Nascida no campo do Direito do Consumidor, a teoria (se é que assim pode ser chamada) do diálogo entre as fontes revela-se uma rematada heresia jurídica, em relação à qual fica demonstrado o inexplicável desconhecimento de noções fundamentais do Direito, como as de sistema, de ordem jurídica constitucional (hierarquia entre as normas), além da ignorância a respeito de institutos seculares (novação), aliado ao uso gratuito de outros mal resolvidos pelo legislador. Este último é o caso da função social do contrato, em péssima hora incluída no art. 421 Código Civil de 2002, como limite à liberdade constitucional de contratar1 .
Um levantamento que estamos fazendo sobre a aplicação de tais questões pelos Tribunais nos tem deixado verdadeiramente estupefatos quanto à enorme confusão de conceitos que está presente nas decisões a seu respeito. No caso da função social do contrato, o exame de diversos acórdãos demonstra que ela tornou-se um fetiche que serve para resolver qualquer problema jurídico em relação ao qual o julgador pretende favorecer a parte que julga mais fraca, segundo o seu entendimento. Portanto, somente podemos entrever duas explicações (i) o legislador não sabe o que está fazendo; e/ou (ii) a solução resulta de um viés social/ideológico.
Vejamos o que aconteceu em um caso que escolhemos bem a propósito, abaixo referido por sua ementa:
REsp 866343 / MT. RECURSO ESPECIAL. 2006/0098174-1. Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. QUARTA TURMA. 02/06/2011. DJe 14/06/2011
Ementa
PROCESSO CIVIL. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES. NOVAÇÃO. POSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO NEGÓCIO JURÍDICO ANTECEDENTE. MITIGAÇÃO DO PRINCÍPIO PACTA SUNT SERVANDA. SÚMULA 286 DO STJ. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC CONFIGURADA. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM.
1. A violação do art. 535 do CPC configurou-se, no caso dos autos, uma vez que, a despeito da oposição de embargos de declaração, nos
quais os recorrentes apontam a existência de omissões, mormente no
tocante à possibilidade de exame judicial de supostas ilegalidades substanciais nos contratos celebrados anteriormente à alegada novação com a instituição financeira (fls. 1.052-1.053), o Tribunal não se manifestou de forma satisfatória sobre o apontado vício, consoante se infere do voto condutor às fls. 1.061-1.066.
2. A novação, conquanto modalidade de extinção de obrigação em virtude da constituição de nova obrigação substitutiva da originária, não tem o condão de impedir a revisão dos negócios jurídicos antecedentes, máxime diante da relativização do princípio do pacta sunt servanda, engendrada pela nova concepção do Direito Civil, que impõe o diálogo entre a autonomia privada, a boa-fé e a função social do contrato. Inteligência da Súmula 286 do STJ.
3. Recurso especial provido para determinar o retorno dos autos ao Tribunal de origem.
No julgado em questão estão presentes, infelizmente, dois absurdos jurídicos. O primeiro diz respeito à quebra dos efeitos da novação, pelo fato de que se permitiu a revisão dos negócios jurídicos anteriores que foram alcançados por aquela. Isto é absolutamente contrário à natureza desse instituto. Como se sabe (ou se deveria saber), o efeito primordial da novação é o de extinguir as obrigações que foram o seu objeto segundo a livre vontade das partes. Ora, a extinção significa a morte do negócio anterior em todos os seus aspectos, passando as relações entre as partes a serem reguladas exclusivamente pelo novo negócio. Nas palavras de Sílvio Venosa, trata-se de ''meio extintivo'' (da obrigação anterior), ''porque a obrigação pretérita desaparece''2.
Já dizia o nosso ''Aurélio'' que desaparecer significa sumir, morrer. Sumir é sumir de vez, sem retorno. Assim acontece com a novação. Não é possível dar nova vida ao que anteriormente existia. Portanto, tal como se encontra no acórdão examinado, não se pode relativizar os efeitos do princípio do pacta sunt servanda. Medida em tal sentido representa um contrassenso dado que, mais uma vez, as partes novaram as suas relações segundo o regime de liberdade e de autonomia privada.
