Regulamentar a tortura?
O conhecido advogado norte-americano Alan Dershomitz, em entrevista às Páginas Amarelas da revista Veja, afirma ser absolutamente contrário à tortura, que vem sendo usada pelos Estados Unidos, em métodos brutais de interrogatório. Mas, como as autoridades estão utilizando esta prática, sem disposição de abandoná-la, sugere que se regularize a tortura e “estabeleçam regras democráticas para o uso da coerção física nos interrogatórios”.
Assim, diante da insensibilidade dos agentes do Estado, que teimam em praticar crimes contra a humanidade, o ilustre causídico norte-americano claudica e busca um meio termo, como se fosse possível condescender com atos que afrontam a dignidade da pessoa humana, não apenas explicando-os, mas buscando legitimá-los por via de regulamentação. Ao pretender limitar a tortura termina por a introduzir no ordenamento jurídico, revestindo-a de licitude.
O aspecto ético resta relegado a segundo plano, e a sensibilidade moral distorcida, pois, qualquer prurido de má consciência, diante da barbárie da tortura praticada, será apaziguado pela autorização legal sugerida como limitativa da violência estatal entre quatro paredes.
Pode-se defender o criminoso, mas jamais justificar o crime, mormente o crime aviltante e covarde de tortura, quando o aparelho do Estado, protegido pelo peso da autoridade, tendo à sua frente o prisioneiro indefeso e inteiramente submetido, o constrange fisicamente, impondo-lhe dores e malefícios morais diversos para extorquir confissões ou declarações sobre co-autores.
Sendo crime punido gravemente, a tortura assim mesmo está presente em muitos distritos policiais e prisões do nosso país, a se ver pelos fatos, recentemente noticiados, como o do garçom preso sob suspeita de haver assassinado Schincariol, a morte do chinês Chan Kim Chang no Rio de Janeiro, os 34 adolescentes internos da Febem de Ribeirão Preto agredidos por um grupo denominado “choquinho” , formado por policiais militares e funcionários transferidos de São Paulo.
Se a prepotência e a violência oficial grassam imunes à incidência da lei penal, é fácil imaginar o que sucederia quando se tentasse formular uma autorização da tortura para determinados casos, pois, com certeza, esta legitimação parcial soaria, aos ouvidos dos muitos que usam da autoridade para a satisfação doentia do uso do poder, como aprovação plena da afronta à integridade física e moral do preso.
E o mais grave estaria em se retirar do fato o seu caráter moralmente degradante e repugnante, inadmissível de ser praticado pelo agente público em qualquer circunstância, mesmo sob a escusa de atuar por “razões de Estado”.
O arcebispo de Argel durante todo o processo de libertação da Argélia, de 1954 a 62, Léon-Étienne Duval, quando se instaurara a prática da tortura, disse em mensagens radiofônicas que se a luta contra a criminalidade é um serviço relevante, o exercício da força pública deve observar a moral e em especial respeitar a pessoa humana, pois, a tortura lesa, seja o torturado culpado ou não, a sensibilidade ética, não sendo a violência a resposta mais inteligente à violência.
Quando Aldo Moro foi seqüestrado em 1978, aventou-se do uso da tortura, e a igreja italiana manifestou-se contrária, afirmando que era provável perder-se Aldo Moro, mas não se poderia perder a consciência ética.
Quando o pragmatismo se arvora a dar soluções no plano moral, o resultado é desastroso, tal como o sugerido pelo advogado norte-americano, idéia que caminha na mesma linha da máxima malufista: “estupra, mas não mata”. Seria o mesmo: torture, mas conforme a regulamentação pertinente, adequando o sofrimento à natureza do crime e às condições pessoais do torturado.
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* Advogado, é ex-ministro da Justiça e sócio do escritório Reale Advogados Associados