do valor da moeda, em contratos de duração.
Quando tratamos de contratos que se prolongam no tempo por preverem etapas de execução futura, há no Brasil uma, ainda frequente, preocupação com os nefastos efeitos da inflação sobre o poder aquisitivo da moeda, pois que a corrosão inflacionária é capaz de levar a uma frustração quanto ao proveito econômico a ser obtido com a prestação vincenda.
Para melhor compreender esse tema mister se faz assinalar que a moeda, por meio da qual se cumprem as obrigações pecuniárias, não tem uma única expressão de valor mas, ao revés, tem ela um valor intrínseco, correspondente ao valor da matéria prima que a compõe; um valor extrínseco, que equivale ao valor nominal, isto é, o valor que o Estado atribui à sua moeda emitida; o valor comercial ou valor de curso, que ela valor reconhecido pelo comércio como sendo representativo de seu poder de troca (poder aquisitivo da moeda)¹.
A doutrina, com indiscutível mérito, construiu no passado a fórmula contratual da cláusula de ajuste móvel, hoje mais conhecida como cláusula de reajuste². Através dela as partes acordam que o valor da prestação pecuniária não permanecerá fixo, mas, ao contrário, será reajustável periodicamente através da aplicação de determinado critério ou índice, de modo a conservar o poder aquisitivo da prestação contratada.
Tal doutrina aparece refletida no atual Código Civil, em seu artigo 316, a saber:
Art. 316. É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas.
Observe-se a expressão "é lícito convencionar", o que nos deve conduzir à seguinte indagação: e se as partes não houverem contratado?
Bem, ao contrário do que muitos imaginam, não se trata aqui de cláusula implícita ou da existência de uma regra de reajuste cogente, que se aplicaria opi legis. Na verdade, o legislador prevê justamente o oposto em seu artigo 315, ou seja, não havendo convenção em contrário, as dívidas em dinheiro deverão ser pagas em moeda corrente e pelo seu valor nominal. Trata-se do princípio do nominalismo que orienta o tema. Na lição de Orlando Gomes: "uma vez que a dívida pecuniária é obrigação de valor nomial (...), o credor suporta o risco da deterioração da moeda."³
Deste modo, se as partes convencionaram livremente que uma obrigação pecuniária teria vencimento futuro e não inseriram uma cláusula para reajuste de valor, presume-se que as partes aceitaram contratar prestação pecuniária fixa e não o contrário.
Assim, por exemplo, se ao adquirir um automóvel através de um financiamento bancário, para pagamento futuro em 48 parcelas, e no contrato não se previu qualquer cláusula de reajuste, terá o devedor se obrigado a pagar o valor fixo das prestações, por inteligência do artigo 315, do Código Civil Brasileiro, não sendo razoável que, após a contratação, seja ele obrigado a pagar a prestação atualizada até a data do vencimento, se tal risco não foi por ele assumido.
Mas e a correção monetária legal que dispensaria, inclusive, pedido específico do autor em uma eventual ação de cobrança?4
É com esta ideia em mente que são frequentemente confundidos os institutos jurídicos da cláusula de reajuste e da atualização monetária legal, tratando-se a primeira a partir de regras legais exclusivamente inerentes à segunda.
Bem, no caso da atualização monetária legal, estamos tratando de uma questão completamente diferente, pois estamos diante dos efeitos decorrentes da mora contratual e não de cláusula de vencimento futuro.
Afinal, quando as partes programaram o vencimento futuro da prestação tiveram condições de prever a ocorrência de inflação e de se posicionar quanto a esse risco; se não o fizeram, concordaram que a prestação seria fixa, mesmo ante a possível desvalorização da moeda. Trata-se de risco normal do negócio.
Já no caso de mora, o credor, quando contratou, não anuiu em receber a prestação com valor menor do que aquele que ela possuía na data de vencimento, sendo-lhe assegurada por lei a manutenção do mesmo poder aquisitivo, através da atualização monetária computada da data do vencimento até a data do efetivo pagamento.
Da correção monetária como efeito legal da mora
A exemplo do que já determinava a lei 6.899/81, o artigo 395, caput, do Código Civil Brasileiro, estabelece que o devedor em mora passa a ser devedor de atualização monetária segundo índices oficiais, sendo desnecessária neste sentido a previsão expressa de correção do valor da prestação.
Já o artigo 397, do mesmo diploma, estabelece que a mora se constitui a partir do momento em que a prestação líquida vença (mora ex re) ou de quando seja interpelado o devedor (mora ex persona).
