O sacrifício de Vieira de Mello e a sobrevivência da ONU
Flávio Augusto Saraiva Straus*
Pregavam-se tais medidas como únicas aptas a salvar o pouco que resta da ONU e de sua missão primordial, de promover a paz e os princípios de "justiça e direito internacional", e de "direitos iguais e auto-determinação dos povos", conforme afirmada na Carta das Nações Unidas e reafirmada no preâmbulo da Resolução 377. De lá para cá, a ocupação se firmou, enfrentando protestos sistemáticos da população e a média de ao menos um soldado das forças invasoras morto a cada dia, em emboscadas da resistência iraquiana. Os EUA terminaram por "aceitar" a participação da ONU na reconstrução do país, ainda que atribuindo-lhe papel meramente secundário de "ajuda humanitária, mas chegaram mesmo a tomar a iniciativa de propor, para chefiar a missão, o nome do Alto Comissário para Refugiados da ONU, Sérgio Vieira de Mello.
A atuação daquele brasileiro ilustre, entretanto, não se submeteu ao "script" que dele esperava o governo Bush. Desde o início deixou claro que o trabalho da ONU só teria sentido se antecipasse ao máximo o calendário para desocupação do Iraque e formação de um governo legítimo local, e estava alcançando rápido e efetivo sucesso neste último sentido, empenhando toda sua larga experiência diplomática em situações limite, como Kosovo e Timor Leste, para lograr consenso, no início do mês de agosto, na definição do embrião de um governo provisório, unindo lideranças xiitas, sunitas e curdas, que, apesar da "benção" dos EUA, poderia ser, a médio prazo, um importante fator no sentido de diminuir-lhes a hegemonia do poder na região. Dia 15/08, em entrevista a correspondentes internacionais em Bagdá, Vieira de Mello havia cobrado as responsabilidades do governo dos EUA junto à população iraquiana, ilustrando a perfeita compreensão que tinha de sua situação ao dizer que ele tampouco admitiria "se houvesse tanques estrangeiros na praia de Copacabana".
O representante especial da ONU não teve, porém, tempo para nenhum outro avanço. No dia 19 de agosto uma betoneira lotada de explosivos, teoricamente provenientes do armamento do antigo exército de Saddam Hussein, dirigida provavelmente por um suicida, explodiu exatamente abaixo da janela do gabinete de Vieira de Mello, também no momento exato em que ele lá estava, em reunião com membros da missão, matando-o e a outras 23 pessoas, e deixando mais de uma centena de feridos.
Quem foram os culpados diretos por aquele atentado não se sabe, passado já um mês, e provavelmente jamais se saberá. No mínimo por omissão, porém, não pode haver qualquer dúvida sobre os responsáveis indiretos pela tragédia. Quem estava encarregado da segurança da sede da missão da ONU em Bagdad? Quem, por conseqüência, conhecia todos os horários e a agenda do chefe da missão, e sobre eles deveria ter providenciado para que se mantivesse o mais estrito sigilo? Quem tinha a guarda do arsenal apreendido da ditadura iraquiana? Quem, segundo declarou um membro do governo provisório iraquiano, havia sido prevenido, uma semana antes, de que alvos civis indefesos de Bagdad, em especial a ONU, poderiam vir a sofrer atentados terroristas nos próximos dias? Quem, em última análise, havia gerado a revolta do Povo iraquiano ao bombardear e invadir o país, sem que nenhuma provocação direta houvesse sido feita, sem mandato do Conselho de Segurança da ONU, e justamente quando seu governo, ainda que ditatorial, passara a colaborar com as investigações dos inspetores de armas da Organização? Quem está agora, passados quase seis meses, tendo de admitir publicamente a falta de sustentação das toscas justificativas invocadas para a invasão? A resposta a todas estas perguntas conduz, inevitavelmente, aos maiores devedores da ONU e principais responsáveis pela situação de desmoralização em que hoje se encontra a Organização: os EUA.
Caracteriza-se, assim, outro impasse no Conselho de Segurança da ONU, em especial entre os países com direito a veto, exatamente como descrito no preâmbulo da Resolução 377, ou seja, quando o órgão colegiado, "por causa da falta de unanimidade dos membros permanentes, falhar em exercer sua responsabilidade primária para a manutenção da paz e segurança internacional em qualquer caso em que pareça existir uma ameaça à paz, violação da paz, ou ato de agressão". Impõe-se, portanto, conforme disposto na Resolução, a solução extrema: "a Assembléia Geral considerará a questão imediatamente tendo em vista fazer recomendações apropriadas aos Membros para medidas coletivas, incluindo no caso de violação da paz e ato de agressão o uso de força armada quando necessário, para manter ou restaurar a paz e segurança internacional". E nem sequer será necessária convocação extraordinária, pois a 58ª sessão ordinária da Assembléia Geral da ONU instala-se nesta terça-feira, 23 de setembro, abrindo-se com o discurso do Presidente Lula. Oxalá este outro ilustre brasileiro possa inspirar a maioria das nações a não deixar morrer em vão seu compatriota, ou a Organização pela qual ele deu a vida e que representa a última esperança de Paz, não só para o combalido Povo do Iraque, mas para toda a Humanidade!
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* Advogado e Gerente Jurídico da Votorantim Cimentos, Graduado pela FADUSP, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e autor de "Soberania e Integração Latino-Americana- Uma perspectiva constitucional do Mercosul" (Rio de Janeiro, 2002, Editora Forense)
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