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Liberdade de imprensa e democracia

Uma das formas mais eficazes de controle é feita mediante a crítica aos governantes, permitida pela ampla proteção à liberdade de expressão e de imprensa. Essa liberdade é tida como fundamental, a ponto de tornar-se indissociável dos governos democráticos. Dela depende, em particular, a imprensa, que exerce o papel de guardiã da sociedade.

14/2/2018

A história política, por um longo período, foi marcada, acentuadamente, pelo antagonismo de interesses entre governantes e governados. Aos governados restava aceitar o status quo ditado pelo governante ou rebelar-se, quando a opressão atingisse níveis insuportáveis. A modernidade, introduzindo os conceitos de democracia representativa e de igualdade política, modificou essa relação. A ideia de soberania do povo implicava o comprometimento do governante com os interesses da coletividade.

A secularização da sociedade substituiu a ideia vigente no mundo medieval de que, acima da autoridade terrena, encontrava-se a lei de Deus – à qual o governante estava submetido e da qual seu poder derivava – pela ideia segundo a qual, acima dos governantes, estava a lei aprovada pelo povo, a que todos, sem distinção, deviam obediência. Esse ideal, contudo, ignorando a natureza humana, não eliminou os perigos de abusos cometidos por quem exercia o poder. A vigilância constante do povo sobre aqueles em quem depositou confiança mostrou-se imprescindível. Sem esse controle, arbitrariedades poderiam ser cometidas sem maiores consequências.

Uma das formas mais eficazes de controle é feita mediante a crítica aos governantes, permitida pela ampla proteção à liberdade de expressão e de imprensa. Essa liberdade é tida como fundamental, a ponto de tornar-se indissociável dos governos democráticos. Dela depende, em particular, a imprensa, que exerce o papel de guardiã da sociedade (the watchdog of society), como se diz no mundo anglo-saxão. Os americanos bem entendem a importância da liberdade de expressão para o funcionamento adequado das instituições democráticas. Prevista na primeira emenda à Constituição, consideram-na, antes de mais nada, uma arma dos cidadãos em face do poder do Estado. O argumento de que as Cortes se utilizam por ocasião de ações judiciais que têm como pano de fundo o conflito entre liberdade de expressão e outro valor é o seguinte: se o ato expressivo levanta uma questão de interesse público e promove o debate público – e, por essas razões, a própria democracia – então ele está protegido pela liberdade de expressão.

Isso quer dizer que a crítica aos mandatários do povo é amplamente permitida, sendo irrelevante, para o Judiciário, o caráter ofensivo da publicação ou mesmo que haja prova posterior de sua falsidade. Para que o ofendido, pessoa pública, vença uma causa alegando dano à imagem, ele deve provar que o jornalista agiu com actual malice (intenção maldosa), o que não se confunde com a common law da negligência (negligence). O teste da negligência aplica-se tão somente às pessoas que não são públicas, ao passo que a actual malice é aplicável às pessoas públicas, incluindo-se, aí, as que gozam de ampla notoriedade, não se limitando, portanto, aos governantes.

Para que se caracterize a actual malice, o ofendido deve provar que o jornalista sabia que a informação era falsa (knowledge that the information was false) ou que desprezou levianamente a aferição de verdade ou de falsidade da informação (reckless disregard of whether it was false or not). Nessa segunda hipótese, o próprio jornalista poderia ter reconhecido a falsidade da publicação se tivesse considerado com cuidado as evidências a que teve acesso. Para a constatação disso, os Tribunais analisarão a força dessas evidências ao tempo da publicação com o objetivo de inferir o estado mental do jornalista e, assim, concluir se ele próprio tinha sérias dúvidas (serious doubts) a respeito da veracidade da informação. Trata-se, portanto, de uma análise de subjetividade, cuja prova, note-se, cabe ao ofendido. Trocando em miúdos, a actual malice foi criada para tornar extremamente dificultoso o sucesso de ações em que se discute dano à imagem de pessoas públicas.

Não basta, para a caracterização da actual malice, a prova de que o jornalista desestimava o ofendido ou de que a versão deste não tenha sido ouvida de antemão. Também não é suficiente a ciência de que ofendido houvesse declarado que a informação era falsa, bem como que a fonte da informação fosse suspeita ou que a informação não tivesse sido corrigida após a publicação. Tampouco importa a intenção de causar dano, a despeito disso ser sugerido pela expressão "intenção maldosa". Em suma, não se perquire o que uma pessoa razoável publicaria ou que passos daria para investigar a certeza da notícia antes de sua publicação. Esses critérios só são aceitos nos casos em que a common law da negligência (negligence) é aplicável, isto é, quando o ofendido não é pessoa pública.

A figura da actual malice implica o desencorajamento do chilling effect (ou, literalmente, efeito de esfriamento). O chilling effect é consequência de paulatinas restrições à liberdade de expressão, tornando difícil distinguir a publicação legal da ilegal. As constantes restrições à liberdade de expressão deixam o jornalista inseguro: entre publicar uma informação relevante e cometer, por isso, um ilícito e, por outro lado, não a publicar, evitando, assim, o ilícito, ele escolhe a segunda opção. Dessa forma, pouco a pouco, o debate público se esfria, daí a origem da expressão. Como é fácil concluir, um sistema que incentiva o chilling effect redunda em consequências perniciosas para os princípios democráticos.

Parece estar claro que o critério de busca da verdade no jornalismo não pode ser equiparado à busca da verdade em juízo. A informação jornalística, em diversas ocasiões, demanda publicação rápida, de modo que a demora em divulgá-la tende a gerar, no público, o desinteresse pela notícia. Ao revés, no Judiciário, há um longo rito – mediante intenso contraditório e regras de direito probatório – para se chegar à verdade dos fatos, ou a algo perto desse ideal. É à luz dessa consideração que o Judiciário não deveria punir o jornalista pelo simples fato de a informação publicada revelar-se, posteriormente, falsa em juízo, desconsiderando as particularidades do caso concreto, especialmente as evidências a que o jornalista teve acesso ao tempo da publicação. Por isso, nos Estados Unidos, não se pune o mero erro jornalístico.

Talvez o sistema americano, o mais protecionista à liberdade de expressão e de imprensa de que se tem notícia, não seja consentâneo com os valores previstos na Constituição brasileira. Como já advertiu Rousseau, no Contrato Social, as instituições de um país têm de ajustar-se tanto à situação local quanto ao caráter dos habitantes. Talvez o que seja bom para os americanos não o seja para nós.

Contudo, uma coisa é certa: um sistema político que se pretenda democrático e declare proteger a liberdade de expressão e de imprensa tem de tolerar, em certa medida, publicações de tom ou teor ofensivo, notadamente as dirigidas aos governantes quanto às atividades por eles exercidas como tais. Ele também não deve conferir prevalência à verdade judiciária sobre a jornalística, para fins de punição, como se em ambos os domínios valessem os mesmos meios e métodos de obtê-la.

A liberdade de expressão – valor tão caro à civilização ocidental – é invocada justamente nas situações em que ela entra em choque com outros valores. Se estes prevalecem, mina-se a liberdade de expressão. E sem liberdade de expressão, não há controle do governo; não há, enfim, democracia.
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*Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito pela King’s College London.

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