O Código Civil Brasileiro prevê, ainda, que as obrigações sujeitas à condição suspensiva somente se tornam exigíveis a partir do implemento desta condição (art. 332).
Em resumo, uma vez constituído o devedor em mora, se este não efetua o imediato pagamento de sua obrigação, deverá garantir ao credor que no futuro ele venha a receber a prestação com o mesmo poder aquisitivo da data de vencimento, pois que não seria razoável impingir ao credor uma desvalorização decorrente de um inadimplemento, como se fosse risco normal do negócio.
Da cláusula de reajuste
Como dito anteriormente, nosso sistema jurídico autoriza que as partes contratantes adotem determinados critérios de reajuste das prestações pecuniárias de vencimento futuro, como genericamente tratado no artigo 316, do Código Civil Brasileiro.
Isto não significa, contudo, que o tema pertença livremente ao campo da autonomia privada e que os contratantes possam ajustar o que e como bem quiserem. Afinal, o valor nominal é imposto pelo Estado e está inserido no regime monetário do país, sendo matéria de ordem pública, em relação à qual as partes podem somente aderir nos limites da legislação vigente.
No caso brasileiro, a lei 9.060/95, por exemplo, instituiu o Plano Real e definiu uma série de restrições ao reajuste de prestações, tais como a vedação ao uso do câmbio, a vedação de reajustes em periodicidade inferior a anual, a adoção de índices oficiais de inflação etc.
O regime de ordem pública afeta, inclusive, os contratos em curso, tendo sobre eles uma eficácia imediata e geral, quando a lei assim o determinar, não sendo considerada inconstitucional tal subordinação das partes, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n° RE 211304 / RJ, que restou relatado pelo, então, Min. TEORI ZAVASCKI, em julgamento de 29/04/2015, pelo Tribunal Pleno, que restou assim ementado:
Ementa: CONSTITUCIONAL E ECONÔMICO. SISTEMA MONETÁRIO. PLANO REAL. NORMAS DE TRANSPOSIÇÃO DAS OBRIGAÇÕES MONETÁRIAS ANTERIORES. INCIDÊNCIA IMEDIATA, INCLUSIVE SOBRE CONTRATOS EM CURSO DE EXECUÇÃO. ART. 21 DA MP 542/94. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO À MANUTENÇÃO DOS TERMOS ORIGINAIS DAS CLÁUSULAS DE CORREÇÃO MONETÁRIA.
Da revisão da prestação por desequilíbrio imprevisível
Corroborando com o que se expôs até aqui, temos o disposto no artigo 317, do Código Civil Brasileiro, que prevê:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Atente-se para a necessidade de o credor formular pedido específico ao juiz e de demonstrar que os requisitos legais para a requerida revisão estão presentes para, então, ter deferida a revisão do valor da prestação originalmente contratado.
A imprevisão, neste caso, será a justa causa para que se reajuste judicialmente uma prestação de modo diverso daquele originalmente contratado, realocando os riscos inicialmente assumidos pelos contratantes.
Se fosse verdadeira, de fato, a ideia de que as prestações pecuniárias seriam sempre corrigidas monetariamente na data de seu vencimento, seriam letra morta tanto o artigo 315 quanto o artigo 317, do Código Civil, que restariam sem maior significado.
Conclusão
Conclui-se, portanto, que as prestações pecuniárias com vencimento futuro serão devidas, salvo disposição expressa em contrário, pelo seu valor nominal, sendo por isso fixas. As partes terão exercido sua liberdade e autonomia ao alocarem o risco da inflação como um risco do credor, bem como o risco da deflação como um risco do devedor (art. 315, do CC).
Não desejando tal alocação legal dos riscos, poderão as partes contratar cláusula de reajuste, estabelecendo o poder aquisitivo real da moeda como parâmetro de pagamento, a tutelar tanto a inflação quanto a deflação (art. 316, do CC).
Caso não tenha sido prevista uma cláusula de reajuste e, por motivos imprevisíveis, sobrevenha desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, o que representa, portanto, uma medida excepcional.
Finalmente, caso o devedor incorra em mora, será automaticamente devida a atualização monetária a partir da data do vencimento, por força da própria lei (art. 395, do CC), a fim de preservar o valor da prestação na data em que a mesma deveria ter sido paga, pois que a partir da mora não pertencerá mais ao credor esse risco.
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1 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol II, 27ª. Rio de Janeiro, Forense, 2015, p.128.
2 Idem, p.133.
3 GOMES, Orlando. Obrigações, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 58.
4 Lei 6.899/1981.
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*André Roberto de Souza Machado é advogado, sócio sênior no escritório SMGA Advogados.