Outro absurdo jurídico que infelizmente tem grassado em decisões judiciais é representado pelo chamado diálogo das fontes, conforme se encontra na ementa, que defende a imposição de uma conversa entre a autonomia privada, a boa-fé e, ''voilá'', a função social do contrato. Um sistema normativo opera pela hierarquia das normas. Caso contrário, estabelece-se a bagunça generalizada. No nosso ordenamento jurídico, toda a legislação se submete de cima para baixo aos comandos constitucionais. Não se conhece o caso de que alguma norma inferior possa dialogar com outra de natureza constitucional para se fazer valer em detrimento desta última. Essa é a natureza imutável do nosso ordenamento jurídico, que vem sendo destroçado pelo tal diálogo, a partir de uma visão vesga do Direito do Consumidor. O que ocorre é que, em tal subsistema jurídico, a lei especial (o CDC) prevalece diante da lei geral, quando se trata do mesmo objeto. Mas isto não significa que o Direito do Consumidor possa massacrar princípios jurídicos superiores como o da autonomia privada, de matriz constitucional.
E, repetindo sempre o nosso argumento, que função social se encontra na novação, celebrada privadamente entre partes capazes?
Lembre-se de que Karl Larenz referiu-se a casos da colisão entre princípios e normas, em relação aos quais a solução se dá por meio da ponderação de bens 3. Assim sendo, algumas vezes, normas podem colidir, devendo o juiz resolver a questão (sabe-se que o legislador é imperfeito). Mas resolver o problema não acontece por meio de diálogo entre elas, mas pela submissão de umas às outras. No caso, o critério apontado por aquele autor é o da ponderação de bens, tema que não importa aqui desenvolver.
O que se percebe em uma decisão como a presentemente examinada é que a Corte aplicou uma solução que superou de forma indevida a lei existente (tutela jurídica da novação). E sobre essa iniciativa o mesmo Larenz nos ensina com muita clareza que há um limite para o desenvolvimento judicial do Direito, papel reservado ao legislador. E, nesse sentido, ele afirma expressamente que os ''tribunais carecem de competência para promover a conformação social'' 4 nem que, aduzimos, seja para reparar alguma justiça que tenha sido entrevista em um caso concreto.
A respeito da hierarquia das normas, os tribunais andam se esquecendo de princípios fundamentais do direito constitucional, sendo o da hierarquia entre as normas um dos mais importantes. Neste sentido, demonstra Gomes Canotilho que as normas não se situam em um plano de horizontalidade umas em relação às outras, mas em um plano de verticalidade, à semelhança de uma pirâmide jurídica (expressão daquele autor). Neste sentido, acrescenta que são inaplicáveis as normas de hierarquia inferior contrárias às de hierarquia superior, cuidando-se de preferências de validade e de aplicação5.
Portanto, é absolutamente necessário voltar-se ao estudo dos fundamentos do direito, deixando quem nele opera de agir como se o seu pequeno feudo seja mais importante do que todo o reino. Insta deixar de olhar para baixo e procurar o sol que nasce no horizonte.
Voltaremos a esse assunto. Não é uma ameaça. É uma promessa.
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1 Sobre o tema vide o item 7.7, da nossa ''Teoria Geral do Contrato'', que será em breve objeto de nova edição.
2 In ''Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos", 6ª ed, Ed. Atlas, São Paulo 2006, pp. 263.
3 In ''Metodologia da Ciência do Direito'', 3ª ed., Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997. pp. 574 e segs.
4 Ob. cit., pp. 609.
5 In ''Direito Constitucional e Teoria da Constituição'', 5ª ed., Ed. Almedina, Lisboa, 2002, pp. 694 e 695.
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